O LIVRO INVISÍVEL DE WILLIAM BURROUGHS
FLORIANO MARTINS

INDEX

Livro invisível
When you hear sweet syncopation
Pode repetir?
O que estamos fazendo aqui?
O que sente pelas mulheres?
That's the way

Pode repetir?

BURROUGHS 1 – Pode repetir?

BURROUGHS 2 – Não sei para onde a ficção normalmente se dirige, mas estou me dirigindo deliberadamente para toda aquela área do que chamamos sonho. O que é um sonho precisamente? Uma certa justaposição de palavra e imagem. Leio em um jornal alguma coisa que me lembra ou que tem relação com alguma coisa que escrevi. Então recorto a fotografia ou o artigo e colo em um álbum de recortes. Em um certo sentido, um uso especial de palavras e imagens pode conduzir ao silêncio. O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa percepção do que nos cerca. Samuel Beckett quer ir para dentro. Antes ele estava em uma garrafa e agora está na lama. Eu aponto na outra direção: para fora.

CONFERENCISTA – Eis o que busca deliberadamente Burroughs: a percepção do que nos cerca.

BURROUGHS 3 – O escritor só pode escrever sobre uma coisa: o que está diante de seus sentidos no momento em que ele escreve. Sou um aparelho de gravação. Não pretendo impor história, enredo, continuidade a ninguém. Na medida em que obtiver sucesso nesta gravação direta de certas áreas do processo psíquico, poderei ter uma função limitada. Não pretendo entreter ninguém.

BURROUGHS 1 – Quando você já tem a mescla ou montagem, segue as sugestões que lhe oferece o texto ou o ajusta ao que quer dizer?

BURROUGHS 3 – Ele.

(Burroughs 3 aponta para Burroughs 2.)

BURROUGHS 1 – Sem dúvida. Ele.

BURROUGHS 3 – Psiu.

BURROUGHS 2 – Diria que sigo as sugestões que me oferece o novo arranjo do texto. Esta é a função mais importante do cut-up. Às vezes pego uma página, fragmento-a e consigo uma idéia totalmente nova para uma narração linear, prescindindo do material fragmentado, ou pode ser que apenas aproveite uma ou duas frases.

BURROUGHS 1 – Inconscientemente?

BURROUGHS 2 – Não tem nada de inconsciente; é uma operação muito precisa. O sistema mais simples é pegar uma página, cortá-la vertical e horizontalmente pela metade e depois recompor as quatro partes. Agora, é uma forma de cut-up bastante ingênua e simples, que serve apenas para obter alguma idéia de recomposição das palavras da página em questão. Tudo é consciente, não há escritura automática nem procedimentos inconscientes. Não se sabe o que vai sair, simplesmente pelas limitações da mente humana, igual a um indivíduo médio em uma partida de xadrez é incapaz de prever cinco movimentos. Cabe supor que uma pessoa com boa memória fotográfica seja capaz de ver uma página e desmontar mentalmente o conteúdo, ou seja, mudar a posição das palavras… Há pouco escrevi um roteiro cinematográfico sobre a vida de Dutch Schultz. Agora tem uma forma totalmente linear, mas, no entanto, o desmontei página a página e subitamente me vinham novas linhas que logo fui incorporando à estrutura do relato. O resultado é um tratamento cinematográfico perfeitamente normal, de todo inteligível para o leitor médio, que não é, em absoluto, escritura experimental.

BURROUGHS 3 – É um homem metódico e de memória fotográfica.

BURROUGHS 2 – Claro que, pensando bem, The waste land foi a primeira grande colagem cut-up, e Tristan Tzara também tinha feito alguma coisa nesse sentido. John dos Passos usou a mesma idéia nas seqüências de The camera eye. A construção aristotélica é uma das grandes algemas da civilização ocidental. Os cut-ups são um movimento em direção à derrubada disso.

BURROUGHS 1 – Não seriam uma obsessão sua por fundar alguma coisa? Uma obsessão pela inovação verbal?

BURROUGHS 3 – Quanto tempo leva um homem até aprender que não pode nem quer desejar o que quer? É preciso estar no inferno para se poder ver o céu. Vislumbres, clarões de alegria serena e intemporal, uma alegria tão velha como o sofrimento e o desespero. O velho escritor já não conseguia escrever porque tinha chegado ao fim das palavras, ao fim daquilo que pode ser feito com palavras. E depois?

BURROUGHS 1 – E depois?

BURROUGHS 3 – E depois, Burroughs?

(Apagam-se as luzes sobre as cadeiras. Burroughs 2 dirige-se a um caixote sobre o qual se encontra uma máquina de escrever. Pega uma cadeira jogada em um canto do palco, ao fundo, senta-se e começa a martelar a máquina. Enquanto isto Burroughs 1 sobe ao palco e acende algumas velas espalhadas por várias partes. Ao falar, segue se movimentando de um canto a outro. Apaga-se a luminária sobre a mesa. Logo os quatro Burroughs iniciam um rápido diálogo.)

CONFERENCISTA – Acaso as palavras não são objetos secretos e intocáveis?

BURROUGHS 1 – A linguagem é essencialmente mistificação.

BURROUGHS 2 – Serei um polvo?

BURROUGHS 3 – As palavras não são sagradas.

CONFERENCISTA – O que fazer com tudo isso?

BURROUGHS 1 – As palavras são necessárias.

BURROUGHS 2 – Eu sou o que sou / O que sou eu sou.

BURROUGHS 3 – Tudo depende do resultado.

CONFERENCISTA – Eu sou o artista

BURROUGHS 1 – Por que estamos aqui?

BURROUGHS 2 – Serei um polvo?

BURROUGHS 3 – Eu sou a palavra apagada.

CONFERENCISTA – Tu não és senão um livro que foge de si mesmo.

BURROUGHS 1 – A barata de Kafka fugiu apavorada.

BURROUGHS 2 – Sinto que vou dar à luz um horrível inseto.

BURROUGHS 3 – Tudo depende do resultado.

CONFERENCISTA – Tu és o livro invisível.

BURROUGHS 1 – Eu sou tua alma.

BURROUGHS 2 – Eu sou o que sou / O que sou eu sou.

BURROUGHS 3 – Tudo depende do resultado.

(Uma trilha de rangidos se mescla ao barulho das teclas da máquina de escrever. Logo Burroughs 2 tira uma folha de papel da máquina. Novo diálogo entre eles.)

 
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