FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

A raiz de todos os males

 

1. Que a Santíssima Trindade – celebrada neste Domingo – me perdoe, mas não consigo imaginar que as formulações teológicas deste mistério, acolhidas no Credo da Missa, suscitassem, hoje, uma crise tão grave como a que levou a Igreja, no século IV, à reunião dos concílios de Niceia e Constantinopla. A quezília, mais tardia, em torno da expressão latina Filioque (o Espírito que procede do Pai e do Filho), opondo a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa, pouco mais significa do que uma teimosia eclesiástica.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 19 de Maio de 2011

Até gostava de uma sociedade democrática como a Santíssima Trindade: pessoas todas iguais, todas diferentes, todas activas, sem subordinação entre elas e que a própria oposição de relações é de perfeita harmonia: seria um céu na terra!

A crise das nossas democracias não é, directamente, de natureza teológica. É a manifestação do desencanto com a euforia geral da “nova economia”, enganando o mundo com a publicidade bancária de enriquecimento rápido e espectacular e abandonando as pessoas às suas dívidas insolúveis.

Não se julgue, no entanto, que os debates teológicos do século IV distraíssem as Igrejas das questões sociais. Segundo a versão árabe, o cânone 75 do Concílio de Niceia (325) pede aos bispos para construírem, em cada cidade, hospícios para os pobres, enfermos e forasteiros. A fé que abre para o alto inclina para o próximo. Ficaram famosas as iniciativas de S. Basílio, apresentadas por Gregório de Nazianzo (Discurso 43), no terceiro aniversário da sua morte: “É admirável [em Basílio] a benevolência, a assistência aos pobres, o amparo aos enfermos. Saí um breve período da cidade e observai a cidade nova, erário de piedade, depósito comum dos ricos, onde estão recolhidos, por meio das suas exortações, não só as riquezas supérfluas, mas também as necessárias, que mantêm longe de si a traça, não atraem ladrões, evitam a concorrência da inveja e a corrupção do tempo”. Muito mais meritória do que qualquer outra empresa, para Gregório, é a dedicada aos leprosos: “diante dos nossos olhos já não temos o espectáculo atroz e miserável daqueles homens tornados cadáveres, mesmo antes do seu fim, com vários membros perdidos, enxotados da cidade, das casas, das praças, das termas, dos seus mais caros amigos, agora mais reconhecíveis pelo nome do que pela fisionomia. Já nem se apresentam às assembleias e aos encontros, acompanhando-se dois a dois, pois já nem compaixão há para a sua doença, tornando-se, pelo contrário, odiados; só podem lamentar-se se ainda lhes restar a voz”.

Basílio, descendente de nobres, brilhante e famoso, mudou esse cenário com a instituição da Basiliade para as doenças consideradas repugnantes. Não olhava para os doentes apenas com palavras, abraçava-os como irmãos. O seu gesto era uma exortação silenciosa e eloquente.

2. Na Idade Média, perante uma Igreja escandalosamente rica, as Ordens Mendicantes, sobretudo a de S. Francisco e a de S. Domingos, procuraram mostrar que não basta socorrer os pobres e os doentes. Recorrendo à imagem da comunidade apostólica (Act 4, 32-34), acolhem movimentos de protesto e formam comunidades de partilha total dos bens, seguindo, na pobreza, o Cristo pobre.

De facto, até à revolução industrial, preparada desde a Idade Média e desenvolvida no século XVIII, o quotidiano da economia era marcado pela penúria. Só os senhores feudais, os príncipes, os grandes proprietários lhe podiam escapar. Os modos e os níveis de vida dos séculos XIX e XX transformam-se, mas não chegaram à euforia. Nem todos participavam no grande banquete e a abundância era atingida por crises periódicas, de mais breve ou mais longa duração.

O pior da crise actual não são as desgraças que já provocou. Pior é a cegueira de quem não quer ver a falência do capitalismo financeiro e desregulado, de raiz anglo-saxónica, com sede em Wall Street e na City de Londres e ramificações nas principais praças financeiras do mundo. Importa fazer objecção de consciência à economia de jogos financeiros e promover uma economia orientada para a construção do bem comum.

3. Nada disse, ainda, que justifique o título desta crónica. Não sou o seu autor. Vem na Primeira Carta a Timóteo, um escrito dos finais do primeiro século da era cristã, ou dos começos do segundo, de influência paulina. Aí, diz-se, literalmente, o seguinte: “a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro” (1Tm 6, 10). Com retórica ou sem ela, é a tomada de posição de um líder da comunidade cristã, baseada num célebre aforismo de Jesus: não se pode servir a Deus e ao Dinheiro (Lc 16, 13). Comentário do narrador: os fariseus, amigos do dinheiro, riam-se dele.

A referida Carta está cheia de exortações a novos e velhos de todas as condições. Avisa os ricos que só podem encontrar o tesouro incorruptível da verdadeira vida, se substituírem a idolatria da riqueza pelo gosto da partilha.

Se o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males, onde encontrar a raiz de todos os bens? Na simbólica da Santíssima Trindade reina a “economia do dom”. Não andaremos, nós cristãos, esquecidos de que fomos criados à sua imagem? 

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