MARIA ESTELA GUEDES
Foto: Ed. Guimarães
Música: http://triplov.com/letras/mario_montaut/Estela/index.htm

Herberto Helder: é e não é um poeta surrealista
In: A Ideia - Revista de Cultura Libertária, nº 71-72. Évora, 2013; e na Revista Incomunidade, Porto, nº 18:http://www.incomunidade.com/v18/

Ser surrealista, romântico ou realista, não se comprova com cartões de identidade, por isso os núcleos de temas e práticas que suportam essas etiquetas dispõem em geral de afixos como «pré», «pós», «hiper», «ultra», «avant la lettre» e, no caso vertente, até nos aparece a paradoxal designação de «surrealistas dissidentes». Quer isto dizer, de um lado, que as marcas hoje associáveis ao surrealismo podem ser muito profundas num autor, independentemente da época em que viveu, e por isso do seu relacionamento oficial com o movimento. Do outro lado, significa que as propostas do surrealismo não são originais na sua totalidade, algumas correspondem a tendências gerais da arte e da vocação dos artistas, a que o surrealismo atribuiu categoria específica. Em consequência, Natália Correia, por exemplo, pondo de parte balizas históricas, inclui Camões ao lado de Herberto Helder, na antologia «O Surrealismo na Poesia Portuguesa». Na sua perspetiva, menos polémica do que se pretende, o surrealismo manifesta-se assim em obras de quem não é surrealista. Os próprios surrealistas, de resto, ao chamarem Rabelais ou Hieronymus Bosch para a sua árvore genealógica, mais não fazem do que assumir este ponto de vista. Mário Cesariny, quando afirma que a história do surrealismo se fará entre dois impossíveis, o do seu começo e o do seu fim («A Intervenção Surrealista»), embora concentrado nas cronologias, também dá força à ideia de que o surrealismo é mais amplo do que o movimento desencadeado por André Breton.

O caso de Herberto Helder é no entanto diverso do de Camões, para continuarmos na senda de Natália Correia, pois teve alguma escassa participação em iniciativas dos surrealistas portugueses. Em 1959, no número 2 da revista Pirâmide, tida como afeta ao movimento, ao lado de Luiz Pacheco, Ernesto Sampaio, Máximo Lisboa, José Carlos González, Manuel de Castro, António José Forte e mais, colabora com um texto, hoje o sexto de O poema, na poesia reunida em «Ofício Cantante» (2009). Assina com João Rodrigues e José Sebag “O cadáver esquisito e os estudantes”, na «Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito», organizada por Mário Cesariny, em 1961. Tanto quanto sei, foram apenas estes dois os gestos de comunhão formal com o movimento, donde é compreensível que obras recentes como «Surrealismo em Portugal 1934-1952», de María Jesús Ávila e Perfecto E. Cuadrado e «A Aventura Surrealista», de Adelaide Ginga Tchen, ambas de 2001, não o incluam. Herberto Helder não é um poeta surrealista. Quando muito, foi-o naqueles dois momentos precisos em que colaborou na Pirâmide e na antologia de Mário Cesariny.

Decerto em consequência deles, no Jornal de Letras e Artes (2 de maio de 1962) publica um artigo duro e radical de rejeição de colagens ao movimento surrealista, e simultaneamente de aceitação de princípios gerais que o surrealismo também partilha, assinado com Máximo Lisboa - “Ou o Amor, ou a Vida, ou a Loucura, ou a Morte”. É um «Comunicado – aos oficiais da crítica / aos ortodoxos / aos mercenários / ao democracionismo-fascista / ao ‘café’ / à duplicidade / aos surrealistas», de que transcrevo:

[Os abaixo assinados] Recusam a denominação de «surrealistas» que alguma crítica, por desatenção e desocupação, lhes atribuiu ou atribuirá. Aceitam do surrealismo a proposta de uma liberdade tão grande que nela caiba mesmo uma atitude «anti-surrealista». Aceitam do surrealismo todos os primados que se encontram com a dignidade humana e a Alegria de Viver, garantia (consideram) de uma posição ética fundamental diante da mesma vida. Aceitam do surrealismo – para amor e admiração secreta e pública – os actos, obras e morte de alguns exemplificadores que foram surrealistas, quando isso os identificou com a sua pessoal vocação de homens livres. Recusam, finalmente, o surrealismo onde ele não pode ser isso. Recusam-no como escola, como prisão, como antologia, como Chiado.

