O futuro do cristianismo

 

A retórica da decadência regala-se a dizer que, depois do ateísmo dogmático, que deu cobertura ideológica a sistemas intolerantes, emerge, agora, o ateísmo da indiferença. O nome da nossa cultura fragmentária seria o niilismo, a luz de nada. Viveríamos no eclipse de Deus, na sua ausência e sem notícias Dele. Como se Ele não existisse.

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, .2007

1. Não faltam ensaios acerca do futuro da religião (1). Por natureza, do futuro não se pode saber muito. É sensato continuar com o debate aberto em todos os campos. A retórica da decadência regala-se a dizer que, depois do ateísmo dogmático, que deu cobertura ideológica a sistemas intolerantes, emerge, agora, o ateísmo da indiferença. O nome da nossa cultura fragmentária seria o niilismo, a luz de nada. Viveríamos no eclipse de Deus, na sua ausência e sem notícias Dele. Como se Ele não existisse. A experiência predominante passaria a ser, precisamente, a de já não se fazer nenhuma experiência religiosa, isto é, de não se ser afectado nem, muito menos, transformado por algo que possa evocar Deus. Mas que dizemos, quando dizemos Deus?

Porque não evocar também o fenómeno contrário, o erradamente chamado “regresso do religioso” de mil manifestações? Não é bom confundir o mundo com a sociologia dos nossos contactos e das nossas leituras.

A. Rañada, um físico espanhol, dizia acerca das relações entre ciência e religião: os fundamentalistas religiosos e os ateus militantes têm alguma coisa em comum. Crêem que toda a geografia do mundo cabe num só mapa: o da interpretação intransigente de um livro sagrado ou o dos dados de uma ciência excludente e totalizadora. No entanto, quando olhamos à nossa volta, assalta-nos, de imediato, a complexidade das coisas sempre enredadas num intrincadíssimo emaranhado de conexões causais. E como reduzir a esquemas simples os nossos desejos, temores, esperanças ou recordações? Como poderiam caber num único mapa?

2. A situação é paradoxal. Se uns insistem no deserto religioso do nosso tempo, outros mostram a superabundância de religiões, de espiritualidades, de antigas e novas correntes e movimentos, num mundo cada vez mais global. Quem pensa que as religiões estão a acabar percorra, devagar, o magnífico “L’Atlas des Religions” (1) e verá que o mais urgente é o diálogo inter-religioso e também entre crentes e não-crentes. Não perdeu actualidade a repetida exigência de Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos global, um ethos mundial”. Isso está à vista e só os cegos por interesses imediatos não querem ver.

Por outro lado, o diálogo não existe nem para abolir identidades nem para a sua pura afirmação. Num diálogo verdadeiro, todos mudam sem se anularem. É, por isso, necessário que cada um se torne responsável pela sua religião, pelas imagens que faz de Deus e do ser humano.

3. Há dois anos, publiquei, aqui, um texto intitulado “Deus em Valadares”. Era sobre um ambicioso Congresso Internacional, que tinha superado todas as expectativas, com o tema “Deus no século XXI e o Futuro do Cristianismo”, coordenado por Anselmo Borges. Está, agora, à disposição de todos numa bela edição (Campo das Letras). A capa é de José Rodrigues.

Às vezes, o que os títulos anunciam não corresponde ao conteúdo. Os textos desta obra correspondem, exactamente, ao que anunciam. Vêm de Espanha, da Holanda, da Alemanha, do México, do Japão e de Portugal. Nos tempos modernos, a língua portuguesa não está muito habituada a falar teologia que, apesar de tudo, por se ter tornado crítica, conseguiu altas cotas de dignidade e de rigor conceptual. Soube dialogar com os sistemas filosóficos, abertamente ateus, que surgiram na história ocidental (Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud...) e, agora, não recusa o encontro com o mundo das diversas ciências.

Os textos do Congresso, recolhidos neste livro, não pairam num clima de teologia incontaminada. Também não são um intercâmbio metódico entre ciências e teologias. As diversas expressões da teologia e das ciências respiraram, num espaço cultural multifacetado, a busca do sentido da existência humana, no qual se desenha também o futuro do cristianismo. Este não pode ser procurado num regime de clausura entre experiências humanas, sabedorias, filosofias, éticas e ciências. O cristianismo é incarnação sem confusão. A graça não suprime a natureza. É esse o valor da definição do Concílio de Calcedónia: “Jesus Cristo é um só, mas em duas naturezas”. É evidente que esta fórmula é tributária de uma cultura que já não é a do nosso tempo, mas serve para dizer que Cristo está em tudo, mas não é tudo. Deixará, por isso, sempre a liberdade a todas as investigações e a todas as experiências responsáveis.

Anselmo Borges teve ainda a feliz ideia de incorporar, neste livro, o itinerário-testamento do teólogo dominicano, E. Schillebeeckx, professor da Universidade de Nimega. Tem sido uma das vozes da Igreja, mais livre, corajosa e responsável, alimentada por um pensamento sempre em mudança, testemunhado, de forma exemplar, neste texto admirável.

 

(1) Alberto G. Martínez, El futuro de la religión, “Studium”, 2005, Fasc 3, 345-385.

(2) "Pays par pays. Les clés de la géopolitique", La Vie, Le Monde, Hors-série, 2007.