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Maria Estela Guedes
Marca "Freixo do Meio"

A visita de um grupo de investigadores do CICTSUL à Herdade do Freixo do Meio, perto de Montemor-o-Novo, no passado sábado, dia 24, recordou-me uma outra, já bem antiga, à RDA - portanto num tempo em que ainda estava de pé o muro de Berlim. A convite de Alexandre Babo, então presidente da Associação de Amizade Portugal-RDA, integrei uma comitiva de observadores à República Democrática Alemã. O pior que lá observei foi terem-me proposto que publicasse um artigo sobre a viagem, e não precisava de me maçar, já estava tudo pronto, bastava eu assinar. Ainda hoje estou para saber se tal proposta foi a sério ou se era apenas uma piada auto-crítica. Publiquei, sim, uma série de quatro artigos no Diário Popular, de certeza abaixo das expectativas políticas, mas saídos inteiramente da minha caixa craniana. Só um tolo proporia a um escritor que carregasse fardos de palha alheios: atribuirem-nos textos ou trabalho que não nos pertencem é tão execrável como o plágio.

E do melhor que por lá vi, em matéria de produção, foi uma fábrica cuja estrutura muito nos gabaram. Naquela orgânica nova depositava a RDA muitas esperanças de sucesso económico. Chamavam-lhe "combinado", e era o contrário da especialização: em vez de a fábrica produzir um elemento de um produto, fabricava todos os elementos dele. O exemplo escolhido, uma vez que havia senhoras na comitiva, entre elas uma actriz, São José Lapa, foi uma fábrica de cosméticos. E então vimos como se produzia o bâton, desde os seus vários componentes - pigmentos coloridos, massa para suportar o pigmento, perfumes, embalagem do bâton, rótulos com a marca, embalagem final.

Ora na Herdade do Freixo do Meio, para minha surpresa, mas diga-se que o mundo da produção pecuária e agrícola não é aquele que normalmente frequento - e daí a qualidade do meu olhar observador: é um olhar puro, ingénuo, não contaminado por saberes de ofício nem por interesses obscuros - para minha surpresa, dizia, venho a rever na Herdade aquela promessa de sucesso que para a RDA constituía o combinado, por levar até ao fim o que no caso são os produtos com marca "Freixo do Meio": naqueles belíssimos montes e montados tenta-se alcançar um microscosmos de autonomia, produzindo, transformando os produtos, vendendo-os directamente ao público. Os produtos podem ser adquiridos pela Internet, e de outras formas, mas também aos próprios proprietários: é conhecido em Montemor-o-Novo que às vezes Alfredo Cunhal Sendim está no talho a cortar e a vender os saborosos secretos de porco alentejano, e que a sua esposa também vende no supermercado. Para quem movimenta milhões de euros anualmente, convenhamos em que a família é singular, e singularmente nobre - para a opor a snobismos de quem pode nada ter, excepto dívidas. Alfredo Cunhal Sendim pareceu-me um jovem absolutamente apaixonado pelo que faz, e o que faz dimensiona-se mais como utopia do que como ofício de rotina. Notei-lhe apenas um certo cansaço ao lidar com visitantes que, como eu, nada sabem e tudo perguntam, o cansaço da muita explicação.

Alfredo Cunhal Sendim é um dos quatro filhos de Ana Maria Cunhal. Este grupo familiar, que dá pelo nome de Sousa Cunhal, dirige o património fundiário, mais vasto que a Herdade do Freixo do Meio. A imagem do lado dá ideia da extensão do património e também do volume da produção.

O TriploV tem audiência maioritariamente brasileira, por isso vamos ser redundantes o suficiente para que não haja equívocos: Portugal é um pequenino país cuja área não deve ultrapassar a do Paraná. Então o conteúdo do mapa ao lado e a informação que transmito devem ser postos à escala.

A tónica agrícola é a biológica. Por isso a cor adoptada para a sinalética é o verde da política ambiental. Não quer isto dizer que a agricultura se pratique sem tipo nenhum de recurso a produtos químicos. Se bem entendi as palavras de Alfredo Cunhal Sendim, a questão põe-se sobretudo entre Química Orgânica e Inorgânica: os químicos oriundos, como o malfadado plástico, da Química Inorgânica, é que são banidos, pois esses, não existindo na Terra, agridem-na e não são bio-degradáveis. Produtos químicos como o cobre e o enxofre, que existem na Natureza, são usados, por exemplo na vinha, com sulfatagem moderada.

