MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Ed Guimarães

Manuela Jardim e a sua memória guineense
Publicação original em Incomunidade:
http://www.incomunidade.com/v57/artGaleria.php?art=173

Um dos grandes atrativos da obra de Manuela Jardim reside no que as suas vozes sussurram e por isso no estímulo à fala do observador. Estamos habituados a que as artes plásticas sejam mudas, apesar da narratividade e mesmo da escrita de tantos sobre a tela, procedimentos que datam já de modernistas como Amadeo de Souza Cardoso e anteriores. Enfim, por “artes plásticas” entende-se sobretudo forma física. Manuela Jardim, embora dê extrema importância à fisicalidade, quer criando o suporte quer recuperando as cores a partir de produtos naturais, põe-nos à escuta do griot, o típico transmissor de histórias da África ocidental. A despeito de produzir artesanalmente as tintas próprias da urzela e do anil, apesar disso e com toda a dificuldade de obter matéria-prima (a urzela, por exemplo, está a desaparecer), o que mais chama a atenção na sua panaria, nos seus quadros e nas suas esculturas, é a memória de África. E é essa memória que estimula a escrita, ao dar-nos a ouvir o passado mítico de caravaneiros que atravessam o Saara, de mulheres que voltam da pesca na maré baixa, os balaios à cabeça na trémula neblina matinal.

Miragem

Em Manuela Jardim, não se trata tanto de inserir na pintura elementos próprios de código verbal, se bem que outros símbolos estejam presentes, em mistura dos desenhos da calçada e da azulejaria portuguesa com as geometrias e arabescos da arte islâmica, sim de sugerir cenários e experiências de um tempo sem tempo, embora atual, embora se trate de experiências do quotidiano, uma vez que dominadas pela peça essencial ou mesmo única de vestuário, em países em que a nudez em público era natural antes da chegada dos europeus.

Eis o passado mítico desta artista nascida em Bolama (Guiné), filha de mulher Papel (nascida em Bissau) e de homem da Madeira:

o tempo dos faraós, o tempo do Império Mali, com a sua fabulosa cidade de Tombuctu, onde existe uma antiquíssima universidade corânica que já teve o seu tempo de grande esplendor, a Universidade de Sankoré.  A postura hierática, a magreza das personagens, os seus belos crânios oblongos sob o lenço ou o cofió, e até a ponderação das mãos pousadas nas coxas aproximam as personagens de Manuela Jardim das representadas na estatuária egípcia.

Lendo o que chega à mão na necessidade de abarcar este reino de devaneios africano, deparo com uma frase de André Álvares de Almada, no “Tratado breve dos rios de Guiné do Cabo Verde”, citada por Maria Teresa Vázquez Rocha, em artigo sobre a Guiné publicado no nº 17 da revista Africana:

“Este Rio de Gâmbia é todo povoado de negros Mandingas, de uma banda e outra, e cada espaço de vinte léguas há um Rei deles, sujeito a outros, que se chamam Farões, que é título entre eles de maior dignidade que Rei”.

“Farões” e “faraós” são provavelmente a mesma palavra, em registos imprecisos, próprios da transcrição de línguas não latinas em tempos em que nem para a nossa existia ainda norma ortográfica. Por isso nada espanta que, no quadro Miragem, a fila de mulheres que voltam da pesca na praia de Bolama sejam também egípcias idas ao Nilo buscar água.

Franja de um pano inspirado na pesca. Na Guiné, as mulheres ocupam-se da lida da casa, da agricultura e da pesca.

É conhecido que os primeiros faraós foram negros, forçados pelas secas a migrar do Sul para o delta do Nilo, tal como é conhecido que os Mandingas, na sua disseminação do Islamismo, baixaram do nordeste de África, empurrando os animistas para o litoral e para ilhas como Bolama ou mesmo o Ilhéu das Galinhas, em frente de Bissau, onde existiu um presídio em que cumpriu pena José Carlos Schwarz, poeta e compositor responsável pela nova música da Guiné-Bissau. Hoje herói mítico, pela oposição ao regime colonial, e luta na guerrilha pela independência, José Carlos foi há poucas semanas homenageado na RTP África; Manuela Jardim participou com uma das suas esculturas. Entre as composições de José Carlos Schwarz, a orquestra interpretou “Mindjeres di pano preto” (Mulheres de pano preto). A importância social do pano revela-se em todos os quadrantes, no caso vertente para traduzir a dor.

É guineense a temática de Manuela Jardim, apesar de a artista referir a Cabo Verde a sua panaria. As ilhas de Cabo Verde foram povoadas sobretudo com negros da Guiné, e com estes seguiram para o arquipélago aspetos diversificados de cultura e religião, que enchem os panos de símbolos.

