EVOÉ
 - Relatório de uma missão no Brasil /A pedra de cobre nativo da Cachoeira
Maria Estela Guedes

INDEX
I
O JARDIM DO ÉDEN
I - SENTIR O BRASIL
II - COLABORAÇOES E PERMUTAS
III - INVESTIGAÇÃO
IV - EXPEDIÇÃO À CACHOEIRA
PESOS E MEDIDAS - EQUIVALÊNCIAS
NATURA OU CULTURA?

SILVA DE DOCUMENTOS SOBRE A PEDRA DE COBRE

INSCRIÇÃO GRAVADA NO COBRE
DOMINGOS VANDELLI, 1797
GABRIEL SOARES DE SOUSA
LINK - ACCURSIO DAS NEVES
ESCHWEGE - E NOTAS DO TRADUTOR
MAWE - ROCHA POMBO

EVOÉ - SENTIR O BRASIL

Com faustosa simpatia, Carlos Alberto Filgueiras, da área química, foi-me buscar ao aeroporto e logo ali entregou os textos dos brasileiros para o livro Mosaico sm figura (1).

Com ele visitei o Jardim Botânico do Rio, a seguir levou-me a Petrópolis, onde almoçámos e visitámos o Museu Imperial, a Sé e um posto de Polícia, onde ele teve de liberar, rnediante quantia solicitada, o automóvel entretanto transladado de um local onde nos fora garantido que podia estacionar.

Chovia desabridamente, como diz Manuel Galvão da Silva na carta em que narra a infrutífera demanda da mina de cobre da Cachoeira (2). Como chovia desabrídamente, regressámos cedo ao Rio, onde ainda subimos à Igreja da Glória e ao seu apartamento com vista para o Redentor e floresta da Tijuca.

Regresso ao Acapulco Copacabana Hotel, que se recomenda pelas três estrelas que valem o Cruzeiro do Sul, dada a localização e suite (quarto e escritório). É domingo ainda, mas como o engenheiro Miguel Gastão da Cunha, nosso segundo colaborador no Rio, se faz esperar para a janta, parece segunda-feira.

Contemplo a rua onde continua a chover desabridamente e os sapatos cujo destino imediato foi o lixo. Miguel chega enfim, com as suas aristocráticas maneiras e crioulas teorias :

1ª - os brasileiros não ligam às horas (um pouco mais e seriam elas de pequeno almoço);

2ª - os brasileiros, porque nação resultante de mistura de escravos com senhores, etc., têm de ser tratados com afecto e sem formalidades, de modo directo, conversando, telefonando, teoria cuja matemática precisão verifiquei, ao ouvir desconhecidos tratarem-me ao longo dos quinze dias brasílicos por "minha flor", "meu bem", e mesmo "meu amor".

Isto a contrariar um nativismo de génese anti-colonialista que se manifesta hoje na piada ao português.

Preparando e conservando as colecções (?!)

Nativismo

Português é aquele estrangeiro que levou tudo quanto podia nos navios em que carregava como lastro para o Brasil as pedras de lioz numeradas com que se ergueram catedrais e palácios - levou pedrinhas, umas sem cor, outras de um verde de beleza sideral, outras rubis e opalas, e ouro em barra e em folheta, e cobre teria levado, se o encontrasse, como levou salitre ao natural, pau-brasil e jacarandá da Bahia. "Troca justa, para eles, os portugueses", hei-de ouvir dizer, na Barra, frente ao forte do farol, de onde se percebe estar S. Salvador entre oriente e ocidente, entalada a cidade numa ínsua que defronta dois pélagos, mais de sentimento que conceptuais.

"Porque o Brasil é uma falsa democracia racial"; "Você vai no Pelourinho ouvir a batucada? Música de preto, nós temos pretos a mais por aqui" - frases ouvidas no correr dos discursos.

Memória histórica e património genético deste povo acolhedor e bom são portugueses, mas há ainda esse remanescente nativismo que um século antes da independência levou a ela, por processos em que a distinção entre nascido na América e nato em Portugal não é o menos abrasivo. O primeiro denegava a portuguesia, era americano - nativo. O outro, fosse embora pai ou avó, era o português -estrangeiro, alienígena, o inimigo.

