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Helena Langrouva
A viagem de acordes quebrados (1)
Arpejos de uma Viandante/Arpèges

Em Arpejos de uma Viandante / Arpèges, Lisboa, 2004, Arpeggio reuni cem textos breves de minha autoria, em português e quase outros tantos em francês. Fui alternando a língua francesa e a língua portuguesa, desde o primeiro livro  “Limiar breve”  (“Seuil”), no canto, no caminho com poetas – não “à maneira de” poetas-, com  cantores, amigos, terras, em viagens exteriores e interiores, atravessando com a palavra a vida, mágoas, emoções, desertos, espantos, esperas, à procura de algo e de construção de algo como a luz, a beleza, o concerto interior, o texto, o ascenso do espírito. Sobre o misto de enigma e evidência do segundo livro “O Senhor que Guarda” (“Le Seigneur qui garde”) direi que o sinto impregnado do sabor da terra, de encontros e olhares, de  desenho, pintura, magia da mão, arte de ler poesia, a terra lusa, a presença de músicos índios e de índias da América Latina. No último livro, reconheço o caminho com a prática das artes - da escrita ao canto, à música, à pintura - a que chamei “Artes  peregrinas” (“Arts pérégrins”) porque com elas tenho encontrado –como os viajantes peregrinos- um sentido para a travessia da vida a solo e com outros, a vivência do  instante com sabor a eternidade. Fica  em aberto “deixar fluir a seiva de fulgor e sombra/ a vida-escrita sem dedicação exclusiva”/ “vibrar as cordas do barco redimido”- porque há também uma procura de redenção-,  “a palavra peregrina que vela o sonho” e a procura de  “arpejar sem fim nos círculos do arco-íris”.

Se por vezes aparece um “eu” ou um “tu” é claro que nada tem a ver com o pequeno ego  atrofiante mas com o fluir de caminhos. Se no título acabou por ficar inscrito “uma viandante” será porque este livro tem a ver com um caminho interior de um sujeito supostamente feminino sem autobiografia que procura transcender-se, na passagem da caducidade para a  eternidade. Será também um modo de demarcar este texto do título “Canções de UM Viandante” do compositor Gustav Mahler. Acabei por ter duas versões que não se apresentam em bilinguismo frontal mas são fruto de uma sequência, em língua portuguesa, e de outra sequência em língua francesa, procurando  encontrar um certo equilíbrio entre ambas.

Não tenho palavras para explicar Arpejos de uma Viandante/Arpèges. Se me forem fazendo perguntas é possível que vá respondendo. Tenho apenas um caminho de liberdade e de errância  à procura de um sentido, o desprendimento de teorias, de intelectualização excessiva. Sei que me acontece e que vou construindo, que a escrita é resultado de uma alquimia interior, de escuta, procura, encontro e espera que me deixa acontecer as palavras, caminhar com elas, decantá-las. Também não identifico os meus textos ou o meu texto com a procura excessiva de uma linguagem, mesmo que a vá construindo. Não cultivo o excesso nem de arquitectura, nem de metáforas, nem de ritmo audível, porque é o ritmo interior que impregna a palavra, o texto  que ouso e deixo escrever. É um caminho com a vida, com a palavra, com o texto, com o visível, o enfrentar de espaços, de enigmas exteriores e interiores,  no momento - no kairós- , na procura de consciência – na minha relação com os outros, com o Outro , com o mundo, comigo própria -, na procura do invisível, do texto, do canto interior e do caminho na vida, em  acordes quebrados ou arpejos tocados nota a nota, como nas cordas de uma harpa, na direcção do futuro. Se as notas fossem tocadas em simultâneo resultariam acordes musicais, de várias tonalidades, em harmonia,  tocados no instrumento da vida (2). Foi essa harmonia que sempre procurei comigo própria, com os outros, o Outro, com a beleza do mundo.

