REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
ISSN 2182-147X
NOVA SÉRIE

 

 

 

 
 

A.M. GALOPIM DE CARVALHO

1383-85 versus 1974

Em: sopasdepedra.blogspot.com



Ensaio de ficção em moldes de diálogo entre o narrador e a memória de El-Rei D. Fernando I de Portugal. O narrador está sentado num banco do Jardim Botânico, anexo à Escola Politécnica, em Lisboa, e é aí, num espaço frondoso e quase vazio de gente, que a figura do monarca lhe surge como uma espécie de imagem virtual, como num holograma.

D. Fernando

- Como certamente sabeis, eu fui, no dizer do Poeta, aquele “fraco rei” que fez “fraca a forte gente”. – Disse, ao aproximar-se de mim um personagem ricamente vestido em traje que lhe dava o aspecto de um figurante de um desfile histórico da Idade Média. – Não sou real. – Disse. – Sou apenas a aparição do que fui em vida, o último rei da dinastia de Borgonha, ou Afonsina, como também se diz. Ainda hoje me penitencio de ter posto em perigo a independência nacional. Como disse Camões, fui, de facto, um monarca sem grandeza.

- Reza a História que Dona Leonor Teles, vossa esposa, vos dominou completamente.

- Sim. Na vida que vivemos em conjunto e, até, nos assuntos de Estado. O seu poder, que ela própria construiu, perante a minha incapacidade de lhe opor resistência, foi aumentando à medida que o tempo passava. Confesso que fui incapaz de assumir a minha condição de soberano e as intrigas na corte tornaram-se frequentes e desagradáveis. Só quando a morte me transformou nesta memória que sou, tive clarividência para analisar a sua e a minha condutas.

- Li algures que lhe puseram o cognome de “a Aleivosa”.

- E com razão. Com o meu falecimento, em Outubro de 1383, Dona Leonor assumiu a regência do reino e o seu amante, João Fernandes Andeiro, conde de Ourém, passou a viver no paço real. Esta ligação que suportei com alguma dificuldade em vida, compreendi-a perfeitamente quando abandonei o meu corpo. Os espíritos uma vez libertos dos respectivos corpos não se regem pelos mesmos códigos que os vivos lhes determinam, enquanto presos a eles.

- Porquê? – Interrompi, surpreendido por esta afirmação.

- Porque, ao contrário dos vivos, conhecem a totalidade das condicionantes das mais diversas situações. Mas, continuando, dizia eu, esta relação com o conde galego desagradou principalmente ao povo, à média burguesia, e a alguma nobreza, que odiavam a regente e temiam a perda da independência.

- À crise que nos atingira, causada pela peste e pela fome, juntava-se, assim, uma crise sucessória. A dinastia de Borgonha tinha os dias contados. – Acrescentei, interessado na continuação daquela narrativa.

- Viveram-se então dois anos de interregno. – Continuou D. Fernando. - Foi um episódio muito importante da nossa História a que assisti de fora do mundo dos vivos e que, despojado de quaisquer interesses terrenos e sem qualquer possibilidade de agir, pude compreender na sua real dimensão.

- É por esta altura que surge o Mestre de Avis.

Após a minha morte, e em virtude do estado em que deixei o país, estivemos prestes a perder a independência a favor de Castela. Salvou-nos esse valoroso filho ilegítimo de D. Pedro I de Portugal. Foi ele que, ainda muito jovem, com apenas 26 anos, deu início à revolução, pondo termo à vida do conde Andeiro, no final desse mesmo ano.

- Iniciou e levou-a a bom termo.

- Exacto, em 1385, com as tão faladas Cortes de Coimbra que o colocaram no trono, como D. João I de Portugal, depois de uma magistral alocução do jurisconsulto João das Regras.

- D. Nuno Álvares Pereira teve um papel de muito relevo nesta crise.

