Frei Bento Domingues, o.p.

O mistério da pirâmide

Público, Lisboa, 31.05. 09

1. Num debate televisivo sobre o sacerdócio feminino nas diversas religiões, deparei com o desenho de uma pirâmide para mostrar a situação das mulheres na Igreja Católica. No cimo dessa pirâmide, vinha o Papa, abaixo, os cardeais, mais abaixo ainda, os bispos, seguiam-se, na descida, os padres e, na base da pirâmide, vinham os diáconos. Ali, não havia mulheres. Estava tudo no masculino.

O que mais me espantava, nesse desenho, não era a evidente exclusão das mulheres desses lugares de poder. Estava-se a debater, de forma comparativa, o papel das mulheres na direcção das diferentes religiões, a nível global e local. Não vem ao caso, agora, apreciar o que se passa nas outras religiões. No campo cristão, há Igrejas nas quais a pirâmide do poder já conta com presenças femininas e, com o evoluir da sociedade, será normal que, na graduação do poder, as mulheres venham a ocupar todos os lugares. Há quem diga que tempo virá, no qual será preciso, nessas Igrejas, como nos partidos, parlamentos e governos, lutar por uma quota de homens.

O insuportável, naquele gráfico, era a tentativa de identificar a Igreja Católica, Apostólica, Romana com a Hierarquia. Os esforços desenvolvidos, sobretudo ao longo do século XX, para acabar com essa identificação – uma das maiores reconquistas do Concílio Vaticano II (1962-1965) – parecia que não tinham servido para nada.

Depois, mais a frio, pensei: não há razões especiais para me irritar. Aquela pirâmide é, de facto, a representação que continua a vigorar no imaginário de católicos e não católicos. Quando se fala, bem ou mal, da Igreja – e não só nos meios de comunicação social –, pensa-se no que dizem e fazem o Papa, os bispos e os padres. Quem pensará que a Igreja é, em primeiro lugar, constituída pela rede mundial de comunidades cristãs mais densas ou mais raras, segundo os países e continentes? Compreendi, então, que já Santo Agostinho (354-430) tivesse sentido a necessidade de dizer: “para vós sou bispo, convosco sou cristão”. A sua glória não estava em ser bispo, mas em ser cristão: alguém que a graça do Espírito Santo transformara num discípulo de Cristo.

Porque será que, mesmo depois de toda a ênfase posta pela Lumen Gentium do Vaticano II, naquilo que é comum a todos os cristãos (nº10) e de ter destacado que os vários ministérios da Igreja se destinam ao bem de todo o corpo (nº 18), se continue a confundir a Igreja com a Hierarquia e esta transformada numa hierarquia sacerdotal?

2. A linguagem do sacerdócio nunca é utilizada, no Novo Testamento, para designar os ministérios ou serviços da comunidade. A usada é de carácter funcional para fazer ressaltar a sua diferença absoluta em relação ao sacerdócio veterotestamentário ou gentio. Por isso, os ministros das comunidades são designados como presbíteros (anciãos), bispos (vigilantes), pastores, presidentes, chefes, dirigentes, guias, etc.. A linguagem sacerdotal é aplicada só a Cristo, único mediador (Carta aos Hebreus), e, de forma colectiva, ao povo cristão, não para oferecer a Deus sacrifícios “materiais”, mas a própria vida (Rm 12; 1Pd 2, 4-10).

A partir dos finais do século II, voltou-se a utilizar, no cristianismo, a linguagem veterotestamentária para designar os seus ministros, mas num sentido analógico, metafórico ou, mais exactamente, tipológico. Depois, de forma variável, desenvolveu-se a terminologia sacerdotal que vai sacralizar os ministérios cristãos à maneira do Antigo Testamento, como tendo parte no sagrado, no divino. Como diz o jesuíta, Joseph Famerée, na época moderna, a partir da corrente espiritual francesa de Pierre de Bérulle (1575-1629), far-se-á do padre um “outro Cristo” como se, pela sua ordenação, tivesse sido ontologicamente transformado num ser novo. Nesta identificação, é “transubstanciado” num alter Christus, num mediador necessário entre Deus-Cristo e os humanos.

Esta visão sacerdotalizante e ontológica do padre é, para o autor citado, na linha de muitos outros, inaceitável (1).

3. Dir-se-á que, no referido documento conciliar, “o sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, apesar de diferirem entre si essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se um para o outro mutuamente; de facto, ambos participam, cada qual a seu modo, do sacerdócio único de Cristo”. Ao dizer “sacerdócio comum”, poderia supor-se que a diferença essencial corre a favor do chamado “sacerdócio ministerial ou hierárquico”. Erro grosseiro. Como dizia Tomás de Aquino, o que há de mais importante, de mais decisivo, no cristianismo, é precisamente o acolhimento da graça do Espírito Santo, anterior a qualquer forma de ministério ordenado. É ela que transforma a vida.

Na altura do Concílio, não foi possível chegar a acordo para que “sacerdócio” ficasse como próprio de Cristo e de todos os fiéis, como vem no Novo Testamento. O consenso possível foi o da justaposição de duas Escolas.

Quem pode o mais também pode o menos, isto é, se as mulheres podem ser cristãs, também poderão ser chamadas, ao mesmo título que os homens, a exercer qualquer ministério ordenado ou não, dentro da Igreja. Nem Deus nem Cristo fazem acepção de pessoas.

(1) Sacerdoce et eucharistie chez Léon Dehon, in La Vie Spirituelle, nº 782, Maio 2009, p. 240-241

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