Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

1. Há muitos anos, um rapaz, a quem entreguei o Livro das Horas para participar na oração de Vésperas da minha Comunidade, ao devolvê-lo, segredou-me: então sempre é verdade que Nossa Senhora é a padroeira da UDP!

As Vésperas terminam com um hino revolucionário, cantado ou rezado, atribuído por S. Lucas a Maria de Nazaré quando, grávida de Jesus, foi visitar a sua prima Isabel, grávida de João Baptista. Deste encontro a quatro resultou um poema conhecido, na tradução latina, como o Magnificat. A Bíblia de Jerusalém chama-lhe a esperança dos pobres, mas apresenta-se também como a desgraça dos ricos: “derrubou os poderosos de seus tronos/ e exaltou os humildes. // Aos famintos encheu de bens/ e aos ricos despediu de mãos vazias”.

BENTO DOMINGUES, op

Despediu os ricos de mãos vazias

Bento Domimgues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 

 

Charles Mauras (1868-1952), de quem Salazar recebeu alguma influência, apreciava a Igreja Católica pela sua constituição hierárquica e por ter conseguido esconder do povo muitos dos ensinamentos perigosos da Bíblia. Desconfiava dos evangelhos - escritos por 4 obscuros judeus - e detestava, de forma especial, o Magnificat. Manifestava-se agradecido à Sagrada Liturgia do seu tempo por ter mantido essa peçonha em latim, envolvida em sons musicais que lhe disfarçavam o veneno.

Será, no entanto, este hino a voz de uma mulher ressentida que transfere para Deus uma insaciável vontade de vingança? Ricos, escutai: até hoje foi a vossa vez, agora é a nossa!

   2. Este poema inquietante, amortecido pela repetição diária, faz parte do Evangelho de Jesus Cristo que é uma boa notícia, precisamente porque anuncia não só aquilo a que é urgente dizer sim e aquilo que é preciso recusar, mas, sobretudo, porque mostra como é possível a todos começar já a mudar a vida.

Os ricos podem salvar-se consentindo em libertar-se do seu poder de humilhar os pobres. Tanto o caminho da felicidade das vítimas da pobreza imposta, como o da felicidade dos ricos, descobre-se no processo da conversão do desejo. Mudar o desejo de dominação em vontade de trabalhar por um mundo de irmãos, um mundo de mãos dadas - contribuindo cada um com os seus talentos para cuidar sobretudo daqueles que nasceram “sem unhas nem viola” – significa encontrar o tesouro escondido da vida verdadeira. Zaqueu, ao encontrá-lo, foi pronto em confessar-se como corrupto profissional e em tornar-se o exemplo perfeito da libertação alegre, interior e exterior, que a conversão operou na vida de um grande rico (Lc.19).

No domingo passado, S. Paulo recomendava aos cristãos: “ não devais nada a ninguém, a não ser o amor de uns para com os outros”. Para ele, todos os mandamentos podem ser resumidos em poucas palavras: amarás o próximo como a ti mesmo. Isto, porém, só é possível, de forma consciente ou inconsciente, com o olhar do coração divinamente transfigurado. Admitir que qualquer ser humano é nosso irmão - e deve ser tratado como tal - é mais difícil do que admitir, neste mundo caótico, a presença de Deus.

3. Os fariseus, amigos do dinheiro, riam-se do lirismo das propostas paradoxais de Jesus sobre as relações entre felicidade e riquezas. Não podiam, por isso, entender as razões e o sentido da sua dureza com os ricos, os abençoados da divindade. Jesus não suportava uma cultura e uma religião que tinham como bênção divina um sistema de privilégios que mantinha e alimentava um abismo entre criaturas humanas. Enunciou um princípio para a religião em que cresceu que pode ser universalizável para todas as instituições: o Sábado é para o ser humano e não o ser humano para o Sábado. A economia e a finança são para o ser humano e não o ser humano para os impérios dos mercados.

Hoje, ainda com mais razão, devido à distância de tempo e cultura, podemos pensar que, do Novo Testamento, nada há que nos possa ajudar a ser felizes nesta civilização suicida.

No entanto, no passado domingo, Jeffrey D. Sachs, professor de economia e director do Earth Institute na Universidade de Columbia, mostra precisamente o contrário, num artigo publicado no EL PAÍS, intitulado “La economia de la felicidad”. Segundo ele, nos EUA, e não só, uma ampla maioria dos cidadãos crê que o país está no caminho equivocado. O pessimismo disparou. Importa, por isso, “voltar a considerar os motivos básicos da felicidade na nossa vida económica”. A procura implacável de maiores proventos está a conduzir a uma desigualdade e a uma ansiedade sem precedentes e não a uma maior felicidade e satisfação na vida. O progresso económico é importante e pode melhorar, de forma marcante, a qualidade de vida, mas só no caso de ser um objectivo que se procura juntamente com outros. A felicidade só se consegue com uma estratégia equilibrada, tanto por parte dos indivíduos como das sociedades. Como indivíduos, não somos felizes se nos privam das nossas necessidades elementares, mas também não somos felizes se a procura de maiores proventos substitui a nossa dedicação à família, aos amigos, à comunidade, à compaixão e ao equilíbrio interior. Como sociedade, uma coisa é organizar as políticas económicas para que os níveis de vida aumentem e outra, muito diferente, é subordinar todos os valores da sociedade a ter cada vez mais.

Entre nós, a obsessão financeira, em nome da troika, acaba por deixar os pobres sem nada e os ricos com as mãos cheias. Nossa Senhora perdeu.

 

Público, 12 de Setembro de 2011

 

   
   
 
   
   
 

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