O SILÊNCIO DE CONRADO
Júlio Conrado  
DESAPARECIDO NO SALON DU LIVRE  
Bertrand Editora, Lisboa, 2001, 160 pags.  
 

Um escritor português vai a Paris participar no Salon du Livre, durante o qual se apresentará a tradução francesa de um romance seu, e não volta a casa, desaparece. Qual a pergunta mais correcta a respeito deste desaparecimento? O escritor foi vítima de um romance policial? Ou o romance policial é suporte de crítica à vida intelectual portuguesa?

Durante as investigações, saberemos que Aureliano Viegas foi sequestrado para servir de cobaia a um programa científico emanado do governo - Programa do Justo Anonimato - cujo objectivo é acabar com os escritores medíocres. Mediante administração de umas kromoborras, a mente do escritor seria transmutada, de maneira a eliminar o seu vício de escrever romances de amor, e a estimular nele a tendência para literatura mais apropriada ao enobrecimento dos brasões nacionais : quadras, e de preferência com rima. Porém o escritor entende que o século XX português, em matéria de quadras, já estava exaustivamente preenchido por Pessoa (Fernando), Aleixo (António) e Tavares (José Correia).

Os parêntesis são as minhas únicas concessões à decifração da língua das aves neste livro, não farei nem mais uma - e estas só em atenção aos leitores não portugueses, pois os portugueses, pelo menos os mais chegados ao assunto, não precisam de descodificadores. São também um aviso para a existência desse código, que não é exclusivo do discurso alquimista nem naturalista. Não é necessário decifrá-lo para entender o livro, mas quem o ignorar perderá grande parte do que ele é como obra humorística e satírica, ficando apenas com o policial de ficção científica - se tal subgénero não existia ainda, "Desaparecido no Salon du Livre" criou-o agora.

Júlio Conrado é dos escritores que melhor conhecem o nosso meio literário, por três principais razões que eu abarque: é uma vítima dele, foi co-director da Associação Portuguesa de Escritores durante vários mandatos, há vários mandatos que é secretário da delegação portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários. Noutros âmbitos, como a crítica literária e a co-direcção de revistas, também tem muita tarimba da colectividade, que é minúscula, se bem que ao tempo em que Júlio Conrado co-dirigia a APE, só poetas havia para aí dois mil nos ficheiros de sócios. Quantos seremos dez ou mais anos depois?

Outra descodificação imperativa é o "mil-folhas", que funciona como senha na sua iconicidade comestível: mal a contra-ofensiva visse o ministro das Acções Culturais, de sua alcunha Pacino (Al - referência a "O Padrinho") a levar à boca, no restaurante do CCB (Centro Cultural de Belém) um desses bolos de massa folhada, símbolo por excelência da literatura escrita (naquele suporte de papel a que se dá o nome de "folha" e de cujo conjunto, cosido ou colado, resulta o objecto "livro"), devia invadir a sala da cave do Palácio Inacabado para salvar o escritor sequestrado.

O desaparecimento do romancista no Salon du Livre tem como primeira suspeita de existência de sequestro o facto de ter declarado publicamente que o comissário da delegação portuguesa ao Salon, de sua alcunha Brando (Marlon - sem esta descodificação ficaria de fora a ideia de máfia), não sabia dançar... Era o seu calcanhar de Aquiles, de resto dava cartas em tudo o que fosse cultura e até futebol...

Sim, é um livro policial, sim, claro, é um livro humorístico, mas isso é apenas aquela engenharia a que recorrem escritores para dar passagem às questões que os põem a arder. De outro lado - não, não é um policial nem uma obra de ficção científica, sim um híbrido tipicamente romanesco de estrutura incompatível com subgéneros ou paraliteratura, segundo a classificação lineana ortodoxa.

O modo narrativo como o caso se apresenta não é próprio do policial, e na esfera da ficção em geral tem singularidade, é original : sendo na quase totalidade discurso directo, o que pressupõe diálogo num tempo presente, esse discurso directo é diferido no tempo e de vários modos (mediante tecnologia intermediária como o gravador) e quase sempre monologado por um detective que se recusa a escrever, a pôr por escrito um relatório da investigação. Do outro lado, o segundo encarregado da investigação - Morales, advogado da família do escritor desaparecido - apresenta-se como interlocutor mudo.

Estas equações só por si têm um sentido que absorve o das palavras ditas - ditas ou interditas, são as palavras, e no caso, escritas, o fulcro do romance, o seu tema central. O que o autor diz, aliás claramente, é que num país democrático, sem censura, outros dispositivos se instalaram a substituí-la. Sendo o interlocutor um advogado carecido de fala, quando o instrumento de acusação e defesa é a palavra, daí decorre que são os próprios mecanismos da justiça a levantarem dois problemas: o da justiça a fazer-se, e o de uma justiça que não há.

Desaparecido no Salon du Livre é um romance bem subversivo, não pela dureza da sátira, que acaba sempre por ser um preito de reconhecimento (os alvejados não são ignorados, passar-lhes uma borracha por cima magoaria muito mais), sim pela presença da língua das aves, esse segundo discurso que leva o leitor a querer identificar personagens com pessoas, ficções com factos e cenários com espaços geográficos. Não é difícil, mas a lição a retirar no fim é a de que a arte tem mais valor do que a comezinha realidade, mesmo quando essa comezinha realidade é afinal a élite intelectual de um país.