À distância de séculos, sejamos frios na verificação: o elo afectivo mais forte entre os falsos nativos e os portugueses afectos ao regime colonial era o ódio.

Entre os falsos indígenas, massa populacional importante era a dos pardos. Eram pardos os alfaiates e outros operários condenados na sequência da revolução baiana. Tal como são negros os soldados do Regimento de Henrique Dias, que adiante hão-de aparecer (3).

Na Baía festejam-se duas datas de independência, porque em toda a parte ela se fez com documentos e o grito (falso): Independência ou morte!, excepto em S. Salvador, em que se alcançou mais tarde e à custa de ferro e fogo.

Por ironia, sendo o Brasil parco em cobre e a Cachoeira da Bahia desmunida de minas dele, neste contexto nativista surge(m) impressionante(s) bloco(s) de cobre - e nativo além de cobre - nativo da freguesia da Cachoeira, no Estado da Bahia.

Os nativistas ainda hoje sentem a independência como obra de uma nação de brasileiros contra Portugal. Na realidade, o Brasil não era um pais, sim uma colónia portuguesa, cuja independência foi obra de um sector da sociedade portuguesa, quer em Portugal quer no Brasil. A independência do Brasil nasceu na Universidade de Coimbra, com professores como Domingos Vandelli e alunos como José Bonifácio.

O verdadeiro indígena - o índio - não tem voz na querela nativista. Não teve voz na Inconfidência Mineira, nem na Inconfidência Baiana, nem na revolta de Pernambuco. lnexistente como ser político, só tem lugar nas curiosidades da etnografia

O espaço interior

Com o Miguel, amante da cidade, ligado ao seu património cultural, visitei o velho Rio, com os museus e igrejas, ruelas de comércio e avenidas, marcado o encontro no bistrot da Praça XV , o único que ali existe, não há que enganar.

Ali esperei pelo Miguel, excogitando que era ocioso levantar-me às seis da manhã para ter tempo de dar conta dos recados, as instituições só abriam às dez, o pessoal superior só chegava depois das catorze. Com esta do levantar às seis já eu tinha dado um passeio matinal por Copacabana, já tinha visitado duas vezes consecutivas o Museu Histórico Nacional, sem conseguir encontrar vivalma que me garantisse o empréstimo das gargalheiras, máscaras e outros instrumentos de tortura para impedirem os mineiros de roubar, já eu tinha assistido a uma missa por alma de desconhecido coronel acabado de passar à dimensão paralela, já eu tinha calcorreado todo o cais e visitado o museu da companhia de navegação, sem contar com a pesquisa científica imprescindível ao descobrimento de um restaurante invisível na rua, abrigado em pátio interior do Paço Imperial, mas era uma hora e meia da tarde e eu pontualmente sentada no Bistrô da Praça 15.

O império. A independência movida por republicanos desde os confins do século XVlll - José Bonifácio chegou a acusar os rivais, os da outra loja, de serem carbonários (4), ele, que era apenas grão-mestre do Grande Oriente -, mas paira na actualidade brasileira um rasto de perfume imperial, ou cauda de vestido com cintura pelo seio.

Ciência irónica - pode ser oricalco!

Chovia desabridamente quando subimos ao Convento de S. Bento para ouvir o cantochão das vésperas. Nisto de sentir o Brasil ressinto essa grande pose da crise dos valores da nossa modernidade, morte de Deus, Álvaro de Campos chamando o Esteves da tabacaria e o Fernando a ceifeira sem metafisica, o outro, o mais arrebatado de todos, Almada, batendo com o pé em cima da mesa da Brasileira a enterrar o passado século que sobrevivia como bafienta academia: "Morra o Dantas, morra! Pim!"

Almada, o clown, representa o número de ouro.

Pessoa, esse, dirá infinitamente - Neófito, não há morte!

Ressurrectos de uma grande pose decadentista, fin-de-siècle, saudosismos, ó Mário, faltavas tu com os teus freudianos mistérios egipcíacos, ó meu Esfinge Gorda!

