A IDEIA DE VIAGEM DE HOMERO A CAMÕES (1)
Helena S. Conceição Langrouva*

Lamor che move il sole e laltre stelle
DANTE, Paradiso XXXIII, 145

(Texto gentilmente cedido pela revista Brotéria, onde foi primeiro publicado.)

Resumo:

Desenvolvimento da ideia de viagem na literatura ocidental até chegar a Os Lusíadas, para destacar marcas de originalidade camoniana, a partir das epopeias greco-latinas, passando pelos romances de cavalaria medievais, Dante e Ariosto, explorando os respectivos conceitos de espaço e de tempo, modos de integração de mito e história, e os temas da fuga, do combate aos monstros, da descida aos infernos, da busca da imortalidade e da metáfora do labirinto.

Introdução

A ideia de viagem que subjaz implícita e explicitamente no âmago das viagens literárias está profundamente ligada às experiências humanas de fuga, exílio, saudade da pátria e da família, regresso à pátria, ao desejo de procurar o desconhecido e à procura de crescimento espiritual; está também relacionada com os ritos de passagem que exprimem a necessidade de renovação e de regeneração, num tempo e num espaço cíclicos (1). Entre as ideias mais próximas do modelo dos ritos de passagem, nas viagens literárias, as mais relevantes são a aspiração ao aperfeiçoamento do conhecimento, através do pensamento e da experiência, e o caminho para uma nova ordem social e espiritual.

O objectivo deste texto-síntese é procurar entender a ideia de viagem como matriz da literatura ocidental, desde Homero e Virgílio; visa observar como esta ideia foi desenvolvida na literatura clássica, medieval e renascentista. Tentaremos discernir e relacionar temas das viagens literárias, na epopeia greco-latina e nos romances de cavalaria, com os elementos que Camões privilegia, filtrados pela sua cultura, experiência pessoal e visão do mundo, modulando as suas variadas vozes, na poesia épica, bucólica e lírica.

1. A ideia de viagem na epopeia e nos romances de cavalaria
Homero e Virgílio

Na Odisseia, a viagem realiza-se num espaço geográfico e mítico e desenvolve-se num tempo cíclico. Através das suas façanhas e aventuras, Ulisses renova-se regularmente a si próprio, num ciclo de vinte anos. O tempo e o espaço convergem de tal modo que o herói pode encontrar e realizar o seu destino de fidelidade conjugal e regresso à pátria. A viagem não termina com o poema. Depois de ter alcançado Ítaca e de ter sido gradualmente reconhecido pelos seus familiares, partirá para um novo ciclo de viagens e de retorno. Muito embora a Odisseia tenha sido predominantemente considerada como o poema do regresso, é obvio que se trata de uma obra aberta para um novo ciclo, pois o eterno retorno é conciliável com a ciclicidade do tempo e a renovação que subjaz aos ritos de passagem. A ideia da ciclicidade do tempo marcou a cultura grega, muito em particular as cosmologias pre-socráticas e a cultura grega arcaica.

Na Eneida, o espaço das viagens de Eneias também é mítico e geográfico, não tende para a circularidade nem para a ciclicidade, mas para a abertura. É a viagem da fuga da desordem e da violência da guerra de Tróia para o espaço aberto para o futuro, realizada num tempo predominantemente linear, embora com marcas de ciclicidade despojada da tragicidade do eterno retorno; de ciclicidade como regresso à idade de Saturno (Eneida, VI). Eneias é criador heróico-mítico de uma nova ordem social, política e espiritual, para o Ocidente. É um fugitivo pelo destino que o atingiu – fato profugus (Eneida, I, 3) –, ao fugir da guerra de Tróia para ser o antepassado mítico dos Romanos e o criador de uma nova ordem para o Ocidente.

A ideia de viagem na Eneida é antecipada na écloga IV de Virgílio, na qual se faz uma associação entre o futuro do Estado, através do nascimento de uma criança, e o futuro do cosmos, o devir cósmico. Não sendo nosso objectivo, neste texto, apresentar uma lista de interpretações da mesma écloga, nem do mito da idade do ouro na cultura greco-latina, mas procurar o fulcro de uma ideia, diremos que, na écloga IV de Virgílio, a idade do ouro, associada já na obra de Hesíodo, por exemplo, à ideia de regeneração (Os Trabalhos e os Dias), não tem a ver com o passado, mas com a era cósmica e política do futuro. Trata-se de uma atitude de libertação da ideia de ciclicidade que dominou a mundividência dos antigos, marcada pela ideia de retorno, patente no pessimismo das respectivas cosmologias, segundo as quais o homem se envolvia num processo de degradação progressiva.

