O cristianismo,
uma invenção de mulheres?


 

Todas as coisas têm o seu tempo, e tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora. (Ecl 3,1)
BENTO DOMINGUES, O.P. ............................Público, Lisboa, 16.12.2007

1. Defendi no colóquio, A Mulher nas Religiões, que o cristianismo é uma invenção de mulheres seduzidas por um Cristo feminista. Sustento esta tese desde os anos 60. Ainda há, no entanto, quem se espante com esta evidência, sem dúvida escandalosa, dos textos cristãos de referência, os quatro Evangelhos canónicos, que devem ser a norma de todas as Igrejas cristãs, seja qual for a sua hermenêutica. Emprego, aqui, o termo “invenção”, não no sentido de ficção enganadora, mas enquanto “descoberta”. No curto espaço de que disponho, posso apenas nomear algumas dessas narrativas exemplares que o leitor poderá verificar em pormenor.

Conta S. Lucas que um fariseu convidou Jesus para jantar. O convite foi aceite e, quando já estava à mesa, apareceu uma mulher da cidade, mulher de má fama, perfumando e cobrindo Jesus de carícias e beijos. Diante desta cena, o fariseu ficou intrigado: “se este homem fosse profeta, saberia bem quem é a mulher que o toca, porque é uma pecadora”. Jesus arranjou logo histórias para provar que, em falta, estava o fariseu e que um grande e puro amor estava a transformar essa mulher (Lc 7, 36-50).

Depois disso, Jesus saiu por cidades e aldeias, pregando e anunciando a Boa Nova do Reino de Deus. Era acompanhado pelo grupo dos Doze, mas também por um grupo de mulheres pouco recomendáveis que financiavam o projecto: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demónios; Joana mulher de Cuza, o procurador de Herodes; Suzana e várias outras (Lc 8, 1-3).

É ainda no Evangelho de Lucas, com a contraposição de Marta e Maria, que Jesus torna evidente que a mulher não está condenada a ser, apenas, uma boa dona de casa (Lc 10, 38-42).

É espantoso como uma cena, de radical defesa da mulher exposta às arbitrariedades dos maridos, foi transformada no pseudo-fundamento da indissolubilidade do matrimónio (Mt 19, 1-12)!

No Evangelho de João, é uma samaritana, uma herética, de vida matrimonial nada exemplar, que faz a descoberta de um judeu muito especial, talvez o messias, e é este judeu que lhe revela o culto universal, “em espírito e verdade”, que nada deve ao Templo de Jerusalém nem ao do monte Garizim (Jo 4).

Nunca saberemos o que Jesus escreveu na areia, mas encenou, de forma surpreendente, a libertação de uma adúltera, no acto de ser apedrejada pelos adúlteros (Jo 8, 1-11).

2. Segundo o Evangelho de Marcos, Jesus teve um trabalho enorme para fazer perceber o seu projecto aos discípulos. Não conseguiu grande coisa. No final – e aqui há concordância em todas as narrativas dos Evangelhos –, os Doze, ao verem a sorte do Mestre crucificado, concluíram que tudo aquilo era assunto encerrado. Tinham andado enganados: “maldito aquele que morre no madeiro”. Pelo contrário, as mulheres que tinham vindo da Galileia com Jesus mantiveram-se fiéis, durante a crucifixão, a sepultura e prepararam-se para as últimas homenagens (Lc 23, 55-56). Foi junto ao túmulo que ouviram: “Porque procurais, entre os mortos, aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressurgiu”. Correram a anunciar o acontecimento aos Onze que não lhes deram crédito (Lc 24, 1-11).

O Evangelho de João narra uma história espantosa, centrada numa mulher muito especial: Maria Madalena anda à procura de Jesus e o Mestre Ressuscitado anda à procura dela. Encontram-se num jardim e ela é investida por Cristo: “Vai aos meus irmãos e diz-lhes: Subo a meu Pai e vosso Pai; a meu Deus e vosso Deus’. Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: ‘Vi o Senhor’ e as coisas que ele lhe disse” (Jo 20, 1. 11-18).

3. Não é o momento para discutir a natureza destas narrativas. Quem as ler atentamente verá que Jesus de Nazaré é apresentado sempre em defesa das mulheres, mesmo das mais desclassificadas. Finalmente, foi a fé das mulheres que resistiu à noite da crucifixão, da morte, da sepultura e que foi premiada com a certeza do Ressuscitado. Foi-lhes revelado que, no cristianismo, não é entre os mortos que se pode procurar o futuro.

Se foi sobretudo uma aventura de mulheres que testemunhou que Cristo está vivo para sempre, se foi Ele quem as encarregou de evangelizar os apóstolos e se foram também elas que prepararam, com eles, o Pentecostes (Act 1, 14), temos de lhes atribuir o nascimento do cristianismo. Mas a narrativa de Lucas, que abre o futuro da Igreja, começou por nos dizer que o Espírito do Pentecostes estava presente em Maria de Nazaré, mãe de Jesus, desde o começo da aventura. Nessa engenhosa composição, é a uma mulher que o Céu pede para entrar na história humana, para Deus se tornar um de nós (Lucas 1 – 2).

Aqui, não me interessam nada as questões biológicas. Os Evangelhos não são tratados de biologia nem de manipulação genética. São textos simbólicos que dizem que a nossa vida pode ser transformada, se consentirmos no apelo e na graça do Espírito de Deus.

Se tivermos em conta a situação da mulher na cultura judaica, de que Jesus fazia parte, estamos perante uma milagrosa inovação que os textos, embora escritos mais tarde, não conseguiram ocultar. O que aconteceu depois já é outra história.