... COM POEJOS
E OUTRAS ERVAS
A.M. Galopim de Carvalho
Âncora Editora, Lisboa, 2001

...Com poejos e outras ervas podia ser, mas não é um livro de alquimia (1); sabendo-se que A.M. Galopim de Carvalho é o director do Museu Nacional de História Natural de Lisboa, podia tratar, mas não trata a obra de hortos, herbários, nem de plantas medicinais; muito menos entre as outras ervas aparece alguma Cannabis officinalis (2); conhecido o autor como geólogo e introdutor em Portugal da dinossauromania, podia tentar-nos com algum Tyranosaurus rex, mas o livro não é de paleontologia nem de geologia. Também não apresenta só uma abada de histórias alentejanas como O preço da borrega e O cheiro da madeira, seus anteriores títulos no espaço da literatura não estritamente científica. Apesar de incluir um receituário, com algumas fórmulas mágicas para confeccionar pratos regionais e outros que são fruto da sua criação pura, ...Com poejos e outras ervas não é um manual de culinária.

Não sendo um Pantagruel (3), traz-me porém Rabelais à lembrança e também um poema barroco, Ao Minino Deus em metáfora de doce, de Frei Jerónimo Baía. Não que haja grandes similitudes entre eles, sim porque, recorrendo por sistema a uma área lexical comum, a do alimento, a natureza desse alimento e os hemisférios em que operam os autores se situam nos antípodas. Ora os contrários atraem-se e por isso podem unir-se.

- Quem quer fruta doce?
- Mostre cá! Que é isso?
- É doce coberto,
É manjar divino.
- Vejamos o doce,
E depois que o virmos,
Compraremos todo,
Se for todo rico.
-Venha ao portal logo;
Verá que não minto,
Pois de várias sortes
É doce infinito.
- Descubra, minha alma.
Mas ah! que diviso?
Envolto em mantilhas,
Um Infante lindo!
(...)

Frei Jerónimo Baia


...Com poejos e outras ervas é um livro de memórias a que o autor anexa ensinamentos de geologia, paleontologia, geografia e outras matérias da sua especialidade, tais como receitas de cozinha, de acordo com a fórmula saber-sabor. São estas palavras tão da mesma família, que em Cabo Verde, onde se fala um crioulo muito gostoso, para o namorado declarar apreço pela amiga, dirá facilmente: "Bô ê sabe!", literalmente, És saborosa. Nas nossas paragens, de alienígena essa declaração só tem o código, já que o conteúdo dela é sobejamente conhecido, noutras e variadas versões.

Estamos então no registo da sensorialidade e da sensualidade : o autor recorda o que sabe bem, e é certo que ele sabe bem o que é o ftanito, tal como bem sabe que receitas alentejanas sem poejos poderão saber divinamente, mas não são alentejanas. Sabe igualmente que os dados sensoriais fornecem uma primeira identificação do que rasa o solo, e é matéria-prima do seu saber, as rochas: que sabor têm, a que cheiram, são baças ou reflectem a luz, deixam-se riscar pela unha, pelo canivete ou só pelo diamante. Já no título O cheiro da madeira é evidente esse conhecimento não teórico nem livresco, avesso ao intelectual, manado directamente dos sentidos.

Os diálogos, nada tendo de platónicos, usam esse antigo dispositivo literário para cruzarem os vários registos do sabor com os do saber, fazendo passar o ensinamento científico por uma singeleza oral que torna, digamos assim, comestível a nomenclatura técnica, do mesmo modo que no tempo de Lineu o recurso à epistolografia era normal para os homens de ciência divulgarem as suas descobertas e teorias, e no tempo da Marquesa de Alorna habitual era passar pelo freio dos versos a bizarria nomenclatural botânica.

O que se cruza denota um estilo, já patente em obras anteriores, mesmo no título Sopa de Pedra, que não é um livro de culinária nem de memórias, sim um manual de geologia sem mais. Consiste ele justamente em misturar o que é do domínio de um saber específico com os sabores do que se leva à boca, escorrendo da afectividade. Em geral recua aos tempos em que domina um outro forno, e um outro fogo que não é o da cozinha, mas que nem por isso deixa de ser matricial como a matéria-prima posta no atanor - os tempos da infância e juventude, tempos em que está presente o calor da mãe, essa que primeiro nos alimenta.

