Frei Bento Domingues, o.p.

 

Caminho da estupidez e caminho da Sabedoria

1. Existiram e existem muitas formas de pobreza – estrutural e conjuntural – acompanhadas de definições apuradíssimas. Em qualquer parte do mundo – em Portugal também – há peritos que sabem explicar a história das pobrezas, as suas causas e até a forma de chegar à sua erradicação, à chamada “PobrezaZero”, vencendo a fatalidade lamentada por Jesus Cristo: “pobres sempre tereis entre vós”! Não basta vencer a pobreza apenas no domínio dos conceitos, mas isso pode ajudar a encontrar novos caminhos contra o fatalismo.

Público, Lisboa, 11.10. 09

A pobreza por opção pode ter várias motivações, laicas e religiosas. Na Igreja, a pobreza voluntária, individual ou de grupo, tenta interpretar e seguir algo que está classificado como um “conselho evangélico”. Nos anos oitenta do século passado, a opção preferencial pelos pobres – contra a pobreza imposta – era tida como uma das expressões mais evidentes do seguimento de Cristo. Produziu uma abundante literatura pastoral, teológica e espiritual, sobretudo no âmbito da Teologia da Libertação na América Latina. A figura fundadora desta corrente foi o peruano, Gustavo Gutierrez, hoje frade dominicano. Em língua portuguesa, destacou-se o brasileiro, Leonardo Boff, que nunca renegou a sua condição espiritual de franciscano.

Com a queda do Muro de Berlim, caíram as preocupações com os pobres. Os ricos ficaram mais à vontade. A economia capitalista tinha saído vitoriosa da Guerra Fria e sem alternativa. Até o partido comunista chinês lhe achou alguma graça. Quando se pensava que tínhamos entrado no reino global da abundância – o imenso mundo dos pobres não conta – surgiu a “grande crise”. O bezerro de ouro tinha patas de barro.

A globalização desregulada entrou em crise aberta nos próprios EUA com as subprime e os escândalos financeiros que atingiram as grandes empresas e bancos. O desemprego em flecha, a perda de casas – proprietários que ficaram sem poder pagar as dívidas aos bancos –, a falência de pequenas e médias empresas, os escândalos financeiros, as roubalheiras dos possuidores de grandes capitais e de negócios ilícitos milionários feitos nos “paraísos fiscais”, os vencimentos astronómicos e os prémios loucos recebidos por administradores e gestores, desacreditou o sistema que permite e incentiva este caminho do absurdo. Não é com 150 anos de cadeia para Bernard Leon Madoff – lançou muita gente na miséria – que se faz justiça aos pobres. Diz-se que para vencer esta crise globalizada é preciso mudar de paradigma. Se não é possível prescindir da “economia de mercado”, ela deve ser sujeita a regras éticas e político-jurídicas próprias de Estados de Direito e de democracias pluralistas, como escreveu Mário Soares no seu recente e magnífico “Elogio da Política”.

2. Regressou o uso da expressão “pobreza envergonhada” – nome de uma peça de teatro de Mendes Leal Júnior (1857) – para referir pessoas que, no passado, tiveram um estilo de vida elevado e que o perderam devido ao desemprego ou a outras causas. A Caritas Portuguesa anunciou que lhes irá atribuir vales de refeição com valor de cinco, dez ou quinze euros, não para substituir familiares, amigos ou vizinhos, mas para os estimular. Ainda bem!

O inconveniente de tal expressão foi-me sublinhado de forma cruel: “os que sempre foram pobres, como já estão habituados, não lhes faz grande diferença, são pobres sem vergonha”. Um rendimento mínimo garantido para os que “não têm unhas nem viola” é interpretado como um subsídio à malandrice, porque, para esses, a pobreza deve continuar como um destino.

3. A liturgia deste Domingo sugere-nos outro horizonte para vencer, pela sabedoria, formas de vida que globalizam a estupidez. Uma mudança radical de paradigma. Vamos aos textos. Na primeira leitura, tirada do livro da Sabedoria (7, 7-11), diz-se, de forma clara, que ceptros e tronos, pedras preciosas, ouro e prata, saúde e beleza são nada em comparação com a arte de saber hierarquizar aquilo que é fundamental, o que é secundário e aquilo que arruína a existência.

No Evangelho (Marcos 10, 17-30), vai-se mais longe. Conta que um homem, cumpridor dos mandamentos da Lei desde a juventude, queria entrar na vida que não acaba. Jesus sentiu simpatia por ele, mas lançou-lhe um repto: “vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. Resultado: “contristado com essas palavras, saiu pesaroso, pois era possuidor de muitas propriedades”.

Jesus aproveitou para insistir com os discípulos: “é mais fácil um camelo (corda grossa de segurar os barcos) entrar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. Os discípulos ficaram intrigados: “quem poderá, então, salvar-se?” Segundo a teologia oficial, teologia do sucesso, a riqueza era uma bênção divina e a pobreza, uma maldição, fruto do pecado do próprio ou dos antepassados.

Jesus concede que só o milagre da conversão, graça divina, é capaz de transformar o desejo de ser rico e dominar na vontade de ser irmão, de ser solidário. A Igreja só é cristã se for o sacramento, o sinal e o instrumento da globalização da solidariedade, a grande sabedoria contra a grande estupidez.

 
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