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O GAIO MÉTODO
Maria Estela Guedes* & Nuno Marques Peiriço**
IN: Actas do Congresso Luso-Brasileiro "Portugal-Brasil: Memórias e Imaginários", volume II, Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 489-501, 2000
O GAIO MÉTODO
b. Comparação de textos e análise

Parte-se do princípio de que o objecto científico é estável dentro de certos limites, ou não seria possível à ciência identificá-lo, descrevê-lo e ainda menos ter a pretensão de estabelecer as leis da Natureza: a altitude de uma montanha, a menos que haja um cataclismo, não pode ser agora uma e daqui a nada outra; uma ilha não pode desaparecer do mapa como se nunca tivesse existido; os caracteres de uma espécie não podem mudar de colheita para colheita, a menos que se trate de híbridos artificiais, monstros ou quimeras; um explorador não pode ter dezenas de nomes, várias nacionalidades, morrer várias vezes vezes e coligir antes de nascido.

O espaço em que trabalhamos é o da veridicção, mas revelem-se os factos verdadeiros ou falsos, nunca há propriamente mentira e a verdade também não é dado indiscutível. A tarefa mais árdua para nós é saber quais as margens de erro em cada campo científico, para separar o lapso da informação deliberadamente fantasista, e para isso há que estudar o assunto e pedir auxílio a pessoas competentes. Nesta altura raramente ele aparece, e o mais natural é o especialista, certamente sem querer, iludir o problema com uma série de interpretações: o bloco pode ser um meteorito, pode ter sido arrastado num glaciar, pode ser uma pepita, pode provir de um filão, etc.. Também pode ser, nesse caso, um presente das fadas ou uma bola com que brincam os seres incandescentes que vivem no centro da Terra, quando vêm à superfície respirar. O pode ser e o parece não ajudam, quando provêm do sector científico cuja competência é justamente a de dizer o que o bloco é. Por isso há que agradecer a Isabel Cruz que, sem pestanejar com as incongruências documentais, não só explicou o processo de cementação como fez uma demonstração pública, tal como narra na sua comunicação a este Congresso.

O Pico de Santa Isabel, em Fernando Pó, tem várias altitudes, compreendidas entre 1400 e 10000 metros; a Chioglossa lusitanica e o Dodó mudam de tamanho e cor, a sua terra típica varia, são endemismos mas ao mesmo tempo espécies que aparecem muito longe do seu habitat. No caso do Dodó, dois autores - Damião Peres e Fontoura da Costa - declaram que a ilha Rodrigues, um dos seus habitata, só existiu na ardente imaginação dos navegadores portugueses do século XVI. O naturalista Francisco Newton, antes de nascido já coligira em Timor, nas Celebes e em Java, é tratado por nomes como Frank, Mewton, Reesetán, etc., morreu em Matosinhos duas vezes e pela terceira quinze anos mais tarde, em S. Tomé.

Para que serve então a pesquisa o mais possível exaustiva de documentos? - para comparar descrições e relatos, a ver se os factos anómalos de discurso são fortuitos ou sistemáticos. O Pico de Santa Isabel tem cerca de 3300 metros de altitude. Números à roda disso podem considerar-se erros devidos a falhas de instrumentos, mas os disparatados 1400 e 10000 só existem para comprovar que todos os dados altimétricos fazem parte de um sistema único de comunicação, a gaia ciência. É este sistema o objecto do nosso estudo: a dado conto, cada autor acrescenta seu ponto, de modo que o conjunto de textos se revela por fim uma paródia colectiva, em que nada bate certo excepto a paródia como facto de comunicação.

Que interesse têm os autores em exibir gralhas espalhafatosas? Foi neste momento que a distinção de Kuhn entre ciência normal e ciência extraordinária se revelou de grande utilidade - o discurso da segunda, ou gaia ciência, tem por fim ocultar, revelando, ou vice-versa. Os disparates enunciados sobre o bloco revelam que ele é falso enquanto cobre nativo, mas verdadeiro enquanto obra de arte. De modo geral, o próprio discurso fornece as soluções dos problemas, nós é que nem sempre estamos preparados para as descobrir.

O discurso das gralhas passa pelas mutações ortográficas, que constituem um sistema, por só incidirem na nomenclatura - nomes de pessoas, de espécies e de lugares; passa pelos cálculos matemáticos absurdamente errados; pela subversão da historiografia; pela criação de seres e locais imaginários, etc.. Para exemplo de sistema de anomalias, apresentamos um mapa com díspares informações sobre o bloco de cobre (anexo C). Não só se contradizem como Vandelli, nas quatro vezes em que fala dele, nas quatro presta informações diferentes, quanto ao peso, dimensões e distância a que foi encontrado de São Salvador da Bahia. O mesmo se diga das dimensões, que variam de texto para texto. Ora a imagem que passa para o leitor, nestas circunstâncias, não é a de um objecto inanimado. O que cresce e mingua quando algo o anima é o orgânico.

Um dos pontos de discordância entre os autores é o nome do Juiz de Fora da Cachoeira. Ora aparece como Marcelino, ora como Manuel da Silva Pereira. O segundo não é uma personagem, existiu de facto, e em aparência teve acidentes na vida iguais aos de Marcelino, o que abre um novo campo de pesquisa, que não explorámos.

 
 
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