A ideia de retorno estava, pois, não predominantemente associada à ideia de renovação nem de regeneração, como nos ritos de passagem, mas à degradação do homem. Não sendo nosso objectivo, neste texto, atravessar messianismos mas procurar o seu fulcro, na écloga IV de Virgílio, diremos que o messianismo da Bucólica IV de Virgílio constitui também uma intuição pré-cristã (2), uma vez que a interpretação cristã da mesma bucólica identifica o novo menino que vai nascer com o Messias (3), salvador da humanidade, incarnado, poucos anos depois da composição do poema virgiliano, na figura de Jesus Cristo.

Se as viagens de Ulisses e de Eneias são forçadas porque resultam da fuga da guerra, as viagens do herói central do poema épico Beowulf, no século V, são voluntárias, pois Beowulf, o jovem príncipe dos Getes do Sul da Suécia, desloca-se ao país dos Danes, para matar Grandel e sua Mãe, dois monstros temíveis que ameaçam a destruição dos Danes, governados então pelo velho rei Hrothgar. Em contrapartida, Orlando, na Chanson de Roland, viaja do seu país para Saragoça, não por vontade própria, como Beowulf, mas movido pelo ideal de cruzada de que será vítima.

No universo dos romances cavaleirescos, o cavaleiro viaja por causa da guerra, mas, em tempo de paz, escolhe as cavalgadas solitárias, vencendo o medo do desconhecido, escolhendo o risco, a liberdade e a disponibilidade de estar consigo próprio, sabendo que a viagem pode ter ou não retorno. Mas a ela se entrega para moldar o espírito, formar a personalidade e procurar, como um peregrino, a mudança interior ou conversão e o aperfeiçoamento espiritual. O cavaleiro errante, o monge e o peregrino procuram não se deixar contaminar pela loucura e alienação deste mundo, até encontrarem ordem e estabilidade (4). Neste sentido, a Távola Redonda dos romances arturianos, assim como o Santo Graal, correspondem à ordem que os cavaleiros errantes procuram, num tempo linear e indeterminado.

Os Lusíadas. Descobrimento ou achamento

O espaço percorrido pelos nautas portugueses em Os Lusíadas é rigorosamente geográfico, percorrido num tempo que está para além da ciclicidade e da linearidade. É um espaço que, muito embora se integre no espaço das viagens literárias, o transcende na própria obra literária, porque é o espaço novo da viagem de descobrimento da costa africana, do Oceano Índico e da própria Índia. Os séculos XV e XVI são os grandes séculos das viagens dos humanistas, na Europa, das viagens de descobrimento de novos mares e de novos continentes, por parte de Europeus, as quais têm sido objecto de inúmeros estudos e encontros internacionais, em particular em artigos de Jean-Claude Margolin (5) e Luís de Sousa Rebelo (6).

O conceito de descobrimento é obviamente discutível, pois, na realidade, é o continente europeu que funciona como aferidor da alteridade, do que é o Outro, o novo, o descoberto, na África, na Índia e nas duas Américas. As Viagens de Marco Polo, assim como a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto são narrativas de viagem de descobrimento de novos continentes, escritas por aventureiros que não têm objectivos espirituais como os peregrinos, mas procuram enfrentar o desconhecido na travessia dos mares, rumo ao Oriente, na expectativa de conhecerem novos povos e de eventualmente enriquecerem. As suas descrições traduzem o deslumbramento perante novas civilizações da China e do Japão, filtradas pelo olhar habituado apenas aos parâmetros do Ocidente (7). O Diário de Colombo é um documento que dá uma imagem discutível do Outro, por parte de quem o considera como objecto de colecção e não como o desconhecido a conhecer e a compreender (8).