Com a morte de tudo a pesar 666 arrates na alma, e negando, Não, não acredito em nada!, eles acreditavam, acreditavam neles mesmos, por isso abriram as portas do século XX e continuam a dar-nos passagem para o milénio que toca à campainha.

Acreditar em quê?

Todo o bloco da Esfinge se põe sobre as patas desta maneira:

- Acredito que é cobre nativo porque na inscrição se diz que é cobre nativo. Crença na palavra, a Palavra é revelação, cada palavra é um estalo de verdade.

A confiança - em Vandelli, na Palavra do Mestre - a funcionar como se fosse um critério científico.

Eu também confio, mas no segundo sentido da proposição irónica:

- Tudo o que diz respeito ao bloco é falso porque Vandelli o marcou com um ferrete e atribuiu-lhe quatro pesos, só um deles sujeito de errata !

A confiança em Vandelli a fazer as vezes de critério científico.

Na verdade, quem diz que é erro o facto de Vandelli dar quatro pesos não conseguirá verificar a sua hipótese, ela é intestável, a-científica, metafisica.

Eu digo que tudo é premeditado, deliberado, estruturado como um romance, em que tudo tem de bater certo ou a mensagem não atinge o destinatário. Não o conseguirei provar, apenas mostrar o absurdo, a máscara - eventualmente a fraude. Posso esparrar a estátua, pôr-Ihe a nudez à vista, mostrar as uvas. Não tenho meios de provar que o bloco de cobre é uma estátua.

A arte é assim, também - que meios temos nós para distinguir a arte da não-arte? Tal como a ciência, abrigamo-nos sob a barraca do consenso.

As ciências naturais lidam com o mundo como se tudo nele fosse natural, sem à partida distinguirem o natural do artificial.

As Humanidades não distinguem o erro do propósito de enganar, não têm meios para saber o que é que, num texto, decorre da vontade do autor ou é involuntário.

Se a ciência parte do princípio de que tudo o que está na natureza é natural, as humanidades partem do princípio de que é erro todo o desvio à norma.

Posto isto, adeus criação pura, adeus subversão estética, adeus verdade, adeus, não tendo meios de distinguir falso de verdadeiro, não podemos acreditar em nada - E chega a Morte com seu perfume a naftalina. Total, irrevocável, ponto final em tudo, nada merece confiança, adeus, bye, ciao, artes, letras e ciências, religião e artesanato, é tudo ideologia, tudo a mesma algaraviada, morra...

Eles podiam dizer "Morra o Dantas!", nós nem símbolos temos para derrubar -

A Europa é um palco onde meia dúzia de frades e de intelectuais, cruz às costas e cabeça ornada de uma coroa de espinhos, gritam que Deus morreu, não está aqui, foi dar uma curva e não voltou.

Mas a plateia está muito vazia, umas pessoas ocupam os dias a fazer yoga, outras a ler o Tarot, outras na madrassa aprendem o AI-Fathia e que Deus não tem filhos, outras, enfim, completamente iluminadas, já conversam com Deus, tu-cá, tu-lá.

Na imensa e nova América, John Horgan publica O fim da ciência, deixa cá ler, compro o livro no aeroporto do Galeão, e eis-me excogitando, eu, que me levanto às seis da matina para dar conta de todos estes recados da ciência e da metafisica, além da diária La Niña que tenho de enfrentar, com as suas chuvadas desabridas:

- Não, na América o defunto não é Deus, mas na América também há os grandes mortos, próprios de qualquer apocalipse milenarista que se preze, finissecular=fim do Mundo, afinal nos Estados Unidos também há intelectuais que proclamam a morte em teatros vazios, coisa que a Almada não aconteceu, Brasileira cheia, e ele de dedo apontado a disparar de cima da mesa:

- Morra o Dantas, morra! Pum!

Uma proximidade entre pensamentos separados pela desmesura atlante merece contudo um Ah! de cumplicidade: Horgan fala de ciência irónica, a que rodeia de duplicidades o bloco de cobre, aquela que justamente me levava ao Brasil.

Ciência irónica - o que é?

É aquela que se exprime em dados com significado duplo, gerando por isso múltiplas interpretações - como os textos sagrados, a poesia, ou a metafisica segundo Karl Popper.