Maria Estela Guedes

 

Sossara e eu fumámos hoje o cachimbo da paz. Reganhei a sua confiança, o estudo demorado do texto antecedente aplacou-a, acabou com as desconfianças restantes sobre se eu seria ou não um homem de boa vontade. Por acaso ou não, tirou os horrendos óculos, o incrível bivaque e desfez o carrapito à avozinha do século XIX que lhe deformava grosseiramente o visual.Espectacular, o resultado. A magnífica mulher de cuja existência eu suspeitava começava a mostrar-se em todo o seu potencial de fonnosura, nos seus olhos castanhos lindíssimos, na cor de azeviche do cabelo, no desenho suave do rosto, ao qual acudia agora um fagueiro sorriso carmesim. Não sei se foi o piropo se a minha determinação de fazer valer os meus direitos eurolândicos o que a impeliu a humanizar-se, o certo é que a metamorfose estava à vista, a enfenneira-carcereira transformara-se numa agradável e reconfortante companhia e eu estava a ficar quase feliz. Consegui a proeza fabulosa de a pôr a descrever-me o fundo da questão, logrando convencer-me nas palavras empolgantes com que desembargava os meandros técnicos do Programa, de que estava a participar numa verdadeira revolução tranquila de manipulação da memória. "Por norma, Aureliano, os pacientes que nos chegavam às mãos para os salvarmos vinham recomendados por vários outros médicos, desapontados ou intrigados com o que haviam observado. Essas criaturas eram submetidas aos testes convencionais para que lhes fosse diagnosticada a lesão causadora daquilo a que na gíria científica os neurologistas chamam "disfunção neurológica". A finalidade principal de semelhantes testes era a de detenninar no doente as causas da sua desinserção no meio social envolvente através do comportamento apático ou actos dissociados dos padrões da vida colectiva normal (actos com um grau de relevância indicador de falha grave no sistema de reconhecimento do mundo e enquadramento em categorias estáveis de responsabilidade neuropsicológica) , isto é, saber o porquê da falta de interesse pelo dinheiro, pela política, pela carreira, pelo sexo, o porquê da falta de emoção, o porquê da falta de sentimento. Nesse tipo de indagação, como decerto não ignora, cientistas portugueses alcançaram uma reputação internacional notável. A nossa equipa aprendeu com eles. Bebemos-lhes a sabedoria, os ensinamentos, a escola, quisemos, éramos ainda muito novos, seguir-lhes os passos e as ideias. Mas sabe como é a dinâmica das influências: a dada altura, sentimos que o ídolo já não nos ensina o que quer que seja, que afinal tem pés de barro, que perdeu o sentido do voo e a aspiração da vertigem. O respeito pel "pai" entra em rota de colisão com a ânsia de libertação, segue-se a curva descendente, o separar das águas, a distância inevitável. E, no entanto, sem o "pai" não seríamos capazes de chegar onde chegámos: à descoberta do ovo de Colombo que é o de nos estarmos a realizar percorrendo o caminho inverso do dele.»

Eu escutava atentamente Sossara, pensando que ela se desunhava para me integrar em definitivo no espírito da equipa, ao abrir mão de segredos teoricamente inacessíveis ao parque cognitivo de uma pobre cobaia de meia-idade avançada, mortinha por chegar a casa, eu, o próprio. Às cobaias, em princípio, não se passa tanta cartolina. Uma cobaia não tem de saber o porquê do que lhe sucede, está ali para ser experimentada, usada, manipulada, por quem para isso tem habilitações e competência, os superiores caprichos da Ciência assim o exigem. Não ignorando a minha bela sequestradora (sim, agora posso dizer sem receio de me enganar: é bela - embora guarde o veredicto final para quando me aparecer de minissaia, collants e sapatos de salto alto) que mal-grado haver renunciado à escrita amorosa, escrevo e descrevo tudo o que se passa comigo e à minha volta, ousei perguntar-lhe se os meus modestos apontamentos não eram susceptíveis de se voltarem um dia contra ela se acaso, ao confiar-me os aspectos confidenciais dia génese do Programa, esses mesmos apontamentos caíssem na mãos daqueles que, sei lá, aquisessem acusar, por exemplo, de crimes de lesa-humanidade (reportando-se às dosagens cavalares de kromoborras) ou de lesa-pátría (no caso da revelação de segredos de Estado carimbados de top-secret).

Sossara não denunciou ponta de preocupação. Sentia-se tão envolvida no projecto e era tão viva nela a emoção de estar a integrar uma equipa de vanguarda cujo trabalho era orientado para a eterna utopia do Admirável Mundo Novo Reciclado, que nem lhe passava pela cabeça a eventualidade de no futuro a responsabilizarem por maldades cometidas no âmbito da alteração da matriz psíquica das criaturas de Deus, à revelia da vontade do próprio Deus, que foi a de fazer-nos defeituosos, fiel à divisa de dividir para reinar. Afiançou ter mais em que pensar do que cultivar medos de semelhante teor. Que a Ciência é imparável. Que se esta equipa fosse impedida de desbravar caminhos, outros, mais tarde ou mais cedo e provavelmente com menos tacto, menos respeito pelos direitos humanos, o fariam. "Veja o seu caso: estamos aqui para evitar que torne a escrever romances de amor. É este o nosso compromisso com quem nos paga. Mas privámo-lo, brutalmente - como com outros menos honrados sucederia - de escrever? Não o incitámos a escrever quadras, para se distrair? Não lhe consentimos que redija à vontade os seus apontamentos - que aliás nos são tão úteis ao estudo da sua evolução?» Sossara tinha, com efeito, argumentos na bagagem que só não me aterrorizaram porque eu lhe bebia as expressões como se fossem pérolas da língua derramadas por uma mulher à beira de um ataque de nervos, prestes - quem me dera! - a entregar ao hóspede de passagem os melhores tesouros da sua aparentemente inexpugnável casa-forte.

Disse ela: «No dia em que sair daqui, Aureliano Viegas, todos os seus escritos serão destruídos.

Júlio Conrado