OS DUPLOS DE JOSÉ SARAMAGO

JOSÉ SARAMAGO
O HOMEM DUPLICADO

Editorial Caminho, Lisboa, 2002, 318 pp.

No próximo colóquio "Discursos e Práticas Alquímicas", que terá lugar no TriploV, um dos tema é este: "Hybris, rebis e outras coisas duplas". O romance de José Saramago é bom ponto de partida para uma comunicação, apesar de não haver nele nada de alquímico. E também não há nele nenhum discurso sobre os clones nem aproveitamento explícito dessa tecnologia biológica, se bem que deva ter sido a sua motivação. O clone e o clonado não são iguais, porém dois ou mais clones com a mesma origem são-no, em princípio, e daí um dos exemplos que ocorrem no seu debate ético ser a criação futura de exércitos de pessoas com os mesmos caracteres. Se um dia tal acontecesse, os modos de identificação teriam de mudar radicalmente. Com os actuais, um exército de soldados iguais seria impossível de comandar e controlar. Tudo pode duplicar-se, excepto justamente a identidade. No livro de José Saramago, é por aí que se começa, pelo primeiro termo da identificação convencional, o nome. Não há nomes próprios duplicados no livro, mas existe a concepção de duplos das palavras, como podemos ler no excerto em baixo. O duplicado humano é apenas um dos duplos no romance, há outros.

O autor apresenta-nos duas personagens masculinas fisicamente iguais, Tertuliano Máximo Afonso, professor de História, e António Claro, um obscuro actor de cinema. Em aparência, o romancista pôs-se este problema, que vai resolvendo ao longo da narrativa: que aconteceria se duas pessoas iguais, sem nenhuma relação de parentesco, se encontrassem frente a frente? A solução do problema abre para outro tipo de romance, o de terror. Os Frankensteins do nosso tempo vão ser os clones, não é tolerável a ideia de um igual físico pôr em risco uma identidade que só é evidente para nós mesmos, porque é a nossa consciência e inconsciente, necessitando por isso de passwords para ser visível a terceiros. Para Tertuliano ser reconhecido pela mãe, usará uma password, o nome do cão, "Tomarctus", alusivo a qualquer entidade da História do Egipto...

Talvez haja um aviso no livro: não deixemos entrar dentro dos muros da cidade esse cavalo de madeira, Tróia não é assim tão inexpugnável. Parece tudo tão irreal e fora do senso comum - clones para quê, num mundo superpovoado? - mas se tal vier a acontecer nem todos terão palavras-chave miraculosas como "Tomarctus", nem pais e mães a quem apresentar o login, para que nos reconheçam como o não-outro e nos deixem entrar em nossa própria casa.

O romance não é de terror, apesar de Tertuliano se sentir aterrado, sim de exposição dos dados do problema e seu desenvolvimento: o encontro entre os iguais desencadeia todo o tipo de paixões, mas nenhuma delas é o amor, a amizade, nem sequer a vaga simpatia. Essas paixões movem-se para a exclusão mútua, pois cada um sente que só ele tem direito à existência, com a alegação de ser o original e o outro uma cópia. Daí a importância que assume a hora de nascimento, já que Tertuliano e António Claro nasceram no mesmo dia e ano: um minuto de diferença basta para assegurar ao que nasceu primeiro a garantia de ser o original.

Cópias e originais são valores relativos à arte, transportá-los para o domínio biológico equivale a considerar que as pessoas, neste caso, estão abrangidas por um cânone estético, e certamente estão, estamos - a nossa vida é condicionada também por padrões de gosto e modas, e o nosso gosto exclui as que se afastam das normas, tal como exclui pelas mesmas razões plantas, animais ou quaisquer objectos que achamos repulsivos. Não há nada de extraordinário neste comportamento, por muito errado que seja, ele é banal. Porém já é estranho pensar que a exclusão do outro tenha por móbil o facto de ter nascido depois de nós, que um gémeo a ter visto a luz minutos antes do irmão seja mais valioso porque original. E então temos outro ponto para reflectir, que já não será próprio da estética, sim da teologia, relativo à Criação: ora nenhuma religião que eu conheça aceita o homem como Criador, uma vez que o homem é uma criatura. Criada à imagem e semelhança de Deus, a criatura é uma cópia e não um original, por isso sósias, gémeos, clones, etc.. seriam cópias de cópias... Nenhum direito assiste a ninguém para exluir o outro de acordo com princípios de originalidade. Mas talvez José Saramago nos esteja a advertir de que não é bom deixar entrar em Tróia o cavalo de madeira: num mundo de iguais, vale o original, e o original é o mais velho...

