Jesus Cristo:
uma revolução traída?

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ........................................Público, Lisboa, 2005

Creio que os gestos taumatúrgicos de Jesus serviam, numa certa cultura e em situações bem identificadas, para dar um sinal impressionante de que era preciso destruir a justificação divina da doença e da pobreza.

1.Ontem tomou posse um novo governo. A maioria absoluta conseguida para o sustentar não parece ter sido fruto nem do milagre nem do acaso. Milagre capaz de apressar a canonização da irmã Lúcia teria sido a vitória da maioria derrotada. O próprio cardeal Ratzinger reconheceu, este ano, que a Igreja não tem nenhum modelo político próprio e pensa a política sem partidos cristãos.

Jesus Cristo não veio ao mundo para legitimar ou criar instituições sociais ou políticas. Abriu, pelo contrário, o caminho a uma revolução nas sociedades comandadas pela religião: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus!" Como explica Marcel Gauchet, "o cristianismo é a religião da saída da religião".

Mas, nesse caso, que fazer, no nosso tempo, com tantos milagres contados nos Evangelhos? (1) Ainda hoje, na missa do V domingo da Quaresma, os católicos são confrontados com uma comovente narrativa em torno da chamada "ressurreição de Lázaro". Não estaria Jesus Cristo a trair a autonomia humana ao aplicar soluções divinas a tarefas terrestres? Mas, se isso fosse verdade, teria deixado a fórmula dos milagres...

Creio que os gestos taumatúrgicos de Jesus serviam, numa certa cultura e em situações bem identificadas, para dar um sinal impressionante de que era preciso destruir a justificação divina da doença e da pobreza. Os milagres foram pedras atiradas ao charco do fatalismo religioso para dizer que um mundo outro era possível. A proclamação do advento do reino de Deus era incompatível com o espectáculo da humilhação dos seres humanos. E este era - e é! - impressionante. Os essênios, por exemplo, não consentiam nas suas assembleias os pouco dotados, os loucos, os dementes, os cegos, os paralíticos, os coxos, os surdos, as crianças e os decrépitos. As vítimas de algumas doenças físicas e psíquicas viviam sempre afastados da sociedade, como se fossem possessas do demónio.

Jesus Cristo - apesar de todos os milagres que lhe são atribuídos - vincou, desde o começo da sua intervenção pública, que não vinha resolver os nossos problemas sociais, económicos ou políticos através de exibições da divindade. Atrevo-me a sintetizar tudo numa frase: a missão de Cristo não consiste em solucionar os nossos problemas, mas em nos resolver a que nos resolvamos a resolver o que deve ser resolvido por nossa conta e risco. Este é um dos aspectos do interminável processo da conversão cristã.

Quando vejo alguns movimentos religiosos indiferentes à situação social, económica e política da sociedade, mas prometendo a solução de tudo à base de milagres, apetece-me fazer-lhes uma proposta muito simples: a situação da educação, da agricultura, da indústria, da saúde, da justiça, da habitação, dos transportes, etc., está bem identificada; ou a resolvem hoje, ou acabem de vez com essa conversa milagreira!

2. O simplismo de alguns grupos carismáticos e as negociatas de outros não são a única traição ao projecto de Cristo. Durante mais de 15 séculos - desde o imperador Constantino até Pio XII - a Igreja romana assegurou a sua presença oficial no mundo através de uma delegação de soberania nos imperadores e reis, isto é, conferindo-lhes uma legitimidade de "direito divino". Se todo o poder vem de Deus, a Igreja, ao conferir este poder na sagração do soberano, tornava-se o seu garante. Por seu turno, o rei protegia os interesses e privilégios da religião de Estado. Este, em contrapartida, na maioria dos casos, detinha o poder de nomear e de controlar os responsáveis religiosos que também chegaram a ser associados directamente ao exercício do poder. Garantia, mediante o dízimo, os bens das Igrejas e os seus meios de subsistência.

O poder político tomava parte na luta contra a heresia, servindo de "braço secular", de polícia, à Igreja. Chegou a intervir nas questões propriamente religiosas, doutrinais e outras. Em suma: "uma fé, uma lei, um rei".

Mas o aspecto político não pode fazer esquecer que era a própria sociedade que tinha um enquadramento religioso. As grandes instâncias - a justiça e o direito, a saúde, o ensino - estavam praticamente a cargo da Igreja. A prática religiosa oficial e o calendário litúrgico marcavam o ritmo do tempo. O espaço estava assinalado pelas igrejas, capelas, cruzeiros, crucifixos, quadros, etc. O sentido dado à vida e sobretudo a distinção entre o bem e o mal, entre o que se deve e não deve fazer estava dominado pelo religião oficial. (2)

É preciso não esquecer este passado para compreender as crises, as crispações e a lentidão nas separações entre Igreja e Estado, assim como as concordatas. Por outro lado, foi preciso esperar pela mensagem de Natal de 1944 de Pio XII para que a Igreja reconhecesse a democracia e o Vaticano II para proclamar a liberdade religiosa.

Apesar de todas as nostalgias, não me parece possível fazer um gigantesco parêntese sobre os tempos modernos - com todas as suas conquistas, truculências e ambiguidades - e regressar à Idade Média, à Antiguidade greco-romana, à Palestina do tempo de Jesus, ao mundo estruturado pela religião e alheio à razão crítica. Cristo, mesmo traído, continua a ser uma fonte e uma luz inesgotáveis, ontem, hoje e amanhã, como cantaremos na vigília pascal.

 
(1) Cf. E. P. Sanders, A Verdadeira História de Jesus, Notícias, Lisboa; Andrea Riccardi, Deus não Teme, Paulus, 2004; (2) Jean-Louis Schlegel, A Lei de Deus contra a Liberdade dos Homens, Círculo dos Leitores, 2004.