Companhias de Quaresma

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .................Público, Lisboa, 2 de Março de 2008

1 Além dos textos - sempre diferentes e belos - da liturgia diária, tenho tido por companhia, na caminhada desta Quaresma para a Páscoa, um livro com um título que parece assinado por duas místicas - Hablemos de Dios - e que, afinal, é obra de duas agnósticas, Victoria Camps e Amelia Valcárcel. São ambas catedráticas de Ética, uma em Barcelona e outra em Madrid, com notáveis currículos. Comecei a folheá-lo por simples curiosidade e confesso que já me obrigou a várias releituras. O livro consta de um programa de cartas que estas duas amigas escreveram, uma à outra, com a preocupação de estudarem o lugar da religião nas chamadas sociedades seculares e laicas: O Lugar da Religião no Século XXI; Estaremos Secularizados?; Deus, a Transcendência e a Moral; Laicidade, Laicismo, Fundamentalismos; O Mal: Onde está Deus?; Aprender a Viver sem Deus; Ofensas à Religião; Fé e Descrença; Deus e Nós; O Cristianismo e o Futuro.

Tanto Victoria Camps como Amelia Valcárcel tiveram uma educação rigorosa e intencionalmente católica. Católica era Espanha, oficialmente, quando vieram ao mundo que as marcou. Foram testemunhas de várias revoluções. No campo intelectual - e no caso delas também profissional - passaram pela influência do marxismo, do existencialismo, da filosofia analítica. Tudo isto serviu para socavar um bom número de crenças e também de práticas e costumes - pouco fundadas ou simplesmente equivocadas. As duas eram jovens nos anos que explodiram no Maio de 68. Ambas são feministas e contribuíram activamente, cada uma à sua maneira, para difundir o discurso da emancipação da mulher. No campo estritamente religioso, o Concílio Vaticano II permitiu respirar com alívio e pensar que outro catolicismo era possível, ainda que a esperança tenha durado pouco. Veio, depois, o pós-modernismo, com o relativismo e a descrença como senhas de identidade que punham em apuros todos os ideais da Ilustração. Espanha viveu uma transição política sem precedentes e a religião católica foi-se privatizando. Como resultado de todo este processo, confessam: "Hoje, contemplamos o fenómeno religioso a partir da distância e da dúvida. Para nós, a religião é mais um objecto de estudo, de interesse e de curiosidade do que algo que nos defina e constitua. Isso não impede que essa espécie de aleitamento religioso que nos alimentou na infância e na juventude continue a notar-se na nossa forma de tratar o tema religioso. A nossa perspectiva não é, pelo menos assim o pensamos, a de quem procura um ajuste de contas com passado ou fale movido por ressentimento. Ainda que tenhamos visto como se debilitaram, em nós, algumas crenças que, noutros tempos, foram sólidas, pensamos, no entanto, que sem crenças não se pode viver. De todas elas, a fé religiosa continua a ter um peso substancial na existência de muitos indivíduos e de sociedades inteiras, um dado que merece ser tido em conta."
2. Dentro dos dez temas acima indicados, nunca estas duas filósofas esquecem, nem no estilo nem no conteúdo, que escrevem cartas de mútua e amistosa provocação filosófica, ética e religiosa. Cada uma está interessada em levar a outra cada vez mais longe, não em mostrar-se mais inteligente. O resultado são 268 páginas em que o leitor tem a impressão de que, também ele, faz parte desta profunda indagação.

Victoria Camps termina a sua última carta defendendo que, no Estado laico, a religião deve entrar no "espaço público" de deliberação. Isso não pode acontecer, porém, enquanto se continuar a identificar as religiões, cristãs ou não cristãs, com suas expressões mais fanáticas e suas manifestações mais violentas, aquelas que atraem mais os meios de comunicação que nada sabem de matizes e profundidades. "Prefiro um mundo no qual a religião tenha lugar e possa expressar-se abertamente, se ainda tiver sentido para alguém." Amelia Valcárcel, por seu lado, diz à sua amiga Victoria, em forma orante: "A religião tem ainda muito tempo para organizar o mundo. Rezemos para que ouse pensar livremente e se humanize. Oremos para que se torne compassiva, caritativa. Aliás, como diz a nossa religião, importa mais o que fazes do que o que crês: pelos frutos os conhecereis."

3. Jesus deve sentir-se muito melhor na companhia destas filósofas do agir humano, da responsabilidade perante o mal, perante o sofrimento do mundo do que com os discípulos e os fariseus escandalizados com o seu comportamento pouco religioso, como se lê, hoje, no Evangelho de S. João. Jesus, com efeito, ao passar, viu um homem cego de nascença. Eles vieram logo com a pergunta fatal: Rabi, quem pecou, ele ou os seus pais, para que nascesse cego? O Mestre não está interessado nessa discussão culpabilizante dos inocentes. Deus não pode ter nada a ver com isso. O que interessa é a cura do cego. Se Jesus teima em realizá-la no dia proibido, no sábado, dia exclusivamente consagrado a Deus, é para mostrar que esse dia só lhe pode agradar se for o dia especialmente consagrado à libertação dos seres humanos. A humanização desta religião é que a torna divina.