Estudos recentes sobre a pintura dos índios na América Latina revelam a visão do conquistador espanhol, por parte dos Incas, Maias e Astecas, portadores de civilizações ancestrais e muito avançadas, dizimadas pelo maior genocídio que atingiu cerca de setenta milhões de Índios (9). Por outro lado, estudos muito recentes sobre história local da Índia e também de pinturas de autóctones indianos vêm igualmente dar a visão do conquistado em relação ao conquistador português e pôr em causa o modo como os Portugueses construíram o seu império (10).

Em nosso entender, a designação mais aceitável para o conceito de descobrimento, porque não impõe uma perspectiva de um só continente, nos séculos XV e XVI, será a de “achamento”, escrita por Pero Vaz de Caminha, na sua carta que relata em síntese o que os Portugueses acharam de novo no Brasil e que, na realidade, já existia antes de lá chegarem (11). Nas viagens de descobrimento ou “achamento”, o que importa é a viagem de ida e muito pouco a viagem de retorno.

Na epopeia camoniana, Vasco da Gama é o herói da viagem de descobrimento do caminho marítimo para a Índia, incorporando, todavia, os descobrimentos portugueses até ao Cabo das Tormentas, já conhecido no seu tempo. No plano da viagem realizada pelos nautas portugueses em Os Lusíadas, a ideia de retorno está implícita na despedida das esposas, dos velhos e das crianças na praia de Belém (12) e em todos os passos em que Camões reitera, quer como sujeito, quer na voz de cavaleiros e nautas portugueses, a sua fidelidade à pátria – ao “ninho meu paterno” – ou seja, à família portuguesa metamorfoseada em pátria (13). A ideia de retorno, depois de ter sido antecipada pela alegoria da Ilha de Vénus, nos cantos IX e X, está explícita apenas em duas estâncias no final do poema (14).

Ideia de fuga

Como atrás afirmámos, a ideia de fuga subjaz às viagens de Ulisses e de Eneias, ambos guerreiros fugitivos de Tróia. Cada um segue o seu destino que lhe é revelado na descida aos Infernos. Não são heróis voluntários como Beowulf que viajou por solidariedade para com o país vizinho enfraquecido. Em Os Lusíadas, a fuga verifica-se por parte dos raros vencidos nas batalhas, na saída precipitada dos nautas da Índia e, de modo irónico, na fuga cobarde de Fernão Veloso, ao descer uma colina que ousara subir, na costa africana, apavorado pela descoberta de um novo mundo:

O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida.
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Os Lusíadas
, IV, 43, 1-4

Estando, a vista alçada, co cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.
Os Lusíadas
, V, 31, 5-8

Se Ulisses se renova ciclicamente, através dos feitos que vai realizando, das emoções que domina e da sua inteligência ardilosa que tudo vence, os heróis camonianos são postos à prova no cultivo da intrepidez, no domínio das emoções, e no aperfeiçoamento da inteligência, para o exercício da virtude heróica e do empreendimento da viagem. O esforço heróico, em Os Lusíadas, transcende o indivíduo e realiza-se por ideal comunitário, seguindo a vontade dos Fados, em particular na viagem de achamento/descobrimento da Índia que será premiada na Ilha do Amor.

O aperfeiçoamento da inteligência e o cultivo da intrepidez conciliam-se com a procura de ordem e de estabilidade social, política e espiritual, patentes na Eneida, nos romances cavaleirescos e em Os Lusíadas. No poema camoniano ecoa o desejo de estabilidade para Portugal e para o Império, na procura da constância nas leis, – “Ou dai na paz as leis iguais, constantes, / Que aos grandes não dêm o dos pequenos” (15) – de ver o poder exercido não por quem o procura ou se quer impor, mas por quem deveria ser escolhido pela comunidade, por ser portador de fidelidade ao rei – símbolo da pátria e da comunidade – à própria pátria e a Deus:

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser seu próprio interesse,
Os Lusíadas
, VII, 84, 1-3

Aqueles sós direi que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,
Os Lusíadas,
VII, 87, 1-2

Estabilidade é o contrário da desarmonia, do “desconcerto”. Uma das aspirações supremas do poema camoniano é que a história e a humanidade deixem de ser guiadas pela desarmonia – “desconcerto” – e o egoísmo – “filáucia” – e passem a ser guiadas pelo Amor. Por esta razão, Vénus protege os nautas portugueses ao longo da viagem, até à alegoria final da Ilha do Amor. Procura de amor e de conhecimento, na dialéctica do amor do conhecimento e do conhecimento do amor, transpostos para a visão ectoscópica da miniatura da Máquina do Mundo, segundo a concepção ptolomaica que vigorava ainda na literatura de quinhentos, embora a ciência já não a adoptasse desde a publicação da obra de Copérnico (16).