É um romance de reflexão, "O homem duplicado", e nem de outra forma poderia desenvolver-se, já que as personagens são espelho uma da outra - o espelho serve para isso mesmo, para reflectir. Mas a principal reflexão vai incidir noutro lado, chamada logo pelo nome do primeiro herói a aparecer em cena, Tertuliano. Tertuliano é um autor latino que ficou conhecido por ter inventado milhares de neologismos. Tertuliano Máximo Afonso é professor de História e defende a tese de que a História, para ser ensinada correctamente, devia partir do presente para o passado e não do passado para o presente. Ele ou o autor entendem que a História é feita por seres comuns como esse napoleão bonaparte que é pau para toda a colher - a minúscula não oferece escolhos a Tertuliano quando assina uma carta, mas já a grafia da maiúscula exige treino para sair como pretende.

A grande dupla do romance não é assim, a meu ver, a de Tertuliano e Antóno Claro, sim a da história/História, entidades paralelas entre as quais se verificam muitas semelhanças e diferenças. A História na qual decorre a acção da história define-se pelo marasmo. É a nossa. A história na qual decorre o drama do professor de História e do actor secundário de filmes de série B, pela antecipação. Essa é a de José Saramago. Da História só conhecemos os eventos depois de terem acontecido, ao passo que neste romance sabemos de antemão o que vai acontecer, essa é a sua estrutura: as personagens meditam e premeditam e comunicam em monólogo interior, delas ou do narrador, o que vão fazer a seguir: telefonar, marcar encontro numa casa de campo, enviar uma carta, emprestar carro, documentos e roupas, trocar de mulher, e a de António Claro chama-se Helena, como a de Tróia, de tal modo que, quando um deles morre na posse dos adereços do outro, para fins legais, quem morre é o dono dos documentos e não o seu temporário portador. Morre António, claro, mas com as roupas, carro, mulher e documentos de Tertuliano, a Tertuliano só resta a tal password para ao menos a mãe saber que está vivo: "Tomarctus"...

José Saramago vê com desagrado o momento actual. Marasmo, diz ele. A igualdade só é boa nos direitos sociais. Todos temos iguais direitos e deveres ou devíamos ter, tudo o mais é diferença, essa diferença que permite a irrupção do novo, dos lances imprevistos, dos súbitos movimentos para o espaço da transmutação. Mas no momento parece que a História está dominada por uma igualdade viciosa, impeditiva de renovações. Não acontece nada de importante, não acontece nada que exalte, as águas em que nos movemos estão paradas. Por isso o romance não tem fim, a morte do actor nada resolve, não há catarse. Morto o duplo, eis que outra cópia pega no telefone para ameaçar a tranquilidade de Tertuliano Máximo Afonso...

IN: "O HOMEM DUPLICADO" (pp.: 291-293)