- Sem dúvida, e todos lhe estamos gratos por isso. Mas, continuando, nesta minha condição imaterial acompanhei, com o maior interesse, toda essa crise e, mais recentemente, já no vosso tempo, o chamado Movimento dos Capitães, em 1974. Isto para dizer que encontro muitos aspectos que me parecem comuns a ambas as revoluções.

- Essa é a opinião de António Sousa Duarte, jornalista e biógrafo de Salgueiro Maia, um dos valorosos “Capitães de Abril”. Segundo este professor universitário, existe razoável paralelismo entre a revolução de 1383-85, que repôs e consolidou a soberania nacional, e a revolução que nos libertou da ditadura do Estado Novo.

- Agrada-me saber que esta tese vem ao encontro de uma convicção muito minha. Mas antes de explanar as minhas ideias sobre este assunto, deixai-me falar da evolução social e política que experimentei nestes seis séculos em que assisti, por dentro, como só as almas podem fazer, à evolução da nossa História e aos seus muitos sobressaltos. Estive nos gabinetes reais, nas chancelarias, nas reuniões secretas de conjurados. Assisti às conversas e combinações havidas de ambos os lados das facções em confronto. Estive também na rua, a ver e ouvir o povo e li documentos confidenciais. Não necessito de chaves para abrir portas, cofres ou gavetas. Acompanhei as revoluções que se seguiram à de 1383-85, nomeadamente, a que correu contra os espanhóis, em 1640, a que pôs fim ao absolutismo, em 1820, a que derrubou a monarquia e deu nascimento à República, em 1910, e, finalmente, a Revolução dos Cravos, em Abril de 1974. Conheci-lhes todos os pormenores e todos os protagonistas, mesmo aqueles de que não reza a história mas, como é evidente, não tinha qualquer capacidade intervenção. Para vossa grande surpresa, devo dizer que estas convulsões produziram uma reviravolta de cento e oitenta graus nas minhas convicções sociais e políticas. Hoje defendo a república e a democracia como os regimes mais dignificantes da pessoa humana. Por outro lado, tudo o que me foi dado assistir no seio da Igreja católica, aos mais altos níveis dos seus protagonistas, atirou-me para o campo da laicidade. Não faço quaisquer juízos de valor acerca da religiosidade das pessoas, o que, aliás, respeito porque sei que ela é um atributo importante dos homens e das mulheres no mundo dos vivos. Falo, sim, das hierarquias desta e doutras Igrejas e dos crimes que, ao longo dos séculos, foram cometidos em nome da Fé.

- É muito curioso e surpreendente o que me estais a revelar.

- E ficai a saber que não fui só eu a passar por esta evolução. Posso dizer que todos os monarcas e outros responsáveis da governação com quem tenho tido oportunidade de comunicar, evoluíram no mesmo sentido. Devo acrescentar que esta evolução é inevitável, uma vez que, libertos do corpo e dos interesses, ambições e compromissos inerentes ao mundo dos vivos, os espíritos desconhecem o medo físico e não têm necessidade de mentir, tornando-se os melhores críticos do que foram e fizeram na sua passagem pela Terra. Na linha da tradição religiosa pagã da antiga Grécia, - continuou o monarca - Platão, o fundador da Academia em Atenas, ensinava nos seus célebres diálogos, “Fédon”, citando Sócrates, que as almas, na sua imortalidade, caminhavam para a perfeição, libertando-se dos medos e de outros defeitos humanos, como seja a inevitável condição de errar, ganhando sabedoria. Na verdade nós sabemos tudo o que quisermos. Só não prevemos o futuro.

- Mas voltemos à comparação de que estávamos a falar.

- Reparai que, quer na revolução que se seguiu ao meu falecimento, quer na de 1974, o povo, embora descontente e desejoso de mudança, praticamente não esteve nas suas géneses e só veio para a rua em apoio aos revoltosos quando estes já tinham vencido a resistência do poder contra o qual lutaram. Quer num caso quer noutro, a revolução adquiriu, de imediato, dimensão popular e nacional. Ambas as revoluções partiram de grupos de cidadãos incluindo burgueses da classe média, intelectuais e militares de média patente. Na do meu tempo, participaram ainda alguns nobres mais letrados e esclarecidos.