É um livro muito bonito, mais um do autor para enriquecer a biblioteca alentejana. Como diz Maria de Lurdes Modesto no prefácio, o Alentejo deste livro não é o dos montes com que sonham os lisboetas, é um outro, muito mais desconhecido, que é importante conhecer.

Maria Estela Guedes


(1) O alquimista, no seu tempo, saía para o campo a colher os simples, ervas medicinais. A alquimia não trata apenas de metais e da transmutação do chumbo humano em ouro espiritual, abrange tudo o que era possível saber em dada época acerca da physis, por isso passa pelos Três Reinos da Natureza, olha para as estrelas com a astronomia, ocupa-se do corpo com a medicina, etc.. A atenção centrada exclusivamente na Grande ou Pequena Obra é a principal razão para se considerar a Alquimia algo do domínio do obscurantismo ou mesmo da burla, o que é um tremendo equívoco.

(2) Infelizmente, o adjectivo officinalis tem vindo a desaparecer do binómio lineano que identificava as plantas de oficina ou de farmácia, tal como o vulgaris já quase desapareceu do binómio relativo a espécies animais - Lacerta vulgaris, p. ex.. A mudança das categorias taxonómicas em que os naturalistas incluem as espécies, com consequente modificação dos nomes latinos, traz como consequência o obscurecimento da tradição e com ela a perda de memórias para quem faz História das ciências.

(3) Pantagruel, tal como Gargântua, são personagens rabelaisianas. O monge François Rabelais, que viveu no século XV, é um autor cuja obra tem muita matéria alquímica. Os antropónimos dizem respeito a quem come muito e tem grande garganta - não só para comer como para falar na língua das aves, que no caso de Rabelais toma o nome específico de Diva-Garrafa, por ser uma garrafa divina o oráculo invocado num dos Livros - evidentemente Dionísio.

MIGAS COM CARNE DE PORCO

Parta as carnes frescas (limpa, entrecosto, toucinho entremeado) em pedaços para fritar, esfregue-as com polpa de alho esmagado e, algumas horas depois, barre com massa de pimentão, deixando-as assim, pelo menos, 24 horas, no frigorífico, mexendo-as duas ou três vezes. Não ponha sal porque a massa já o tem em excesso. Frite as carnes em banha na quantidade suficiente para confeccionar as migas. No final da fritura retire os resíduos que ficam no pingo, passando-o pelo passador. Frite rodelas de linguiça (facultativo) e junte (ou não) este pingo ao das carnes frescas.

No pingo já filtrado frite uma boa porção de alhos esmagados, com uma ou duas folhas de louro, sem deixar esturrar. Ferva um pouco de água. Verta-a sobre o pão cortado às fatias muito finas que colocou numa tigela. Tape-a e deixe repousar um pouco. Com uma colher de pau vá esmigalhando o pão. Proceda assim até obter uma massa homogénea que se vai enrolando. Verta o pingo quente sobre o pão. Coloque o preparado de novo no tacho onde fritou as carnes, leve ao lume e vá virando, a fim de obter uma crosta dourada. O rolo das migas é servido numa travessa rodeado das carnes fritas, mantidas quentes. Pode acompanhar com rodelas de laranja.



Tempo de Natal em Barrancos
(extractos)

-É esse o nosso ofício - aproveitei para explicar. -Desta vez ando à procura de uns fósseis que provam que aqui foi mar há uns quatrocentos milhões de anos.

-Diga-me cá, -salientou o professor. -E como é que aqui foi mar e hoje é tudo terra em seco?

-Bom, isso tem a sua explicação, mas leva tempo.

-Foi o Dilúvio, -meteu-se na conversa o Padre Agostinho, até aí calado, mas particularmente atento.

-Bem, retorqui-lhe -escolhendo as palavras. -Essa é uma história que nos põe num outro campo que nada tem a ver com o nosso trabalho. Uma história que dava pano para mangas... -rematei, sorrindo-lhe.