De Homero a Sophia. Viagens e Poéticas
A escrita de De Homero a Sophia. Viagens e Poéticas, 2004, Angelus Novus (edição patrocinada pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas) de minha autoria é fruto de um longo e aprofundado estudo (3). Cumpre-me assinalar que sempre procurei a inteligibilidade na minha escrita.

Um dos  grandes fascínios iniciais do meu caminho com a literatura grega e a cultura clássica,  em língua grega, foi o olhar de Homero sobre a beleza apoteótica, a procura do esplendor da luz no espectáculo do mundo, próximo do olhar de Sophia de Mello Breyner sobre o mundo, como eu já afirmava na década de 70 e de 80, embora não o tivesse publicado.

No ensaio “A Ideia de Viagem de Homero a Camões”, relacionei a viagem de Ulisses à ideia de renovação cíclica e aos ritos de passagem porque faz parte da ciclicidade que marcou a cultura grega. A Odisseia tem sido exclusivamente estudada como epopeia do regresso. Ulisses regressa a Ítaca mas pode voltar a partir num próximo ciclo de viagens, para se renovar. Este estudo é um texto-síntese que incide sobre alguns aspectos esquecidos da ideia de viagem. Foi uma oportunidade de reler tanto quanto possível, no original, epopeias, bucólicas e líricas de autores clássicos e medievais, romances de cavalaria,  para culminar na poesia épica, bucólica e lírica de Camões.  O ensaio “Viagem interior e via mística no século XVI” demonstra que as Redondilhas “Sobolos Rios que vão” de Camões não revelam um autor místico, tomando S. João da Cruz e Santa Teresa de Ávila como aferidores da mística ibérica.

Ainda sobre Camões, considerei indispensável que se publicasse um estudo recente sobre as duas Cartas de Camões uma vez que havia apenas um texto muito antigo de Hernâni Cidade (in Luís de Camões, Obras Completas III, Sá da Costa, Lisboa) sobre aspectos autobiográficos de quatro cartas que a crítica textual posterior e a mais fiável de Costa Pimpão provou serem apenas duas da autoria de Camões. No seu importante ensaio e tradução “The Correspondence of Camões - with Introduction, Translation, Commentaries and Notes” (Londres,1995, Portuguese Studies, 11, pp.15-61), Clive Willis  tinha estudado a retórica das duas Cartas. No meu ensaio “As Cartas de Camões: da viagem ao pensamento” procurei demonstrar que,  para além  da retórica da época, perpassa a preocupação do humanista cívico, a coragem de denunciar a “pura inveja”, o reverso da viagem, a procura de uma visão sábia, distanciada, de aceitação estóica da vida e o convite à gratuidade.

Dentro do âmbito do século XVI, foi-nos dado estudar questões atinentes ao Outro, na década de 90. Neste sentido descobrimos a importância da obra pioneira de Diego Durán, historiador, viajante na América Latina, o seu anúncio da mestiçagem cultural e a sua  importância para a sua pregação e missionação de dominicano de origem espanhola, emigrado desde a infância, com os pais, para o México (4). Este é um assunto que continua a ter actualidade e nos pode sempre interrogar. O estudo das pinturas dos Astecas  que Diego Durán realizou ainda continua como método de investigação no México de hoje.

Na Idade Média estudámos a “Leitura pluridimensional da pastorela de João Airas de Santiago” por não aceitarmos leituras exclusivamente sociológicas ou exclusivamente simbólicas ou quaisquer outras leituras redutoras.

No século XX, fizemos caminho e uma longa meditação sobre a obra integral  de Sophiia (5) O leitor encontrará uma breve síntese de uma parte desse caminho na introdução ao último ensaio deste volume. Após “Uma leitura de Grades de Sophia”, antologia de 1971, proibida pela censura por ser considerada poesia de resistência, agradecemos convites e/ou pedidos posteriores (6) que nos permitiram reescrever e/ou escrever “Artes poéticas, aedos e cidades  na obra de Sophia de Mello Breyner” e “Mar-Poesia de Sophia de Mello Breyner: Poética do espaço e da viagem”, este último sobre a última antologia publicada em 2001. Defendemos a adequação da leitura ao texto, a leitura como caminho, encontro e reencontro  com o texto (7). Manifestámos a nossa sintonia com a poesia de Sophia de Mello Breyner.

