Procurar textos
 
 

 

 

 

 





 


 

MARIA ESTELA GUEDES


«Chão de Papel»

INDEX

Bolama

Voltar à Guiné-
Bissau, a nuvem de morcegos
Seguindo o velho vapor
De bancos de madeira corridos
Até à ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.


A praia lenta e morna a rodear-te o fatito
De banho vermelho.
Não tinhas mamas, pernas nem nada
Uma criança apenas
Com um caracol comprido
A cair de cada lado da cara.
As amigas de então — Pelete se chamavam —
 
Voltaste a vê-las mais tarde
E era como se não tivésseis atravessado juntas
A adolescência, o Geba e o Atlântico
Na direção do mítico arquipélago
Dos Bijagós
Até Bolama, a ilha
A saber a mangos e a melancolia.


Quem ousaria sonhar com férias, praia, hotéis?
Nem tal devia existir em Bolama.
Talvez uma pensãozinha barata
Para passardes a noite, lembra,
Éreis tantos
Decerto o dono fez desconto,
Já a maior parte deles morreu
Como o senhor que tinha nome de rei mago, como era?
— Melchior
E morreu de noite, na estrada, a caminho de Bafatá, onde
Morava
E teve um acidente
Travou de repente a carrinha
Era noite e não via nada
Talvez um bando de macacos o tivesse assustado
Ou talvez não
Talvez soldados tivessem disparado
De um lado ou de outro
De um lado eram os tugas
E turras do outro lado
Isso aconteceu no entanto
Anos depois da ida a
Bolama, a ilha
A saber a mangos e a melancolia.

Os colegas de liceu que desapareciam
E então sussurrava-se
A boca encostada à orelha
Tinham fugido para o mato
Tinham ido para a luta
A luta no lado dos turras
Pode ter sido isso ou um bando de macacos
Ele travou, e então um tampo pesado de mármore
Para mesa de cozinha
Que levava atrás
Deslizou para cima do volante
E esmagou-o, ao senhor Melchior
Dentro da noite e da carrinha.

O senhor Melchior
Tinha tido uma moto de atrelado à banda
E certa vez arrancara em jeito febril de acrobata
Deixando a mulher em terra
A Dona Mariazinha
Mal agarrada atrás dele
Pela cintura
Porém isso acontecera
Em época anterior à viagem seguida por um bando
De morcegos
Até Bolama, a ilha
A saber a mangos e a melancolia.

E o filho também, o Necas,
Excelente rapaz,
Atrasado um pouco, mentalmente,
O que não tinha grande importância
Importância tinha a saliva que lhe babava
As comissuras da boquinha tenra de jarro
Foste com ele num agosto de férias grandes
Na ambulância vermelha a abarrotar de balaios
Galinhas e porcos no tejadilho
E dentro dela
As gentes chacoalhando
Brancas e pretas aos saltos nos assentos
E como ele e elas empurraste a lataria vermelha
Para ultrapassar os barrancos
Que as chuvas haviam cavado
Na terra batida da estrada
Isto num tempo em que não havia guerra
Anterior à viagem de barco
Até à ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.

Nesse tempo em que para dois adolescentes
O perigo maior era perderdes o lanche
Ou a lancha, em Mansoa, a atravessar o rio
Pois nunca ali construíram ponte.

Também morreu, o Necas.
Três famílias a passar o fim-de-semana
Na praia
Em Bolama
As casinhas rasas à beira de água,
Com um sorriso de madeira pintada
A vermelho e amarelo
Descascada o bastante para ganhar a patina
Da pobreza aconchegante
Num tempo diverso daquele
Em que marítima viagem empreendestes
Desde Bissau
Até à ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.

A água estagnada como bolanha
Nem uma vaga
Podíeis caminhar pelo mar adentro infinitamente
Sem perder o pé
Dois dedos de água sobre a vasa
À espera de ser plantada com arroz
Esses tempos de outrora
Ai, são espuma a escorrer dos cabelos…
A memória, molhada e tépida, com bivalves
Sob os pés
Espera a tua morte como se tivesse o tempo todo
À frente para nele se banhar em incenso

Era ali que devias ser sepulta
Com a tua carga de afectos e ondas pesadas
As lembranças
O coração fechado num búzio
A murmurar porcelanas ao ouvido
Era ali
No fundo das águas a tocar
O lodo verde e menstrual do Geba

Vai morrer à Guiné se te apraz
Num dia de neblina fria sobre as águas
Na linha imperceptível que separa a lua
Da luz
Vogando para o Oriente Eterno
Na barca de Rá
Depois de passar pela ilha entre ilhas
Bolama
A saber a mangos e a melancolia.



 



LISBOA, APENAS LIVROS EDITORA


Chão de Papel
LISBOA, 2009
Autor: Maria Estela Guedes
ISBN: 978-989-618-233-5
Edição: 48 páginas

Estado: disponível
Preço: 3,80 € Poesia

http://apenas-livros.com/pagina/apenas_de_cordel/7?id=337

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Géisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

E-mail: estela@triplov.com

Curriculum vitae

Curriculo abreviado