FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

Novo Ano no horizonte do Vaticano II
 

 

1. Um atentado, em Alexandria (Egipto), à saída da Missa do Ano Novo, contra cristãos coptas, matou 23 pessoas e feriu muitas outras. O atentado ainda não foi reivindicado. O governador de Alexandria, Adel Labib, não hesitou em apontar o dedo à Al-Qaeda.

Copta significa egípcio. A Igreja cristã copta tem as suas raízes em Alexandria desde meados do século I. Não é uma intromissão tardia no mundo muçulmano! O importante, agora, é a solidariedade activa com os perseguidos.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 9 de Janeiro de 2011

A perseguição provoca a emigração que tem consequências graves e dolorosas para todos. Atinge todas as comunidades no mundo árabe, sobretudo no Líbano, Síria, Palestina, Jordânia, Egipto e Iraque, esvaziando esses países da presença cristã.

Com a emigração perde-se, pouco a pouco, o pluralismo e a diversidade desse mundo. Por esse caminho, chegará o momento em que nem sequer fará sentido falar de diálogo islamo-cristão no Médio Oriente. Ora, como diz o Courrier OEcuménique du Moyen-Orient 55 (Cf.: www.mec-churches.org), esse diálogo envolve a vida social, as culturas e as consciências, pois concretiza-se nos diferentes aspectos do tecido da vida quotidiana nas sociedades árabes.

O resultado da emigração forçada dos cristãos será uma sociedade monolítica, privada da diferença. No imaginário universal, o Médio Oriente tornar-se-ia uma sociedade árabe e muçulmana face a uma sociedade europeia dita cristã, embora a Europa e a América sejam, tendencialmente, laicas com uma grande diversidade religiosa. Num Médio Oriente esvaziado dos seus cristãos, qualquer pretexto seria propício para um novo choque de culturas, de civilizações e até de religiões.

2. Esse panorama real e hipotético é muito incompleto. Existem outras dificuldades para a paz no Médio Oriente.

Na opinião de Hans Küng – grande obreiro da Ética Global – Israel poderia transformar-se numa ponte para o entendimento pacífico. O sonho de Theodor Herzl cumpriu-se, apenas, pela metade: Israel tem uma terra, mas não tem paz.

Na realidade, a Palestina não era uma terra sem um povo para onde pudesse – sem mais nem menos – imigrar um povo sem terra. Há uns bons mil anos residia lá uma população árabe muçulmana. A questão palestina constitui, por assim dizer, a sombra do Estado de Israel. Em cinco décadas, cinco guerras! Mas, hoje, também muitos israelenses compreendem que um povo, de apenas seis milhões de judeus, não poderá prosperar se não viver em paz com os 140 milhões de árabes que o rodeiam. Também os palestinos têm direito a um Estado próprio. Na verdade, só poderá haver paz no Médio Oriente se, de um lado e de outro, forem desmontados os ressentimentos étnico-religiosos e as agressões. Mais do que em qualquer outro lugar, vale, aqui, a frase: não existirá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões! (1).

Régis Debray, depois de um livro muito pouco ingénuo sobre a “Terra Santa”, publicou, no ano passado, uma carta polémica dirigida a um amigo israelense, Élie Barnavi. Não se resigna à ideia de que uma sociedade tão evoluída possa tornar-se uma fortaleza fundamentalista (2). Confessa que estava farto de ouvir a antífona dos diplomatas e dos políticos: “o que dizes é verdade, mas não se pode dizer”. Porque razão um francês não teria o direito de escrever o que um israelense diz na rua, no café ou lê no seu jornal? Este estranho pudor, mistura de culpabilidade, de intimidação e de bons sentimentos, não serve a causa que pretende servir. Alimenta o anti-semitismo, nutre o ressentimento contra o protegido do Ocidente, que tem sempre por nulas ou inexistentes todas as resoluções da ONU. Não será o papel de um intelectual, francês ou israelense, destapar os tabus da tribo?

Adianta que o final do seu livro é, talvez, demasiado optimista, pois “nesse clima, muitos dos meus amigos judeus colocam a si próprios questões existenciais radicais. Perguntam, simplesmente, se Israel, apesar da sua vitalidade económica, poderá sobreviver a longo prazo. Têm razão. É, por isso, que importa pegar o touro pelos cornos” (3).

3. Há 50 anos (25. 12. 1961), foi convocado o Concílio Vaticano II pelo Papa João XXIII, o Papa da Pacem in Terris. Uma das viragens mais importantes e mais difíceis desse concílio foi o reconhecimento da liberdade religiosa que Pio IX tinha anatematizado. Como escreveu Bento XVI, continua a ser um caminho indispensável para a paz e o coração dos Direitos Humanos, como dizia João Paulo II. Não é de admirar que, ainda hoje, seja tão difícil aceitar as suas consequências.

A marca do Vaticano II não é feita só pelas viragens que fez, mas pela viragens a fazer, para não voltar atrás. O aggiornamento é algo que tem de ser continuamente empreendido à luz dos sinais dos tempos em mudança. Esta perspectiva só foi possível porque a Igreja abandonou a ideia de ser o centro de tudo. Foi-se descentrando para Jesus Cristo, para as outras Igrejas cristãs, para as outras religiões não cristãs e para o mundo, nas suas tristezas, alegrias e esperanças.

No Vaticano II, foram reencontrados, em plena actualidade, os caminhos de Deus e do mundo, abertos pelo Baptismo de Jesus e pelo Pentecostes da Igreja, em banhos do Espírito Santo.

(1)Cf. Hans Küng, Religiões do Mundo, Multinova, 2004, p. 208-209. Este autor tem uma vasta obra, em três volumes, sobre o passado, o presente e o futuro do Judaísmo, Cristianismo e Islão.

(2)Un candide en Terre sainte, Gallimard, 2008; À Un Ami Isrélien, avec une réponse d’Élie Barnavi, Flammarion 2010

(3)Le Monde des Religions, Julho-Agosto 2010.