Que estes caminhos de escrita e leitura possam de algum modo tocar e renovar o circuito obra literária-ensaísta-leitor. Que estas obras e autores estudados, em particular Camões e Sophia – cuja presença física rara deixou um vazio recente na nossa vida-, nos convide à renovação interior, à reflexão e meditação, ao desafio para enfrentar as viagens da vida, as viagens literárias e suas metáforas e alegorias, a aceitar o Outro como Outro, a procurar a beleza, a verdade, a justiça, a fraternidade e “apesar das ruínas e da morte” (primeiro verso de Sophia) (8), não desistirmos da procura da elevação do espírito - “o voo da ave do espírito”, na expressão de Sophia de Mello Breyner Andresen (9).   

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Notas

(1) Texto muito próximo do que Helena Langrouva leu no final do lançamento dos seus dois livros Arpejos de uma viandante /Arpèges, Lisboa, 2004, Arpeggio e de De Homero a Sophia. Viagens e Poéticas, 2004, Angelus Novus (patrocínio do I.P.L.B.) que teve lugar em 16 de Fevereiro de 2005, na Livraria Ler Devagar, Lisboa.

(2) Agradeço a António Cândido Franco a sua apresentação de Arpejos de uma viandante/Arpèges na sessão de lançamento de 16 de Fevereiro de 2005, na Livraria Ler Devagar, Lisboa.

(3) Agradeço à Revista Brotéria, Lisboa, a publicação anterior da maioria destes ensaios, em versão muito aproximada;  a sua autorização para que os mesmos fossem posteriormente publicados pelo Triplov. Agradeço a Maria Estela Guedes o seu empenho e muito trabalho para a publicação dos nossos ensaios, quer com autorização da Brotéria, quer em primeira edição electrónica, no Triplov. Dois ensaios tinha sido publicados, em versão menos aproximada, um no volume de Homenagem a Luís de Sousa Rebelo (Vide nota  2 do nosso ensaio “A arte, a vida e os grandes de espírito”, em versão electrónica, no Triplov), outro, em versão muito menos aproximada num volume intitulado Homenagem a Maria de Lourdes Belchior, Paris e Lisboa, 1998, Fundação Calouste Gulbenkian.

Agradeço a José Auguso Mourão a  sua apresentação de De Homero a Sophia.Viagens e Poéticas na sessão de lançamento de 16 de Fevereiro de 2005, na Livraria Ler Devagar, Lisboa.

(4) Este ensaio foi apresentado publicamente no Colóquio Rotas da Natureza, Lisboa, 2003.

(5) Em 1979, no fim do nosso leitorado em universidades francesas, após vários anos de reflexão regular e aprofundada sobre a obra de Sophia de Mello Breyner publicada até então, tínhamos um projecto já muito elaborado de um livro, aceite pela universidade de Paris III. De regresso a Portugal, foram-nos pedidas outras tarefas e não foi possível dar seguimento a este projecto pioneiro para a época.

(6) Respectivamente para o  Colóquio de Alquimia III, Lisboa, 2002 e por uma instituição, 2001.

(7) Estamos de acordo com esta expressão “leitura como caminho, encontro e reencontro com o texto” que encontrámos no ensaio  de José Augusto Mourão,“Ética da Leitura”, integrado no volume A Sedução do Real, Lisboa, 1991, Vega.

(8) Sophia de Mello Breyner, Poesia, Porto, 1944, edição de Autor.

(9) Sophia de Mello Breyner, “São Tiago de Compostela”, Obra Poética III, p.298.

Contacto: helena.lang@sapo.pt