-Venha para cá no Verão, por altura das festas, -atalhou o eclesiástico -vai ver que gosta. Depois fica aí uns dias connosco para falarmos destas coisas. Tertúlia já nós temos. O Zé Adrião diz que tem lá no monte um peixe petrificado, metido no xisto. O Mário já foi ver e diz que parece mesmo um peixe, assim, grande -e abriu os braços, ao jeito dos pescadores desportivos quando falam das suas proezas. -Temos de ir vê-lo.

Só ao terceiro dia localizei a tão desejada camada com fósseis. Após duas jornadas de insucesso, ocorreu-me pedir ajuda a um pastor com quem já me havia cruzado. Depois de umas palavras de circunstância e de umas festas ao cão, que logo me reconheceu e se aproximou a abanar vigorosamente a cauda, tirei do saco a dita amostra de ftanito bem embrulhada em jornal.

-Vossemecê já viu por aqui pedra como esta, com estes risquinhos? - perguntei, passando-lhe para a mão o exemplàr que trouxera de Lisboa.

-Já vi, sim senhor - respondeu, satisfeito, com o ar de quem sabia do que estava a falar. -Uns são direitos, outros enroladinhos. Têm assim um denteado como a folha da serra de rodear.

-É isso mesmo. E onde é que os posso encontrar? -prossegui, animado pela resposta.

-Há aí vários sítios com esta pedra -disse, olhando-a atentamente. -É muito diferente do resto. É mais dura e não abre nem deixa meter a folha da navalha, como o xisto. Umas são mais claras e outras mais escuras, como esta. Que eu me lembre, assim de repente, aparece ali para o Calvário. Também as há nas Boticas, em Noudar e ao pé da capela de São Ginés -nomes que foi pronunciado, pausadamente, à medida que os ia tirando da memória dos muitos sítios daquele que era o seu mundo. -Mas há mais. Olhe, ali atrás daquele cerro. Está a ver? -e apontou com o cajado. -Na Cerca das Almas, também se apanha obra desta. Há um caminho que passa no alto, -continuou -na direcção de quem vai para a vila. Em lá chegando, vê logo um barranco fundo à sua mão direita. É aí, na ladeira, que há pedra igual a esta, cheínha destas coisas.

Abri o mapa e orientei-o. Lá estava a Cerca das Almas, a uns três quilómetros dali. Marquei o local que me pareceu corresponder à descrição do pastor, dei-lhe os bons dias, fiz mais umas festas ao rafeiro e pus-me a caminho. Era meio dia quando cheguei ao ponto assinalado, dominado por enorme expectativa e pelo receio de mais uma tentativa falhada. Mas não. A camada fossilífera estava finalmente ali, à minha frente. A cada golpe de martelo a rocha abria-se-me nas mãos, repleta dos tão procurados Monograptus. Sentei-me a comer o farnel que sempre levava por almoço e passei o resto da tarde a partir ftanito e a enrolar em jornais todos os fragmentos que contivessem os ditos fósseis, posto o que regressei à vila, ajoujado ao peso da preciosa carga. No fim dessa tarde foi a festa. Festejava-se a despedida, mas também o achado pelo qual já todos ansiavam e que, naturalmente, todos desejavam observar de perto. Desembrulharam-se as amostras e cada um viu o que quis e comentou ou perguntou o que lhe apeteceu.

-Vai já amanhã embora? Na carreira das sete e meia? -perguntou-me por fim um dos presentes que, de seguida, gritou para o empregado, ao fundo da sala -Juzé Manué, bei acá i trázi maih uma jarra di binhú i uma pihca de catalão assadu.

Missão cumprida, podia regressar. E ainda faltavam dois dias para o Ano Bom. Na bagagem trouxe comigo um talego de chita cheio de lembranças dos meus amigos barranquenhos, uma preciosidade que entreguei à minha mãe.

-Isto faz um jeitão -comentou, no seu estilo de experiente e hábil gestora da economia familiar. -Mas que bem que cheiram os enchidos! E este pão, que coisa linda! E estes queijos e estas azeitonas! Louvado seja o Menino! (...)

                                          A.M. Galopim de Carvalho