A ironia ocorre quando um sujeito produz um enunciado que ao mesmo tempo mente e é verdadeiro, é isto e o seu contrário - É um monumento tão requintado, tão elegante! Máscara ou face quando nos velamos, e ficamos assim, feitos dois. Infelizmente, a ironia só funciona em presença de todos os dados da situação, quando sabemos que há face e máscara a representarem o mesmo papel. O itálico só terá dois sentidos se eu declarar que ele se refere ao monumento constituído pela peanha com o bloco de cobre (5).

- É um monumento tão requintado, tão elegante....

Ciência irónica é aquela cujos dados se interpretam através do jogo dos possíveis (Jacob), do talvez que hipotetiza tudo o que se contém entre mindinho e polegar (Guedes), ou da fórmula hermeticamente aberta (Eco) do pode ser...

Ciência irónica é aquela cujo discurso provoca no leitor esta reacção, nem sempre cordial e cúmplice:

- Tás a gozar comigo, meu!

Baco ou o Rei Morno - pode ser

Carne vale - vale tudo, incluindo comer carne, etc..

Perguntemos, de acordo com a informação coligida numa vintena de fontes primárias e terciárias, se não forem todas quatemárias, escritas e orais, e logo as respostas, pelo simples facto de não serem uma - a resposta -, darão o exemplo mais inequívoco de ciência irónica:

- O que é aquela pedra com uma inscrição em latim, datada de 1782, na qual se diz pesar ela 2666 libras (cerca de 1200 quilos) e ter sido achada perto da cidade da Cachoeira?

- Pode ser um bloco de cobre

- Pode ser uma pedra de aurichalcum

- Pode ser um bloco de cobre errático, arrastado num glaciar

- Pode ser um meteorito

- Pode ser uma pepita de cobre

- Pode ser uma porção de cobre magmático

- Pode ser uma caldeira derretida

- Pode ser um bloco de cobre nativo ou virgem

- Pode em vez de virgem ser mamona

- Pode ser do riacho Mamo cabo ou Momocabo

- Pode ser uma estátua de Mammon ou Momo, outros nomes de Baco, esparrada em uma das faces para bem se ver a uva

- Pode ser da Nazaré

- Pode ser da ilha de Vénus, Cyprus - cuprum

- Pode ser de Vitória, sempre à beira do Paraguaçú

- Pode ter sido enviado de Coimbra por D. Francisco de Lemos

- Pode pesar 2666 libras ou arrates

- Pode pesar 1666

- Pode pesar 81 arrobas e 24 libras

- Pode pesar 82 arrobas e 10 libras

- Pode ser um raríssimo bloco de cobre nativo

- Blocos de cobre nativos eram vulgaríssimos, já em 1587 Gabriel Soares de Sousa disse que na Bahia havia uma serra que era uma mina de blocos de cobre a descoberto

- O manuscrito de 1587 de Gabriel Soares de Sousa pode ter sido escrito séculos mais tarde por Francisco da Cunha

- Pode o bloco ter sido encontrado em 1782

- Pode ter sido encontrado em 1682

- Pode ter sido enviado em 1797 ou 99

NOTAS DA PRESENTE EDIÇÃO

(1) Esses textos foram publicados na revista "Atalaia-Intermundos" e estão em linha no TriploV.

(2) Em linha, nas Alquimias, "Pedra de Cobre", e publicado no volume II de "Discursos e Práticas Alquímicas", Hugin Editores, Lisboa, 2002.

(3) Na sequência do sequestro da Pedra de Cobre. Veja a bibliografia do meu artigo, "Martinho de Melo e Castro e as riquezas naturais". A imagem da farda dos Henriques vem das "Cartas de Vilhena".

(4) Kloppenburg identifica José Bonifácio como carbonário, iniciado na Carbonária italiana no curso da sua viagem pela Europa como bolseiro de Pombal. Dom Boaventura Kloppenburg, Igreja e Maçonaria, conciliação possível? Vozes, Petrópolis, 1997.

(5) A peanha evoca irresistivelmente o que se chamava "vaso de noite".

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