O primeiro a acordar foi Tertuliano Máximo Afonso. Estava nu. A colcha e o lençol tinharn escorregado para o chão no seu lado, deixando a descoberto urn seio de Helena. Ela parecia dormir profundamente. A claridade da manhã, mal quebrada pela espessura dos cortinados, enchia todo o quarto de urna penumbra cintilante. Lá fora já devia fazer calor. Tertuliano Máximo Afonso sentiu a tensão do sexo, a sua dureza novamente insatisfeita. Foi então que se lembrou de Maria da Paz. Imaginou outro quarto, outra cama, o corpo deitado dela, que conhecia palmo a palmo, o corpo deitado de António Claro, igual ao seu, e de repente pensou que havia chegado ao fim do caminho, que tinha na sua frente, a cortá-lo, urn muro com urn letreiro que dizia, Abismo, Não Passar, e depois viu que não podia voltar para trás, que a estrada por onde tinha vindo desaparecera, que dela só havia ficado o espaço reduzido em que os seus pés ainda assentavam. Sonhava, e não o sabia. Urna angústia que já era terror fê-lo despertar violentamente no exacto momento ern que o muro se rompia, e os braços dele, coisas muito piores que nascerern braços a urn muro se têm visto, o arrastavam para o precipício. Helena estava a apertar-lhe a mão, tratava de sossegá-lo, Calma, foi urn pesadelo, já passou, agora estás aqui. Ele arfava, aos arrancos, como se a queda Ihe tivesse esvaziado de golpe os pulmões. Tranquilo, tranquilo, repetia Helena. Apoiava-se sobre urn cotovelo, com os seios expostos, a colcha delgada a desenhar-lhe a quebra da cintura, o contorno da anca, e as palavras que dizia desciam sobre o corpo do homem aflito como uma chuva fina, dessas que nos tocam a pele como uma carícia, como um beijo de água. Aos poucos, igual a uma nuvem de vapor que refluísse ao lugar de origem, o espavorido espírito de Tertuliano Máximo Afonso foi regressando à sua mente exausta, e quando Helena perguntou, Que mau sonho foi esse, conta-me, este homem confuso, enredador de labirintos e perdido neles, e agora, aqui, deitado ao lado de uma mulher que, excepto no conhecer dos sexos, em tudo Ihe é desconhecida, falou de um caminho que deixara de ter princípio, como se os próprios passos que foram dados tivessem vindo a devorar-lhe as substâncias, quaisquer que sejam, que dão ou emprestam duração ao tempo e dimensões ao espaço, e o muro, que, ao cortar um, igualmente cortava o outro, e o lugar onde os pés assentam, essas duas pequenas ilhas, esse minúsculo arquipélago humano, um aqui, outro além, e o letreiro em que estava escrito Abismo, Não Passar, remember, quem te avisa, teu inimigo é, como poderia ter dito o Hamlet ao seu tio e padrasto Cláudio. Ela escutara-o surpreendida, de algum modo perplexa, não a tinha o marido acostumada a escutar-Ihe reflexões assim, menos ainda no tom em que as havia exprimido agora, como se cada palavra já viesse acompanhada do seu duplo, uma espécie de retumbar de caverna habitada, em que não é possível saber quem está respirando, quem acaba de murmurar, quem suspirou. Gostou de pensar que também os seus pés eram duas pequenas ilhas dessas, e que muito perto delas outras duas repousavam, e que as quatro juntas podiam compor, compunham, tinham composto um arquipélago perfeito, se a perfeição já é deste mundo e o lençol da cama o oceano onde quis ser ancorada. Estás mais sossegado, perguntou, Melhor que isto não creio que haja, disse ele, É estranho, esta noite vieste para mim como nunca tinha antes acontecido, senti que entravas com uma doçura que depois pensei que viera amassada em desejo e em lágrimas, e era também uma alegria, um gemido de dor, um pedido de perdão, Tudo isso foi assim, se o sentiste, Infelizmente, há coisas que sucedem e não se voltam a repetir, Outras há que sucedem e tomam a suceder, Acreditas que sim, alguém disse que quem deu rosas uma vez, não pode voltar a dar menos que rosas, É questão de experimentar, Agora, Sim, já que estamos despidos, É uma boa razão, Suficiente, embora não seja com certeza a melhor de todas. As quatro ilhas juntaram-se, o arquipélago refez-se, o mar bateu revolto nos alcantilados, se lá em cima houve gritos soltaram-nos as sereias que cavalgavam as ondas, se houve gemidos nenhum foi de dor, se alguém pediu perdão, que tenha sido perdoado, agora e para sempre jamais. Descansaram brevemente nos braços um do outro, depois, com um último beijo, ela deslizou para fora da cama, Não te levantes, dorme um pouco mais, eu vou tratar do pequeno-almoço.

Foto em: www.instituto-camoes.pt/escritores/saramago.htm