A este propósito, a ninfa Tethys dá o prémio à inteligência e à perseverança de Vasco da Gama, dando-lhe a conhecer a miniatura do universo, numa bola de cristal, permitindo-lhe uma visão distanciada do mundo, próxima da sabedoria e da visão do mundo do Somnium Scipionis (Cícero, De Republica), adoptado pelo Renascimento:

Vês aqui a grande máquina do Mundo
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
Os Lusíadas
, X, 80, 1-8

No pensamento camoniano, esse plano, próximo de Deus, apresenta uma relação semântica com o “alto assento” onde os heróis, libertos de emoções, contemplam “o baxo trato humano embaraçado” (17). Constitui um convite implícito para que o leitor de Os Lusíadas aprenda a ter uma visão do mundo, de cima, acima da confusão, bem clara na expressão de língua francesa “au-dessus de la mêlée”. O “alto assento” da Ilha do Amor é o cume de um monte – símbolo da escala suprema do caminho e da procura de conhecimento – do qual Vasco da Gama contempla a Máquina do Mundo:

Não andam muito, que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Os Lusíadas
, X, 77, 1-4

Mito e história

A viagem como espaço e como tempo, na epopeia, integra mito e história que mutuamente se conjugam, se interrogam, se sobrepõem e se libertam (18). Na Odisseia, mito e história conjugam-se, pois é fácil separar a história da guerra de Tróia da efabulação ancestral relativa aos fugitivos da guerra. O espaço das viagens de Ulisses e de Eneias não é apenas geográfico e mediterrânico mas também mítico. A viagem na Eneida não é apenas uma metáfora, nem apenas a expressão da consciência histórica da época áurea de Augusto, nem apenas a expressão de um alter Romulus, nem apenas um conjunto de factos históricos, mas interpela a vida e liberta o pensamento, através do mito de Eneias, antepassado mítico da raça romana, o herói que se deixa mover pela pietas – o respeito “religioso” pelo Estado, os deuses, as ordens dos deuses – iussa deum –, o destino – fatum. Virgílio discerniu, na primeira parte do poema, o mito de Eneias e das suas viagens; a descida de Eneias aos Infernos precisamente a meio do poema como abertura para a profecia e o futuro (canto VI); da história de Roma desde as origens até à morte de Turno, rei dos Rútulos, na segunda metade da Eneida. A descrição do escudo de Eneias, obra forjada por Vulcano, na Eneida (VIII,626-731) constitui uma síntese pontual dos acontecimentos da história futura de Roma. A descrição retrospectiva pontual de Paulo da Gama, em Os Lusíadas (VIII,10-43) das figuras desenhadas nas bandeiras da armada de Vasco da Gama tem o sentido inverso e é completada pela visão de feitos futuros descritos por uma ninfa (X,5-7; 10-73), na Ilha do Amor, da glória da expansão portuguesa no mundo (X, 91-141), na visão ectoscópica da Máquina do Mundo, dada por Tethys a Vasco da Gama, no cume do monte da Ilha do Amor .

A epopeia Argonautica de Apolónio de Rodes desenvolve, na literatura grega, o mito da viagem iniciática de Jasão, em busca do Velo de Ouro, símbolo do poder sobrenatural; a sua paixão por Medeia irá influenciar a epopeia de Virgílio, no tratamento da paixão de Dido e Eneias (19). Lucano, no poema Farsália, dá à epopeia latina posterior a Virgílio a dimensão exclusivamente histórica, introduzindo algumas marcas de crítica histórica, revelando o carácter patético da vida e da guerra, seguindo a tradição helenística, recorrendo ao pormenor da análise, por exemplo, das reacções físicas e emocionais de um soldado moribundo, na guerra civil entre César e Pompeu (20).

