Deus em Valadares

 

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 18.09.2005

Valadares é um apeadeiro de comboios ronceiros sem anúncios de teofanias iminentes. Mas tem um seminário, de arquitectura algo labiríntica, feito para as Missões. Foi nele que se realizou um impressionante congresso internacional com o tema Deus no século XXI e o futuro do cristianismo.

1.Valadares não é o monte Horeb (Ex3), nem o acampamento do Sinai (Ex19). Não é Jerusalém, não foi lá que se realizou, depois de muita agitação e discussão, o primeiro concílio acerca do futuro do cristianismo, como consta no Livro das Missões cristãs (Act 15). Valadares é um apeadeiro de comboios ronceiros sem anúncios de teofanias iminentes. Mas tem um seminário, de arquitectura algo labiríntica, feito para as Missões. Foi nele que se realizou um impressionante congresso internacional com o tema Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, que os órgãos de comunicação - tirando o PÚBLICO e a TSF - ignoraram, talvez por andarem muito ocupados em mostrar todas as coisas em que Portugal está em último lugar.

Este acontecimento tem uma história e um contexto. A Sociedade Missionária da Boa Nova está a celebrar as bodas de diamante da sua fundação. Os bispos reunidos no Concílio Plenário Português, de 1926, formaram uma comissão para traçar orientações para a criação de uma sociedade missionária em Portugal. O Papa Pio XI assumiu pessoalmente a vontade manifestada pelo episcopado. A 3 de Outubro de 1930, nomeou o primeiro superior geral D. João Evangelista de Lima Vidal e entregou-lhe as constituições e orientações concretas a pôr em prática.

A própria Congregação para a Evangelização dos Povos, numa carta dirigida ao superior geral, a 1 de Julho de 2002, lembrou essa história, pensando no futuro: "Dentro de três anos, celebrareis as vossas bodas de diamante, momento este em que realizareis um balanço completo dos vossos primeiros 75 anos de vida ao serviço da Missão das Gentes, dando graças a Deus por isto, e podereis considerar, à luz da vossa rica experiência e do carisma que o Senhor vos confiou, quais são os caminhos em que Ele deseja orientar os passos do vosso instituto."

O calendário das celebrações está a chegar ao fim. Coube ao p. Anselmo Borges, membro da sociedade missionária e professor de Filosofia da Universidade de Coimbra - muito experimentado na abordagem de "questões-fronteira" - a tarefa de realizar, entre 8 e 11 de Setembro, o referido congresso sobre Deus no século XXI e o futuro do cristianismo.

Dir-se-á que não é difícil encontrar, a nível internacional, iniciativas e publicações, nos últimos anos, com títulos análogos. Por causa da preparação da passagem do milénio, são temáticas que já não parecem oferecer grandes surpresas. E, na verdade, em muitos casos, editam-se repetições e banalidades. Mas Anselmo Borges soube fazer algo de muito novo.

Como se disse, a sociedade missionária surgiu da vontade dos bispos portugueses, num contexto muito preciso da situação da Igreja de um país colonial. A configuração dos países e das Igrejas nos quais trabalhou, ao longo destes 75 anos, não é a mesma. E a sociedade missionária também não. Não basta falar do fim da era colonial, da Igreja pós-conciliar e de um mundo em processo de globalização, moldado por espectaculares avanços científicos e tecnológicos. Não são algumas operações plásticas no rosto da Igreja, da pastoral, da liturgia e das missões que se podem chamar "nova evangelização".

2. Desde há séculos e de muitas maneiras, em nome da dignidade humana, falou-se da morte de Deus e do fim do cristianismo. Desde alguns anos, confia-se no "retorno do religioso" e na "nostalgia do absoluto" para notar que a notícia da morte de Deus talvez fosse exagerada e para dizer que o fim da Idade Moderna chegou mais depressa do que o fim das religiões. Mas esse pode ser o caminho da apologética fácil. Não se eliminam séculos de crítica filosófica, de investigação científica, de vida cultural distanciada das Igrejas com declarações generosas, suspensão de alguns anátemas e bons propósitos para o futuro. Seria um engano.

Quando nos referimos a Deus, para bem ou para mal, precisamos saber de que Deus falamos. Já Malebranche, um filósofo cristão dos finais do século XVII, dizia que "a palavra "Deus" é equívoca, infinitamente mais do que se possa pensar. Há quem imagine que ama a Deus, mas efectivamente ama apenas um imenso fantasma que ele próprio forjou". No século XX, Einstein respondeu a um jornalista que lhe perguntara se acreditava em Deus: "Primeiro explique o que entende pela palavra "Deus", e direi se creio nele ou não!" Em vez de se gritar contra Marx, Nietzsche, Freud, Sartre, etc., importa indagar - como muitos já fizeram, de forma notável - por que razões não se entenderam com o Deus que aparecia no rosto das Igrejas.

A astúcia de Anselmo Borges consistiu em organizar quatro dias compactos de intervenções sincronizadas que mostrassem de que Deus se trata nas experiências religiosas, científicas, filosóficas, culturais, sociais e políticas no respeito de cada uma das problemáticas, linguagens e situações com as quais o cristianismo tem de se confrontar. Para isso, convocou historiadores, filósofos, políticos, cientistas de vários ramos e teólogos - com obra feita e testada - vindos da Europa do Norte e do Sul, da Ásia, da América Latina e com a presença permanente da África.

Alguns participantes poderão dizer que havia pouco tempo para o debate, mas havia muito tempo para aprender. Foi, sem dúvida, uma oportunidade para descobrir mundos desconhecidos. As actas serão um grande instrumento de estudo e debate. A sociedade missionária está de parabéns!