Palavra de Deus?



1.Em tempos de grande crise económica gerada por métodos de corrupção e de especulação financeira, os temas de vigilância, de rigor nos grandes projectos, de apertada regulamentação da Banca, de cuidada avaliação profissional acompanham os telejornais com cenários de catástrofe global.

BENTO DOMINGUES, O.P. ...........Público, Lisboa, 23 de Novembro de 2008

Quem procurar alívio e consolação nas igrejas arrisca-se a uma grande decepção. Se não quiser ser vigilante e viver embalado em palavras de “paz e segurança” – como se dizia no Domingo passado –, encontra-se com o inesperado. Sentir-se-á mesmo revoltado com o que vai ouvir da chamada “Palavra do Senhor” ou “Palavra da salvação”.

2. Na liturgia outonal, os cristãos são confrontados com as perturbadoras narrativas do capítulo 25 do Evangelho de S. Mateus.

Na primeira – a do contraste entre “as virgens loucas e as prudentes” – espelha-se um mundo egoísta e sem compaixão. Na segunda – a dos “talentos” – glorifica-se a arte de tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Vem a terceira – a da avaliação final da história humana –, na qual, seria de esperar uma boa saída para um mundo tão cruel. De facto, a justiça parece perfeita. Aos bons, o Filho do Homem dirá: “Vinde, benditos de meu Pai, recebei como herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo”. Para os maus, a sentença é outra: “afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o demónio e os seus anjos”. O conjunto deste celebrado capítulo, construído numa sequência de três narrativas, acaba assim: os maus irão para suplício eterno e os justos para a vida eterna.

A sentença do chamado “juízo final” é baseada no comportamento histórico dos bons e dos maus. E parece sublime. O encontro com Cristo ou a sua rejeição, isto é, o encontro com a salvação ou a perdição, não depende de nenhuma prática religiosa codificada com prémio ou castigo previamente fixado. O juiz deste processo andava clandestino na vida das pessoas: tive fome e deste-me de comer; tive sede e deste-me de beber; era peregrino e me recolheste; não tinha roupa e me vestiste; estive doente e vieste visitar-me; estava na prisão e foste ver-me.

Os bons, os justos, ficam espantados: Senhor, quando é que te vimos com fome, com sede, peregrino, sem roupa, doente ou na prisão? A resposta é inesperada: “quantas vezes o fizeste a um dos meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizeste”. Em relação aos maus, basta mudar o sinal de positivo para negativo: “Em verdade vos digo: quantas vezes o deixaste de o fazer a um dos meus irmãos mais pequeninos, também a mim deixaste de fazer”.

3. Temos, aqui, a clandestinidade de Deus e de Cristo no seu máximo ocultamento. Nem quem fez o bem nem quem fez o mal sabe que estava a servir ou a ofender a Deus. Também não pensa em prémio ou castigo. O que nos salva ou nos perde é a atenção ou a indiferença perante os necessitados.

A qualidade moral desta narrativa é simplesmente admirável. A qualidade religiosa não é confessional. A atenção e a ligação extremas – características da religiosidade – realizam-se no cuidado concreto com quem precisa, só porque precisa. Neste dom, existe um secreto movimento e encontro com o Infinito. É, pelo menos, a interpretação do Senhor desta história. No entanto, o juiz do bem e do mal, por mais justo que se mostre, não se parece muito nem com Jesus Cristo nem com o seu Deus de pura misericórdia. Um inferno eterno é uma maldade que nem um autor tão ortodoxo e tão louvado por Bento XVI, como H. U. von Balthasar – apresentado, aqui, no Domingo passado – conseguiu suportar. Como alguém me observou, o final desta narrativa está em contradição com o mandamento do próprio Jesus, apresentado neste mesmo Evangelho de S. Mateus: “Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os publicanos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste”.

Será que S. Mateus tinha pouca memória e, passados vinte capítulos, já não se lembrava da originalidade radical do caminho cristão que tinha proposto?

A este respeito – e sobretudo depois do recente Sínodo dos Bispos sobre a glorificação da “Palavra de Deus” – importa perguntar para não cair em fundamentalismos: que entendemos por esta metáfora? Como diz Schillebeeckx, a auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à “Palavra de Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. É por isso que, no uso litúrgico, utilizo o menos possível a conclusão solene: “palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala assim. São crentes que falam. Voltarei a este tema.