ZELINA

No canto azulado do escritório, fingindo ler em simultâneo o Fausto e o Doutor Fausto, Zelina desferia o seu olhar cilíndrico, obnubilado pela ambição visceral da cultura a metro , não conseguindo desbravar os engenhosos carreiros de formigas que circundavam vertiginosamente o rodapé da parede cinzenta que escolhera como eco quotidiano da sua para-reflexão. De vez em quando, uma ardilosa barata deslizava sobre o tapete persa que herdara de Teófilo, seu velho padrinho, sempre encasacado e deformado pela torsão de pensador à Rodin.

Zelina permanece no escritório, alheia à frescura das manhãs, ao rebentar das papoilas e ao sofrimento das crianças da rua que lhe batem à porta a pedir refrigerantes, bolos, almoço e afecto. Finge que não ouve as crianças a gritarem, a poucos metros da sua vivenda. Lá fora, na piscina, nadavam muitos sapos e coaxavam inúmeras rãs, naquela primavera semi-cinzenta à Bergman. Teve de renunciar ao afecto para deixar voltejar a serpente que nela continuava a disfarçar o sorriso falso, povoado de fantasmas e de tédio.

Zelina estava calma e espartilhada como um fim de dia lúgubre, ainda na meia idade, envolta em roupas pouco desenhadas, de cor malva e negra. Parecia descansar no canapé forrado de veludo. Na sua secretária Henri II, pululavam alfarrábios, mares de papéis escritos apenas nas margens desbotadas, catadupas de livros de Henry James, Pasternak e Nietzsche, tantos outros que herdara, sem cultivar a coragem de os enfrentar. A sua fastidiosa cultura afilava-se na imitação de ideias de amigos, em tardes secas de outono. Dormia numa falsa tarimba com edredon de penas de ganso e forro de seda rosa China.

Naquele fim de tarde, Zelina descansava no rodapé de veludo sem nenhuma oca congeminação. Sentia-se parada no tempo, a adormecer com sabor a eternidade, num sono progressivo e estéril que prolonga a ausência de qualquer traço de gesto criador. E o pêndulo do relógio dourado, protegido por uma imponente redoma de vidro, repetia as horas, pela mão disfarçada de um anjo. Zelina adormecida não deu pela síncope que a fez na meia idade partir desta vida descontente. Teófilo tinha partido em viagem de negócios sem se despedir da sobrinha e afilhada cuja presença lhe era quase indiferente.

Nos corredores povoados de espelhos e flores exóticas, violetas e aves do paraíso, passavam os mordomos encasacados, para acompanharem os recém-chegados ao hotel Acre, na Pensilvânia. Teófilo, enrugado e pensativo, esperava que o mordomo chegasse à porta do seu quarto que escolhera para o último andar, para poder pensar, olhar a Pensilvânia e suas surpresas o mais rapidamente possível, sem se deslocar muito. Tinha negócios ainda a cumprir e estava a contar com as oscilações da Bolsa para poder jogar e aumentar a fortuna pessoal. Sabia que seria quase submergido por telefonemas dos seus clientes e que resolveria, no quarto ou na varanda, inúmeras situações das empresas que confiavam nos seus conselhos e no seu trabalho telefónico. Esperaria pelas pausas dos telefonemas para acentuar as rugas e torcer o pensamento.

Sentada no sofá, olhava as flores e os espelhos do quarto. Após ter convencido e conquistado muitos clientes, estava a meditar como gerir tanto dinheiro que acabara de ganhar em meia hora, quando voltou a tocar o telefone. Era a voz da Idalete, a empregada doméstica de Zelina:

- Está? Senhor Miranda?

- Sim, Idalete. Há alguma urgência? Como conseguiu contactar-me?

- Tenho sempre os seus contactos na agenda que a Menina Zelina deixa na cozinha para eu levar para o meu quarto.

- Tem razão. Eu comunico sempre por email à Menina Zelina onde e como pode encontrar-me quando viajo. Sou o seu padrinho e a sua única família. Por que é que a Menina Zelina lhe pediu para me telefonar?

- Lamento, Sr. Miranda, mas a Menina Zelina não está disponível e tenho de ser eu a comunicar com o Senhor.

- Não está disponível? Então o que lhe pediu para me dizer? É algo urgente?