É comum invocar o facto de Herberto Helder ter participado em tertúlias do Café Gelo, para o vincular ao movimento, tal como o de ter redigido os prefácios a «Uma faca nos dentes» de António José Forte, e aos «Poemas» de Edmundo de Bettencourt. O primeiro data de 1983 e o segundo de 1999. O surrealismo permanece vivo, sobretudo na América do Sul, por isso não seriam as tardias datas a levantar problemas à colagem. Dá-se porém o caso de a crítica e análise do surrealismo, em Herberto Helder, ultrapassar largamente esses dois exemplos. O comentador não pode ser considerado surrealista por trabalhar obras surrealistas, tal como não pode ser considerado árcade por fazer a defesa da aurea mediocritas. Não deixa no entanto de ser pertinente, para conhecimento da sua obra, e não para discutir pertenças ao movimento, a análise das duas introduções, às quais então acrescento as diversas achegas surrealistas, sobre o surrealismo e sobre os surrealistas, dispersas nas crónicas publicadas no jornal Notícia de Luanda, em 1971 e 1972 (ver o meu livro «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Escrituras, 2010), em que pratica a colagem com citações do jornal A Bola, reedita “Hormonas para Sísifo – VII”, de Manuel de Castro, por ocasião da sua morte, em 1971, evoca Marcel Duchamp, Salvador Dali e tantos outros. No jornal Expresso, publicou um poema em prosa sobre uma exposição de Cruzeiro Seixas. No Notícia de Luanda podemos ler ainda uma memória das tertúlias no Café Gelo, em que lembra os jogos surrealistas que ali se praticavam e lamenta o destino de alguns companheiros: «o Gonçalo Duarte e o António Gancho enlouqueceram, o João Rodrigues, o Manuel d’Assumpção e o Pressier suicidaram-se, o Luiz Pacheco e o Manuel de Castro entram e saem dos hospitais para fazer e desfazer curas de intoxicação alcoólica.».

Alguns destes textos, e outros, figuram em «Photomaton & Vox», um dos livros de Herberto Helder em que mais se evidenciam as suas tendências para um surrealismo temperamental, não-escolar. Se atentarmos nas principais diretrizes do movimento – collage, enumeração caótica, liberdade na criação de imagens, humor negro, situações extravagantes e modo insólito de contar, assunção do sexo e do erotismo, apologia do amor livre e da própria liberdade – verificamos que elas estão sempre presentes no «Ofício Cantante», bem como em «Photomaton & Vox» e «Os Passos em Volta». Sérgio de Lima, no tomo 1 de «A Aventura Surrealista» (Vozes, 1995), recorda que André Breton considerava que o erotismo é o valor comum a todas as obras surrealistas. Face a tal declaração, e conhecendo tão bem a sensualidade da poesia herbertiana, resta concluir que o surrealismo agita profundamente a sua obra, apesar de de o autor não ser surrealista.

Herberto Helder é um poeta atento às ideias que giram à sua volta, por isso comungou alegremente, enquanto não se sentiu acorrentado a escolas, no que de novo apareceu e lhe era intrínseco: surrealismo, Poesia Experimental, e sobretudo beat generation. Claudio Willer não separa a beat do surrealismo, ela nasce em resultado das mudanças que o movimento despoletou. Ora cumpre anotar que, mais forte do que o surrealismo, em Herberto Helder, é a sua afinidade com a geração beat. Tão forte e marginal à escolaridade, portanto tão visceral, que a sua biografia até se confunde, em certos passos de vagabundagem e trabalhos casuais, com a de Jack Kerouac.

 
 

Maria Estela Guedes (1947, Britiande / Portugal). Diretora do Triplov

Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV.

LIVROS

“Herberto Helder, Poeta Obscuro”. Moraes Editores, Lisboa, 1979;  “SO2” . Guimarães Editores, Lisboa, 1980; “Eco, Pedras Rolantes”, Ler Editora, Lisboa, 1983; “Crime no Museu de Philosophia Natural”, Guimarães Editores, Lisboa, 1984; “Mário de Sá Carneiro”. Editorial Presença, Lisboa, 1985; “O Lagarto do Âmbar”. Rolim Editora, Lisboa, 1987; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”. Galeria Almada Negreiros, Lisboa, 1987 (colaboração e co-organização); “À Sombra de Orpheu”. Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”. Lisboa. Museu Nacional de História Natural-Museu Bocage, 1993; “Carbonários : Operação Salamandra: Chioglossa lusitanica Bocage, 1864”. Em colaboração com Nuno Marques Peiriço. Palmela, Contraponto Editora, 1998; “Lápis de Carvão”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2005; “A_maar_gato”. Lisboa, Editorial Minerva, 2005; “À la Carbonara”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007. Em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez; “A Boba”. Apenas Livros Editora, Lisboa, 2007; “Tríptico a solo”. São Paulo, Editora Escrituras, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”. Lisboa, Apenas Livros Lda, 2008; “Chão de papel”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2009; “Geisers”. Bembibre, Ed. Incomunidade, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos em Portugal”. Editora Arte-Livros, São Paulo, 2010. “Tango Sebastião”. Apenas Livros Editora, Lisboa. 2010. «A obra ao rubro de Herberto Helder», São Paulo, Editora Escrituras, 1010; "Arboreto». São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Risco da terra", Lisboa, Apenas Livros, 2011; "Brasil", São Paulo, Arte-Livros, 2012; "Um bilhete para o Teatro do Céu", Lisboa, Apenas Livros, 2013.

ALGUNS COLECTIVOS

"Poem'arte - nas margens da poesia". III Bienal de Poesia de Silves, 2008, Câmara Municipal de Silves. Inclui CDRom homónimo, com poemas ditos pelos elementos do grupo Experiment'arte. “O reverso do olhar”, Exposição Internacional de Surrealismo Actual. Coimbra, 2008; “Os dias do amor - Um poema para cada dia do ano”. Parede, Ministério dos Livros Editores, 2009. Entrada sobre a Carbonária no Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva Editora, 2010.

TEATRO

Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, Fundação Calouste Gulbenkian, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.