- A revolução de 1383-85 surgiu em defesa da soberania nacional, a de há décadas ergueu-se a favor da democracia, contra a ditadura. - Disse eu, no intuito de convidar El-Rei a continuar.

- Exacto. Mas ambas foram dirigidas por elites, em nome do povo. Ambas tiveram por meta mais e maior justiça social, melhor acesso de todos os cidadãos a todas as oportunidades. Em suma, a melhoria das condições económicas, sociais e culturais.

- Ainda segundo o mesmo jornalista, Salgueiro Maia protagonizou, no 25 de Abril de 1974, um papel muito semelhante ao do Mestre da Avis, na crise dinástica que acabou por vencer. Mas eu alargo esse papel a mais uns tantos dos nossos “capitães”.

- Acontece que, na minha condição de espírito ubíquo e intemporal, eu acompanhei as reuniões secretíssimas destes militares que antecederam o golpe. Sabia que as cantigas “E Depois do Adeus”, do Paulo de Carvalho, e “Grândola, Vila Morena”, do Zeca Afonso, eram as senhas para eles começarem a sair dos quartéis com as suas tropas. No dia 25 eu estava, ao mesmo tempo, no Terreiro do Paço ao lado do Salgueiro Maia, no quartel da Pontinha com o Otelo Saraiva de Carvalho, no Cristo Rei com os artilheiros de Vendas Novas, no quartel da GNR, no Carmo a ver e ouvir o Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, impotente face a uma explosão de alegria que alastrava a Lisboa e ao país. Isto para citar apenas alguns dos envolvidos nos acontecimentos daquela gloriosa jornada. Estive em todas as ruas de Portugal inteiro, nos dias que se seguiram às duas revoluções, espaçadas de cerca de seis séculos, e posso testemunhar o júbilo de um povo e a sua ingénua esperança em melhores dias. Mau grado as dificuldades que estais a viver, não podemos negar que, com o 25 de Abril, muita coisa mudou para melhor em Portugal.

- Isso é verdade, mas muitos daqueles que vieram para a rua, de cravos vermelhos nas mãos e nas espingardas, saudar a vitória, a sonharem dias felizes, estão no desemprego ou tentam hoje sobreviver com ordenados e pensões de miséria e vêem os filhos sem futuro. Cada vez há mais pobreza e a desigualdade crescente entre os ricos e os pobres devia preocupar-nos muito mais. É triste pensar no estado a que chegaram a educação e a justiça, nas promiscuidades que geram a corrupção neste nosso pobre país e na irresponsabilidade de alguns dos nossos políticos que só o foram porque a ”gloriosa madrugada” nos devolveu a liberdade.

- Tendes a liberdade, mas estais longe de conseguir a solidariedade social.

- Isso é bem verdade. Como escreveu, recentemente, o jornalista Baptista-Bastos, no Diário de Notícias, estamos hoje “reféns de dois partidos desprovidos de grandeza, intelectualmente asténicos e politicamente impostores”. Os portugueses e, em especial, os valorosos militares de Abril, tantas vezes maltratados pelos políticos, têm toda a razão para se sentirem atraiçoados.

- Acredita que tenho pena de vos não poder ajudar. Vamos ficar por aqui. Vou assistir à conversa privada entre o primeiro-ministro e o líder do maior partido da oposição. Adeus. Foi um prazer falar convosco. - Deu El-Rei por finda a conversa.

- Adeus, D. Fernando. – Disse eu, mas a sua imagem já desaparecera.

A.M. Galopim de Carvalho. Professor jubilado da Universidade de Lisboa. Geólogo e escritor. Foi diretor do Museu Nacional de História Natural de Lisboa.
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