Teófilo Miranda não era dado a maus presságios nem a especulações negativas, o que lhe permitia viajar sem medo, percorrer salas e corredores sempre espelhados e ganhar fortunas em pouco tempo. Mas naquele fim de dia de outono, parecia-lhe inesperado receber um telefonema que não fosse de negócios.

- A Menina Zelina precisa de saber a minha opinião urgente sobre o orçamento das obras na piscina, para ver se e as rãs deixam de coaxar todo o dia no quintal? Ou então qual é a urgência?

- Sr. Miranda, não sei como dizer-lhe, mas a cor deste fim de dia está muito escura e triste aqui. A Menina Zelina entristeceu de repente.

- O que é que eu posso fazer a esta distância, Idalete? Ela precisa de um fax, de um email, de dinheiro, de apoio moral?

- O que me aflige, Sr. Miranda, é que de repente parece que ninguém lhe pode valer. É por isso que o Senhor tem de saber.

Teófilo Miranda converteu de repente a torsão do pensamento em ansiedade. O suor começou a escorrer discretamente na sua testa quase lívida, desfez repentinamente o nó da gravata dourada e sentou-se numa poltrona de maior porte.

- Então, Idalete, não pode dizer à Menina Zelina que tente falar comigo, para eu lhe dar ânimo e segurança?

- Gostava muito, Sr. Miranda, mas ela não pode falar.

- Não pode falar? Está doente ou tem apenas uma daquelas crises de tédio que a tornam muda?

- Sr. Miranda, prepare-se para o pior, tenha calma e aceite a notícia.

- Que notícia, Idalete?

- A Menina Zelina apareceu morta a dormir. Não estava doente. Foi o coração que parou. Já vieram os médicos e confirmam que foi paragem cardíaca derivada de uma síncope. O Senhor tem de saber.

Teófilo Miranda agarrou-se com ímpeto à poltrona para não desfalecer com o choque. Tinha de regressar de imediato à sua mansão e acompanhar Zelina até à última morada.

- Não posso acreditar, Idalete. Minha querida afilhada. O tédio matou-a. Foi pena eu não ter tido tempo de me preparar para a perder. Foi bom para ela partir descansada e sem dar pelo seu fim. Vou no primeiro avião da noite ou da manhã, onde tiver lugar. Esperem por mim, por favor. Telefone à Senhora Dona Ana . Peça-lhe ajuda até eu chegar.

- A Senhora Dona Ana já me ajudou, mas pediu-me que fosse eu a telefonar ao Senhor, para lhe dar a notícia. Ela vai tratar de tudo. Ficamos à sua espera. Não se preocupe. Boa viagem. Até amanhã, Sr Miranda.

- Até amanhã, Idalete. Diga à Dona Ana que não lhe telefono e confio. Muito obrigado.

Passaram dez meses sobre a morte de Zelina. Teófilo escolhera viajar menos e tratar dos negócios pelo telefone, na sua própria mansão, onde escorriam cascatas de música e de espanto. No jardim, cópias de estátuas gregas e barrocas espargiam, com os repuxos de água cristalina, a beleza ideal das estátuas de deuses e de kouroi. O tédio de se ser belo como uma estátua grega. Era preciso procurar quem desse vida à estátua, quem desse sabor à vida.

O que mais falta neste mundo de fugas do vazio, dos desgostos, é a presença de Pigmalião. Falta quem dê vida à estátua, e sobretudo quem atravesse a vaga da vida. São raros os que procuram a beleza temperada pela lucidez e a fibra da vida .

É essa fibra da vida que falta nestas esferas da cultura a metro, da cultura como refúgio de um grande vazio, nos jovens, mulheres e homens que tentam imitar percursos de quem ousou enfrentar a vida e ser. Há uma crise de modelos vivenciais. Os raros que, sem o saberem, são grandes almas, mahatmas, em expressão hindu, os que cultivam profundas forças de ser, sem falsas personagens, que se expuseram a perder carreiras de prestígio e de fachada, por vezes não tiveram tempo para concretizar uma obra visível de arte literária, musical, plástica e são os que são imitados. As pessoas vazias e inteligentes não cessam de tentar imitar percursos mais fundos dos mahatmas, a cultura vivenciada, para ascenderem ao prestígio e ao estatuto do poder, do grande artista, do ser narcísico e fascinante que todos subjuga pela personagem de simpatia e sedução, ou de qualquer outra figura de proa. A auto-insegurança inteligente consiste em imitar os grandes de espírito como suporte interior, criando uma fachada de personagem manipuladora ou outra que seja convincente e calculada. Porque os grandes de espírito não manipulam, apenas abrem caminhos. Os miméticos desconhecem que percorrem o fulcro da violência, constroem a sua vida sobre a rivalidade insana, crivada de pressas e corridas ao poder. Há que procurar uma outra saída para uma nova maneira de estar atento a quem se admira, sem rivalidades, nem pressas nem vaidade.

