POBRES E RICOS

BENTO DOMINGUES, O.P. ...........................................Público, Lisboa, 24.10.2004

1. Não tenho nenhum fascínio pelas estatísticas, nem devoção pelos relatórios sobre a fome. Como dizia o poeta, ainda assim, há muita gente que come. Mas não há humor que resista à brutalidade dos números.

No passado dia 17 - dia mundial para a erradicação da pobreza - a Associação Promotora dos Direitos Humanos insistiu numa classificação que nos envergonha: um em cada cinco portugueses - 20 por cento da população, dois milhões de pessoas - sobrevive abaixo do chamado "nível de pobreza". Este nível é o mais elevado da União Europeia. Portugal é, no entanto, o país que menos gasta com a protecção social por habitante, pouco mais de metade da média da União. Além disso, nos últimos anos, verificamos que o fosso entre ricos e pobres aumentou assustadoramente. Já sabíamos, pelo Relatório de Desenvolvimento Humano 2004 das Nações Unidas, que as desigualdades sociais em Portugal atingem valores alarmantes. Os dez por cento dos portugueses mais pobres detém dois por cento do rendimento nacional; os dez por cento mais ricos concentram 29 por cento desse rendimento.

Diante desta situação, há quem pergunte: que encantos terá encontrado Bagão Félix nestes números para resistir à criação de um fundo de emergência que nos tire desta tristeza? Este ministro não peca por falta de explicações. Mas, pelo que me é dado ouvir, ainda há muita gente que não consegue ver a bondade social das suas opções.

2. Não lhe faltaram, no entanto, avisos no campo católico. No ano passado, os bispos portugueses publicaram uma carta pastoral - "Responsabilidade Solidária pelo Bem Comum" - que não só apontou os sete pecados sociais da sociedade portuguesa e as suas estruturas, como se esforçou por descobrir os dinamismos e os caminhos que a podem tornar mais justa e solidária.

Na Quaresma deste ano, a Comissão Nacional Justiça e Paz escreveu uma incisiva "carta aos cristãos" para que nas suas comunidades, organizações e movimentos parem e procedam a uma séria e profunda reflexão sobre a nossa sociedade à luz das exigências do Evangelho. Precisamos de "outro olhar" para sacudir a apatia geral e para agir com lucidez. A Comissão chama a atenção para algo que ajuda a explicar a forma como aceitamos, ano após ano, o intolerável. Na população portuguesa, a sensibilização à pobreza e à desigualdade é muito fraca. Não são consideradas como males sociais, isto é, produzidos pela própria sociedade. Tanto a grande desigualdade, como a pobreza e a exclusão social são fenómenos aceites com demasiada complacência e resignação, como se fossem inevitáveis, como uma marca do destino ou até a consequência de alguma culpa dos próprios pobres.

Também neste ano, a 24 de Março, a economista Manuela Silva - reagindo a uma extensa e bem documentada reportagem do PÚBLICO sobre a pobreza e a exclusão social no nosso pais - fez uma atrevida proposta para a criação de um fundo de emergência para acabar com a fome em Portugal: "Conhecendo as restrições orçamentais que têm pesado sobre a política social em Portugal, nos últimos dois anos, defendo que se deveria criar desde já um fundo de emergência social destinado ao reforço das medidas de combate à fome e à pobreza, cabendo naturalmente ao Governo a responsabilidade de o administrar em parceria com a sociedade civil."

E configurou, com precisão, a sua proposta. O fundo poderia ser constituído através de um imposto extraordinário sobre todos os espectáculos (festivais de música, cinema, teatro, eventos desportivos, etc.), em percentagem a estimar sobre os bilhetes vendidos.

Manuela Silva fez notar que um tal imposto extraordinário teria o mérito de apelar à solidariedade das pessoas de maior rendimento em relação aos mais empobrecidos. É uma forma de imposto que, pela sua reduzida percentagem, não tem incidência negativa nas respectivas actividades, reconhecida que é a rigidez deste tipo de procura a certas faixas de rendimento. Incidiria, por outro lado, sobre actividades completamente ao abrigo da concorrência externa, sem efeitos, pois, de deslocalização. Também não afecta a inflação, dada a sua reduzida ponderação nos consumos. Poderia mesmo esperar-se algum efeito benéfico em termos de dinamização da procura interna de bens essenciais - os bens que viessem a ser adquiridos para a satisfação das necessidades básicas dos mais carenciados.

Esta proposta não se destina a estancar a imaginação de várias outras possibilidades.

3. Chamei aqui todos esses documentos e propostas por uma razão simples. O tempo do Advento já não está longe. Na preparação do Natal, os padres nas homilias de domingo vão ser tentados a reeditar a conversa fiada sobre os malefícios da "sociedade de consumo", sabendo, de antemão, que os católicos vão colaborar alegremente na sua glorificação, pois as coisas boas não podem ser só para os maus!

Julgo que seria mais útil voltar já a esses documentos e proceder a uma avaliação rigorosa das consequências que tiveram ou não na vida e na intervenção das congregações religiosas, das comunidades cristãs, das paróquias, das associações e movimentos católicos. Cumpriram os seus objectivos? Que impacto tiveram na alteração da sociedade?