Nos panos inscreve-se uma história, como nos livros se escreve também. A comprová-lo, um dos elementos decorativos da panaria contemporânea é a efígie de Amílcar Cabral, que Manuela Jardim também regista.

 

No que diz respeito à função (ou à liturgia), os panos podem ser de bajuda, de fanado, panos pretos ou de choro, e panos de casamento. Peças cerimoniais, ainda hoje se tecem artesanalmente, e então são mais caros e mais ricos, porque usam materiais dispendiosos e demoram muito tempo a ser executados. Para a panaria guineense havia maior diversidade de pigmentos e fios de tecelagem, como a seda, trazidos do Oriente nas caravanas de camelos que atravessavam o Saara. A de Cabo Verde, mais sóbria nas cores, só dispunha dos tons de azul. Ao contrário dos panos de obra, saídos do tear manual, os provenientes de fábrica, com as características estampagens muito garridas, são próprios para “ir à praça em grande ronco”, como em crioulo se diria de quem exibe vistosa indumentária.

No contar uma história, de iniciação ou morte, outras histórias se contam, a partir dos elementos ornamentais, que Manuela Jardim observa e desenvolve. Ora são símbolos portugueses, ora os desenhos da escarificação, a tatuagem em carne viva. A beleza dos signos corporais não esconde a tão diversa cultura que os motiva e o homem civilizado rejeita em absoluto, seja esse homem civilizado um europeu ou um membro da etnia que a brutalidade pratica, caso não só da escarificação como da excisão do clítoris. O pano de bajuda, que é um pano de iniciação, traz logo à mente essa violência e violação da condição feminina.

Panos são páginas de um livro de História, por muito que Manuela Jardim não crie os panos, sim a sugestão deles, e a sua técnica atual, ainda inédita, implique o uso de peças informáticas em vez de signos e símbolos.

 

Os chips são mais reveladores do que as palavras de quanta memória se armazena nos panos e de que o seu tempo só na matéria e feitura da obra é presente; o outro tempo é potencialmente ilimitado entre um passado e um futuro que, de tão longínquos e sonhadores, se tornam míticos.

Os panos/páginas contam a história da escravatura, bebida por exemplo nos livros de António Carreira, que conta como havia campos de escravos destinados a Cabo Verde, à Europa e à América, na ilha de Bolama, aquela em que nasceu a artista. Ora a artista saiu de Bolama ainda criança, o seu grande desejo era voltar à Guiné, daí a nostalgia e a profundidade do tempo evocado, que parece só poder exprimir-se na forma de miragem e na ideia de Atlântida.

A escravatura existia antes da colonização portuguesa, e existia sobretudo entre as etnias vindas do Alto Níger, como os Mandingas. Os panos de obra, sendo dos mais caros produtos comerciáveis, serviam de moeda de troca para compra de escravos, esses escravos e sobretudo escravas com quem havia mestiçagem por parte de Mandingas e Fulas, as tribos islamizadas, e europeus. Assim se povoaram as ilhas de Cabo Verde, até a observação de tipo científico atentar em que o mulato era a solução para o povoamento sob climas em que doenças como a malária dizimavam quer negros quer brancos. A partir do momento em que se verificou que o mulato nascia mais adaptado, mais forte, mais saudável, mais resistente, a miscigenação passou a ser politicamente desejável e por isso incrementada por parte do governo português.

Para terminar, Manuela Jardim convida à fala, a sua obra é falante como o bombolom, conhecido dos antropólogos como talking drum. Oxalá o seu tan-tan tenha sido ouvido nos confins da savana.

 

 

NOTA. As fotos registam aspetos e pormenores das obras de Manuela Jardim na exposição coletiva Conexões Afro-Ibero-Americanas, na UCLA, e do atelier da artista, em Lisboa, abril e maio de 2017.

 
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Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa, do Instituto São Tomás de Aquino e da Associação 25 de Abril. Directora do TriploV. Membro das Comissões Interinstitucionais da Academia Lusófona Luís de Camões e do Instituto Fernando Pessoa - Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas. Nessa qualidade vem integrando as Comissões de Honra de diversos congressos.

 

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013; Folhas de Flandres,  Lisboa, Apenas Livros, 2014; dir. CadeRnos SuRRealismo Sempre, na Apenas Livros. Nessa coleção, "Surrealismo incertae sedis, 2015".

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010; «A minha vida vista do papel», in Ana Maria Haddad Baptista & Rosemary Roggero, Tempo-Memória na Educação. São Paulo, 2014.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.