Camões em Os Lusíadas exprime com pormenor as reacções físicas e emocionais de um guerreiro que, em pleno campo de batalha, tem de dominar o medo, ao ver o seu companheiro agonizar, por ser atingido mortalmente:

E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera o pilouro ardente que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Os Lusíadas
, VI, 98, 1-4

Se é notório que Virgílio tem horror à guerra, pois vai sempre adiando, na Eneida, a descrição das batalhas, tendo ele próprio conhecido a relativa concórdia da época de Augusto, assim também é notório que Camões não se compraz com a guerra, embora a considere um jogo – “jogos de Belona” e “márcio jogo” (21) –, assumido como necessidade colectiva de construção e preservação da pátria e do império. As descrições das batalhas assumem a cor do sangue “esparzido”, a estridência e a violência da guerra.

Retomando a relação entre mito e história, na epopeia, é sabido que a figura do herói Orlando tem origem histórica. As suas “façanhas sonhadas, fabulosas” (22), na expressão camoniana, foram forjadas pela tradição oral, quer em França, na canção de gesta – La Chanson de Roland – quer, em Itália, na tradição dos menestréis que será retomada por Boiardo, numa obra pouco elaborada, Orlando Innamorato, e por Ariosto numa obra de elevada elaboração literária, Orlando Furioso, que dá indícios de pôr relativamente em causa o próprio processo da epopeia, ao criar uma rede complexa de personagens e eventos imaginários, interrogando e não raro parodiando a consistência da história, do mito e da própria epopeia.

Em Os Lusíadas, a história de Portugal, em termos dos seus heróis, e a viagem de Vasco da Gama, pertencem ao domínio do que Camões designa como “verdadeiras façanhas” (23) e “verdades puras” (24). A figura de Vasco da Gama que pertence à história foi, todavia, recentemente estudada pelos historiadores Geneviève Bouchon e Sanjay Subrahmianyan. Este último demonstra como o capitão português pertence também ao domínio da lenda, restando muitas dúvidas sobre a sua vida e morte, sendo o conhecimento que dele temos sobretudo moldado pela epopeia camoniana (25). Em contrapartida, Geneviève Bouchon tentou, no sentido oposto à investigação de Subrahnianyan, reconstruir a figura e a história de Vasco da Gama (26). O que importa, na epopeia, é a imaginação do poeta que, como Camões, no Renascimento, recorre em simultâneo ao processo neoplatónico da mimese icástica – dos acontecimentos históricos – e da mimese fantástica – das imagens modeladas pela fantasia –, como Luís de Sousa Rebelo claramente situou na relação de Os Lusíadas com o pensamento filosófico e neoplatónico do seu tempo (27).

Os mitos de Os Lusíadas encontram-se dispersos, a título exemplificativo ou comparativo, em passos relativos à história de Portugal e à viagem de Vasco da Gama, no plano das intervenções dos deuses, nos episódios simbólicos, na alegoria da Ilha do Amor.

Nos anos 80, houve tendência, entre os críticos, como Helder de Macedo, Yvette Centeno e Helder Godinho, Stephen Reckert e M-C.Almeida Lucas, para estudar a viagem em Os Lusíadas, segundo estruturas e esquemas, no plano exclusivo ou do mito, ou do símbolo, ou da iniciação. A Ilha do Amor de Os Lusíadas foi também alvo de uma leitura exclusivamente simbólica (28).

O mito que tem maior autonomia e relevância na narração do poema é o do Adamastor. Trata-se de um complexo mito de metamorfose, com um significado novo, no contexto do poema. Abarca o sofrimento da natureza, invadida pelo homem português, desbravador de mares, o emergir da barreira dos limites do conhecimento, numa complexa rede de significações.


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* Investigadora.

1 Ver Georg Roppen, Richard Sommer, Strangers and Pilgrims: an essay on the metaphor of the journey, Oslo, Norwegian Universities Press, 1964. Este livro raro apresenta inovadoras achegas, com as quais concordamos, para a ideia de viagem, incluindo, em particular, a sua relação com o eterno retorno, a ciclicidade, os ritos de passagem, na Odisseia.

2 Vide Helena C. Langrouva, “Messianismos: de Virgílio a Atahuallpa- texto síntese” in Discursos e Práticas Alquímicas, IV, Lisboa, Hugin (no prelo). Em linha no TriploV.