Tudo isto, a propósito das cópias de estátuas gregas dos jardins de Teófilo, do tédio de se ser belo como uma estátua.

Teófilo convidara especialistas londrinos para afinarem a sua colecção de cravos e clavicórdios. Estava enraizado na indiferença e só se apercebeu do seu afecto por Zelina, quando teve de enfrentar o luto. Tinha de contornar o desgosto da morte de Zelina e dedicar-se aos seus inúmeros gostos e interesses musicais que lhe temperavam a concentração do seu pensamento nos negócios. Contratara Vere Atkinson, antiquário, harpista e cravista inglês que passava longos meses na sua casa para dar concertos, passear no campo e meditar sobre as últimas sonatas que acabara de compor.

Na mansão da Quinta do Purgatório, Vere tinha ao seu dispor três salas sobriamente decoradas, para dar espaço à colecção de instrumentos musicais que vendera a Teófilo, ao longo de algumas décadas. Teófilo não sabia tocar nenhum instrumento, mas sabia que a música seria um dos melhores refúgios para o seu vazio interior que atormentou toda a sua existência neste planeta. A música dava vida às suas salas, quando Vere se decidia a ser por ele contratado para a sua mansão, implantada numa planície que lhe lembrava os intermináveis e suaves prados, próximos de Woodstock onde passara a sua adolescência. Lembrava-lhe os seus passeios de autocarro, de Woodstock para Stratford-upon-Avon, par ir visitar Anne Hathway cottage, passear nas margens do Avon, comprar belas edições dos sonetos de Shakespeare e tentar ver Ralph Richardson em palco.

Vere Atkinson tinha especial predilecção em acompanhar com a harpa, o piano, ou o clavicórdio, as amigas de Teófilo e de Ana Duncan, sua secretária e amiga. Era de esperar que quem visitasse a mansão da Quinta do Purgatório se sentisse atraído pela magia do trabalho de Vere que sabia construir harpas e clavicórdios, afiná-los com o maior rigor, vendê-los na sua loja , embrechada numa travessa de acesso ao belíssimo parque de Richmond, nos arredores de Londres, próxima de um miradouro sobre o Tamisa, não muito longe de Heathrow. Era fascinante ainda o seu trabalho de compositor e intérprete, os seus inúmeros convites para concertos públicos e privados. Era-lhe difícil escolher repertório, porque oscilava entre os concertos para harpa e orquestra de Haydn e Mozart, a música de câmara, as variações a Goldberg de Bach, a música de Mozart para glassharmonica que ele adaptava ao clavicórdio. Como tinha sido amigo pessoal de Poulenc, escolhia e transpunha o acompanhamento a piano de canções de Poulenc, para poder acompanhar os diferentes cantores convidados. Teófilo pressentiu que a presença de Vere Atkinson perduraria, com regularidade negociada, até ser possível, nas suas vidas.

Assim se diluía o tédio, o luto e a melancolia. Teófilo nunca falhava nos negócios e nunca desistiu de reunir amigos, na Quinta do Purgatório. Lembrava-se de Zelina, nas tardes secas do estio, quando os amigos partiam em cruzeiro. As rugas e torsão do seu pensamento, o tédio da beleza ideal das cópias de estátuas gregas dos seus jardins pareciam abrir-se à alegria ciclicamente renovada, à procura de uma âncora na própria vida, liberta dos meandros negativos do vazio e competitividade agressiva dos miméticos. E não se cansava de pedir a Vere que convidasse alguém que lhe cantasse: Music for a while: a música durante algum tempo cura todos os teus cuidados. Os gregos antigos confirmavam: “o tempo cura todos os males”.