BENTO DOMINGUES, O.P.
Laicidade, Religião e Miséria

Domingo, 01 de Fevereiro de 2004


1. Dizia o sociólogo norte-americano, Peter Berger, em 1968, que provavelmente no século XXI não se encontrariam fiéis senão em seitas menores, agarrados uns aos outros para resistir a uma cultura mundialmente laica. Já verificou que se tinha enganado. Segundo Pascal, "o último passo da razão é o de reconhecer que existem infinitas coisas que nos superam".

Saul Bellow, Prémio Nobel da Literatura em 1976, numa recente entrevista, confessa-se fascinado por verificar que, ultimamente, se fala muito de Deus, da religião, de espiritualidade, da alma. Julgava-se que eram ideias destinadas a desaparecer. Repetia-se: "Deus está morto." De facto, são essas ideias que estão mortas.

Com medo de cair na banalidade e na propaganda, S. Bellow tem um certo pudor em falar da presença ou da ausência de Deus. Considera que Dostoievski é um caso à parte. A sua relação com a fé era autêntica e imprescindível. Os tormentos dos seus personagens nada têm a ver com a futilidade da propaganda.

Em tudo há fluxos e refluxos. Também na religião. Se há retraimento das Igrejas mais clássicas no Ocidente, os novos movimentos religiosos ou Igrejas, como alguns gostam de se autodesignar, manifestam grande vitalidade. Não só no mundo protestante. Mesmo no interior do catolicismo parecer haver aquilo que uma revista espanhola chama a irresistível ascensão dos "outros" católicos. Paradoxalmente, enquanto as vocações religiosas diminuam nas congregações tradicionais que tentaram, a seguir ao Vaticano II, a sua renovação, aumenta o interesse pelos movimentos conservadores: Caminho Neocatecumental, Legionários de Cristo, Opus Dei, Comunhão e Libertação, Renovação Carismática, Adoração Nocturna, etc...

2. Regressam, no entanto, os embaraços com a laicidade. Nos países muçulmanos, a separação entre a religião e a política é, por enquanto, sobretudo, uma aspiração do Ocidente. Em França, por medo do fundamentalismo islâmico, caiu-se num ridículo tal que só pode produzir os efeitos que pretendia evitar. Como viu Reyes Mate, esquece-se que a insistência no "véu muçulmano" é também uma forma de exprimir em sinais, mais ou menos religiosos, uma identidade e o mal-estar social dos muçulmanos nas sociedades europeias. Julga-se que é mais rentável lutar contra o fanatismo de alguns do que contra as dificuldades económicas, sociais e culturais de integração de todos num projecto comum de humanização compartilhada. Deixem em paz esses sinais. Que ficaria da França se destruíssem todos os grandes sinais religiosos que marcam a paisagem da sua história, antiga e recente?

Seria bom lembrar G. E. Lessing, um filósofo da religião nascido em 1729. Na sua obra- prima, "Natan, o Sábio", um poema dramático sobre a tolerância, tem como protagonistas o muçulmano Saladino, o Templário cristão e o judeu Natan. Saladino, sultão de Jerusalém, quer acabar com a história de violência entre as três religiões. Sente que para conseguir a paz tem de esclarecer, previamente, uma questão teológica: como é que cada uma das três religiões monoteístas pretende ter a verdade em exclusivo? Saladino entende que tanto ele como o Templário cristão têm a religião dos seus antepassados e muito mais não se pode exigir de um político e de um militar que eles são. Mas se Natan é um sábio, deve ter alguma razão para saber que a sua religião é a verdadeira. E se a sua razão for boa, os outros poderão entendê-la. Daí a súplica do muçulmano ao judeu: "Dá-me a conhecer as razões da tua divina 'eleição'." Natan respondeu com uma célebre narrativa, a "parábola dos três anéis", que circulava entre os judeus medievais espanhóis e que já encerra as razões da tolerância moderna. Ei-las: antes de ser judeu, muçulmano ou cristão, somos homens e ninguém possui a verdade em exclusivo. O próprio do homem não é possuir a verdade, mas procurá-la e não há outro critério para conhecer a verdade em assuntos relativos à moral e à política senão mediante o reconhecimento que os outros nos concedem.

Natan tornou-se o protótipo do homem moderno, isto é, do homem ilustrado, aberto à fraternidade universal. Viu-se, depois, no internacionalismo de Natan e dos seus seguidores uma ameaça ao patriotismo, a virtude maior dos novos tempos. Um dos livros mais procurados pelos nazis foi, precisamente, "Natan, o Sábio". O ninho da intolerância já não era a religião, mas o nacionalismo.

3. Hoje, laicos e religiosos de todas as denominações estão confrontados com um problema que se arrasta: uma minoria de seres humanos está sentada à mesa farta, enquanto grande parte da população está à porta, doente e esfomeada. Os laicos dos países ricos entretêm-se com as ameaças das religiões, em vez de se preocuparem com a ameaça da pobreza. Os religiosos dos países capitalistas festejam o fracasso das ideologias ateias. Alguns dirigentes confessam-se muito cristãos e vivem em conivência com os governantes corruptos e os magnatas dos países prostrados na miséria. Tanto a laicidade como as religiões podem tornar-se figuras da alienação. Segundo a graça do Evangelho, não é pela laicidade ou pela religião que a história e Deus nos julgarão, mas pela resposta à pergunta: "Que fizeste do teu irmão"?

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