3 O Messias esperado, na tradição judaica, seria um reformador socio-político a que Jesus Cristo não correspondeu, na visão dos judeus da sua época. Ver a este propósito, Francolino Gonçalves, “O Messias no Antigo Testamento” e Bento Domingues, “Jesus Cristo, o Messias?”, in Semana de Teologia sobre “Os Messianismos de ontem e de hoje”, organizado pelo I.S.T.A, agosto 2002

4 Ver G. Ladner, “Homo viator: Medieval ideas on alienation and order”, Speculum 42 (1967), pp. 233-259.

5 Ver Jean-Claude Margolin, «Voyager à la Renaissance», leçon inaugurale, in Voyager à la Renaissance, Actes du Colloque de Tours, 1983, Paris, Éditions Maisonneuve et Larose, 1987, pp. 9-36.

6 Ver síntese de Luís de Sousa Rebelo, “ Os Descobrimentos e a viagem no mundo clássico”, integrada no colóquio internacional de classicistas sobre a Viagem, in Euphrosyne XXVII (1999), pp. 207-217. Neste artigo, Luís de Sousa Rebelo relaciona as viagens de Ulisses, a errância de Eneias, a viagem iniciática de Argonautica de Apolónio de Rodes, no espaço mediterrânico, com as viagens à escala planetária dos Portugueses e Espanhóis dos séculos XV e XVI, em particular nas obras de historiadores portugueses, para finalmente enquadrar as exigências éticas das viagens de humanistas e o seu empenhamento no tema dos descobrimentos, demonstrando como da viagem de exploração se chega ao discurso do humanismo cívico português do século XVI, o qual reflecte a aspiração, na tradição do imperium, a poder governar o mundo e, na tradição do humanismo cívico de Cícero, a aspiração à liberdade. Luís de Sousa Rebelo publicou também recentemente um artigo em que define os parâmetros históricos nos quais se situam os cronistas portugueses de Quinhentos para analisar “protocolos de leitura” e o “olhar” dos mesmos cronistas – João de Barros, Duarte Galvão, Gaspar Correia, Diogo do Couto e Castanheda. Ver Luís de Sousa Rebelo “As Crónicas Portuguesas do século XVI”, in Fernando Gil e Helder Macedo, Viagens do olhar, Porto, Campo das Letras, 1998, Porto, pp. 175-201.

7 Luís de Sousa Rebelo analisa a visão eutópica de Fernão Mendes Pinto, na sua introdução à obra de Fernão Mendes Pinto, Peregrinaçam, abreviada e traduzida por Michael Lowery, Lisboa/Manchester, Carcanet em associação com a Fundação Calouste Gulbenkian e a Comissão das Descobertas, 1992.

8 Ver Tzvetan Todorov, A conquista da América, Lisboa, Litoral Edições, 1990.pp 47-65.

9Ver Serge Gruzinski, L'Amérique de la Reconquête peinte par les Indiens du Mexique, Paris, Unesco-Flammarion, 1991.

10 Conferência apresentada por Sanjay Subrahmanyan, integrada na Conferência Internacional sobre “The Self and the Other”, no Institut of Romance Studies, da Universidade de Londres em 7 de Março de 1997.

11 Ver Pero Vaz de Caminha, Carta a el Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil, 1 de Maio de 1500, introdução, actualização do texto e notas de Manuel Viegas Guerreiro, Lisboa, Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1974, 132 pp.

12 Ver Os Lusíadas IV, 89-93.

13 Os Lusíadas, IX, 4.

14 Os Lusíadas, X, 143 e 144.

15 Os Lusíadas, IX, 94, 1-2.

16 A obra de Copérnico De Reuolutionibus Orbis Terrarum teve a sua primeira edição em 1543. Foi publicada em tradução portuguesa de A. Dias Gomes, Gabriel Domingues, com introdução e notas de Luís Albuquerque, com o título As Revoluções dos orbes celestes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.

17 Ver Os Lusíadas, VI, 99, 3-4.

18 Ver Manuel Antunes, História da Cultura Clássica (texto policopiado), edição da Delegação universitária da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, 1961, pp. 102-103. Neste passo, o autor analisa o tempo que a epopeia é, ou seja, a sua duração; o tempo que a epopeia reflecte em relação ao antes e ao agora.

