Quaresma
da Igreja e da Política

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ...............................Público, Lisboa, 13.02.2005
1. É sempre brusca a passagem do Carnaval para a Quarta-Feira de Cinzas que inaugura um período de 40 dias destinado à preparação imediata do Baptismo a realizar na Vigília Pascal e à "revisão da vida" de todas as comunidades cristãs.

É brusca e radical. Tirada a máscara, quem não descobrir as dimensões mais transcentes da existência humana fica confrontado com um futuro de cinza.

Este ano, o começo da Quaresma coincide com a preparação das eleições para a Assembleia da República, marcadas pela urgência de outro rumo político e de um governo com sentido da responsabilidade. Esta coincidência pode sugerir alguns paralelismos que aconselham modéstia, seriedade e coragem, tanto nas propostas partidárias como na intervenção da Igreja.

A Quaresma ritual não garante a convenção das práticas religiosas de solidariedade purificadas de todo o exibicionismo. É a liturgia da Quaresma que insiste nesse ponto. Mas a disputa eleitoral também não garante, à partida, a formação de um governo de maioria absoluta que se assuma como um governo de salvação nacional na linha traçada por Mário Soares: "Um governo patriótico, não partidarista, que busque as competências onde as encontrar, independentemente dos rótulos ideológicos ou partidários, figuras devotadas ao bem comum, aberto ao diálogo político."

Vivemos, neste começo de Quaresma, a reedição das especulações sobre a sucessão de João Paulo II, que felizmente já regressou ao Vaticano. Esta situação serve a uns para sublinhar a profunda diferença entre a natureza da Igreja e os regimes democráticos. Serve a outros para acentuar um certo paralelismo entre o funcionamento da Cúria Romana e os regimes autoritários.

Queixam-se muitos de que os governos, as direcções partidárias e os deputados andam divorciados das preocupações da sociedade civil: só descem à rua ou vão à província para inaugurar obras - que, por vezes, nem lhes pertencem - ou para organizar campanhas festivas de caça ao voto. Mas, na esfera religiosa, as queixas não são menos graves: a hierarquia gasta o tempo com os "fiéis", não procura os que abandonaram o rebanho nem se encontra com o vasto mundo daqueles que, em Portugal, nascem, crescem e vivem à margem da Igreja e sem um confronto real com o Evangelho de Jesus Cristo.

Parece esquisito a Leonor Beleza "que não se ache esquisito que se discutam e decidam matérias muito importantes deste país exclusivamente por homens". Mas se isto é assim na política, que dizer do papel das mulheres no governo da Igreja?

Em suma, se existe um grave défice de participação política em Portugal, também a Igreja sofre de graves carências na evangelização do país. Tanto a política como a Igreja precisam de uma profunda quaresma de conversão, que ressuscite a esperança.

2. Dir-se-á, e com razão, que não se devem esticar demasiado os paralelismos entre realidades muito diferentes. Além disso, muitos portugueses são militantes políticos que testemunham desassombradamente a sua fé cristã sem qualquer confusão entre política e religião. Os paralelismos valem, quando muito, para que nem as instituições religiosas nem as políticas cedam à tentação de procurarem dar lições hipócritas umas às outras. Talvez por causa desse cuidado, os atritos entre o "partidarismo eucarístico" de alguns párocos e a indignação de certos dirigentes políticos neste tempo de campanha eleitoral tenham sido, apesar de tudo, de baixa tensão.

Há cinco anos, Vasco Pulido Valente ("DN" 20/02/2000) julgava anacrónica a polémica sobre a liberdade religiosa e a revisão da Concordata. Para ele, só a estreiteza de certa esquerda não via que o problema não está hoje na força da Igreja, mas na sua fraqueza. A urbanização, "os media", a cultura do prazer, a ética do "sucesso" e a radical mudança dos costumes criaram um país novo, de facto ateu, e uma sociedade em que desapareceu a noção de pecado.

Para este historiador, a Igreja já não tem o poder de influenciar significativamente o voto. Perdeu o ensino, a Universidade Católica não se distingue de uma universidade pública e até a Rádio Renascença se tornou inteiramente inócua. Não arranja padres e a sua organização está a caminho de se diluir.

Hoje, feita a revisão da Concordata, não me parece que a hierarquia eclesiástica tenha criado condições sociais e culturais para mandar na consciência dos portugueses. Mau seria, no entanto, que ela se abstivesse de intervir no plano da ética social e política, de acordo com a doutrina social da Igreja.

3. Mas as comunidades cristãs - de leigos, clero e membros das congregações religiosas - devem empenhar-se directamente em acções de rua: distribuir de porta a porta, à boca do metro e nas bichas dos autocarros, à entrada de cinemas, teatros, das "boîtes" e pela Internet os escritos da mensagem que pauta o tempo da Quaresma e da Páscoa. Na continuação da grande proposta das bem-aventuranças, o sermão de S. Mateus (Mt 6,1-6) sobre a hipocrisia religiosa e social, proclamado na Quarta-Feira de Cinzas, e a narrativa fabulosa das tentações de Cristo (Mt 4,1-11) - através da corrupção económica, religiosa e política -, lida na missa de hoje, merecem o espaço público onde nasceram antes de serem fechados nos templos.