Falei já de utopia, e elas são cada vez mais necessárias, se quisermos aliar-nos a projectos ambientalistas como os do Grupo Sousa Cunhal. De facto, sacrificar o lucro fácil a uma política de dar emprego a pessoas da região (trabalham diariamente setenta pessoas na fábrica), de não usar tecnologias que provoquem impacto pernicioso no ambiente, de ter os olhos postos em valores mais subtis que o dinheiro, de integrar essa política ambiental em filosofias e religiões que tendem para uma preservação de contornos salvíficos, uma política destas confunde-se com filosofia de vida e tem de ser equacionada como utopia - aquilo que se põe no horizonte como objecto superior a conquistar mediante acção heróica ou missão. Em suma, o verde ambiental carrega-se de algo que anda algo desaparecido do nosso tempo, no que ao futuro respeita - a esperança.

O objectivo de tanto investimento está posto nesse futuro, que é possível conquistar, contra a opinião apocalíptica que campeia. Alfredo Cunhal Sendim, tal como Leonardo Boff, que no TriploV dá conta das alternativas científicas para preservação da Terra, mostram que há caminhos melhores para seguir, que não só nos fazem sentir bem connosco, confortáveis, como bem com os outros. O que pretende Alfredo Cunhal Sendim é esse bem-estar espiritual e material, essa possibilidade de andar de cara levantada, sem receio de enfrentar as consequências de um mundo degradado por directa exploração sua dos recursos naturais. Não estragar, repartir os excedentes, respeitar a Natureza - eis alguns princípios da ética por que se rege.

E no meio disto anda o natural - três espécies naturais de orquídea foram descobertas no montado, graças à agricultura não agressiva. É preciso respeitar a Natureza. O Homem faz parte dessa Natureza.

Vou maiusculando o que outrora foi sacro, sem saber se o Grupo Sousa Cunhal também maiuscula. Na realidade, esses montes e montados são integralmente fruto da nossa cultura - da agricultura -, por consequência, artificiais, no sentido darwinista do termo. Alfredo Cunhal Sendim sabe que nada existe de natural na sua propriedade, uma vez que, tocado esse ponto, e ressalvando eu a possibilidade de existir ainda alguma população selvagem, de animais ou plantas, em lugares recônditos como o interior da imensa Amazónia, me redarguiu que não. Provavelmente, já nem no interior da Amazónia existe nada de natural, já não existe Natureza, aliás a natureza, com minúscula, já não existe: defendem alguns cientistas que a selva amazónica foi plantada pelos índios. Na concepção darwinista, natural e humano são opostos, aquilo que decorre da cultura humana é humano, artificial (próprio da Arte).

Então para isso não existe remédio, já não podemos recuperar a Natureza, ela desapareceu para sempre. Não persistam os senhores zoólogos e botânicos em enfiar-nos mais barretes das populações selvagens, isso só serve para eles mesmos fazerem teses de doutoramento continuando a aplicar métodos evolucionistas a populações actuais, sob o chapéu da convenção do natural, à falta de outros dispositivos de apreensão do meio. Podemos é mudar de paradigma, considerar que o Homem faz parte da paisagem, que a paisagem, habitat também humano, precisa de ser respeitada.

E foi isto o que eu observei melhor na Herdade do Freixo do Meio: a belíssima paisagem do monte e do montado é respeitada até à beata apanhada do chão, porque cada cigarro é composto por dezenas de elementos químicos, alguns dos quais não existem na "Natureza", por isso degradam a Terra, que precisa de anos para recuperar da ferida.

A minha geração pouco se importa com o futuro da Terra, é uma geração cínica, nihilista. Porém, à medida que observamos gerações cada vez mais jovens, verificamos que cresce o amor ao planeta verde. São as crianças o futuro dele, são elas que vão salvar aquilo cujo valor nós nem sequer somos capazes de avaliar. Elas vão conseguir preservar o jardim, que é aquilo em que nós transformámos a selva.

Rua Teófilo Braga, nº 82, 7050-273 MONTEMOR-O-NOVO

Tel: 266 877 136
Fax: 266 877 056
E-mail: freixodomeio@sousacunhal.pt
Odivelas, 26 de Novembro de 2007
Maria Estela Guedes. Membro da Associação Portuguesa de Escritores, da secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, do Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa e do Instituto São Tomás de Aquino. Directora do TriploV. Alguns livros publicados: Herberto Helder, Poeta Obscuro; Eco/Pedras Rolantes; Crime no Museu de Philosophia Natural; Mário de Sá-Carneiro; O Lagarto do Âmbar; a_maar_gato; Lápis de Carvão; Ofício das Trevas; A Boba.