19 Luís de Sousa Rebelo, “Os Descobrimento e a viagem no mundo clássico”, chamou a atenção para a viagem iniciática de Jasão, a importância das ilhas como “lugar de refresco”, o percurso de todo o mediterrâneo até ao Mar Negro, com um regresso “fantasioso” trazendo Argos para a Europa, a permanente assistência dos deuses, na Argonautica de Apolónio de Rodes. No mesmo volume de Euphrosyne, pp. 301 a 314, Manuel Pérez López dedica um artigo ao tema “Viajes y relatos, de Homero a Apolonio Rodio”. José António Segurado Campos dedicou um estudo aos modelos clássicos da epopeia camoniana, para concluir sobre a predominância da Eneida de Virgílio. Refere que Camões terá lido a Argonautica de Valério Flaco, relacionando a presença da Ilha de Lemnos, no início da viagem de Jasão com a Ilha do Amor, na viagem de regresso de Vasco da Gama. Ver J. A. Segurado Campos, “The classical background of Portuguese epic poetry in the 16th and 17th centuries”, Euphrosyne XXVI (1998), pp. 121-136.

20 Ver Lucan, The Civil War (Pharsalia) tradução inglesa por J. D. Duff, The Loeb Classical Library, London, Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1969.

21 Os Lusíadas, X, 65, 8.

22 Os Lusíadas, I, 11, 6.

23 Os Lusíadas, I, 11, 1-5.

24 Os Lusíadas, I, V, 8.

25 Ver Sanjay Subrahmanyam, The career and legend of Vasco da Gama, Cambridge, Cambridge University Press, 1997. Tradução portuguesa, A carreira e lenda de Vasco da Gama, pref. de Luís Filipe Thomaz, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998.

26 Ver Geneviève Bouchon, Vasco da Gama, tradução portuguesa, Lisboa, Terramar, 1998, pp. 336. Na mesma perspectiva imperialista, Geneviéve Bouchon publicou ainda muito recentemente Inde découverte, Inde retrouvée – 1498-1630: études d’histoire Indo-Portugaise, Paris, Centre Culturel Portugais, Fondation Calouste Gulbenkian, 1999, 402 pp.; e Albuquerque, trad. Portuguesa, Afonso de Albuquerque: Leão dos mares da Ásia, Lisboa, Quetzal, 2000, 323 pp.

27 Ver Luís de Sousa Rebelo,”Camões e o sentido de comunidade” in Camões e o Pensamento Filosófico do seu Tempo, Lisboa, Prelo, 1979, pp. 61-94. Os conceitos de mimese icástica e de mimese fantástica são estudados por Luís de Sousa Rebelo neste referido artigo, retomando o estudo dos mesmos conceitos na obra de Erwin Panofsky, Idea: a concept in art theory, translated by Joseph J. S. Peake, New York, Harper & Row, 1968.

28 Ver Centeno, Y.K., Helder Godinho, Stephen Reckert e M.C. Almeida Lucas, A Viagem em Os Lusíadas: símbolo e mito, Lisboa, Arcádia, 1981, 153 pp. Ver Helder Macedo, Camões e a viagem iniciática, Lisboa, Morais Editores, 1980, 59 pp. O autor reuniu, na II parte (pp. 34-59) dois ensaios sobre a epopeia e, na I parte (pp.7-33), um ensaio já anteriormente publicado sobre a canção VII. Nessa mesma década, Maria Antonieta Soares de Azevedo, in “A Ilha dos Amores, Introdução a uma interpretação simbólica”, Brotéria 111 (1980), pp. 123-126, fez uma leitura exclusivamente simbólica da Ilha do Amor.

29 Ver Fernando Pessoa, Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguilar, s/d; Sophia Mello Breyner, Obra Poética, I, II, III, Lisboa, Caminho, 1990-1; Manuel Alegre, Obra Poética, Lisboa, Dom Quixote, 1999. Ver o prefácio de Eduardo Lourenço da mesma obra de Manuel Alegre e ver o prefácio de Aguiar e Silva in Manuel Alegre, Senhora das Tempestades, Lisboa, Dom Quixote, 1998.