Choque
de paradigmas

BENTO DOMINGUES, O.P. ............Público, Lisboa, 7 de Outubro de 2007

1Em muitos países, embora com pontos de vista e orientações diferentes, Jesus de Nazaré continua uma superstar. A arqueologia, a história, as discussões cristológicas, a ficção, o cinema, não deixam arrefecer a sua memória. Mesmo nas editoras portuguesas e brasileiras não é um esquecido. O Jesus de Ratzinger/Bento XVI deve aparecer, entre nós, neste mês de Nossa Senhora de Fátima. A quem não tiver tempo ou possibilidade para leituras especializadas recomendo uma pequena obra de Michel Quesnel (1): é bem documentada, actualizada e rigorosa.
O aforismo, "Cristo sim, Igreja não", tem uma história mais longa do que pode parecer. No entanto, sem as Igrejas, quem nos teria falado de Jesus de Nazaré? Pertenceu a um meio sem se confundir com ele - o judaísmo galileu do primeiro século - e, pelo que se sabe, suscitava paixões antagónicas pelas suas atitudes, gestos e palavras, mas não deixou nada escrito. Os que sobre ele escreveram testemunharam que ele não cabia no que dele diziam.

Os cristãos são cerca de dois biliões. O cristianismo - apesar dos cristianismos desaparecidos - continua uma religião numericamente bem sucedida. Não se é cristão por se nascer de uma mãe cristã, por pertencer a um povo ou a uma classe, mas por escolha individual dentro de qualquer cultura. Daí, resulta a pergunta, sempre renascente: sendo Jesus judeu e os primeiros cristãos de origem judaica, como é que se chegou à abertura universal e à separação entre a igreja e a sinagoga? Quem julga que a questão já está respondida deveria estar atento às novas investigações (2).

2Entre os cristãos, o maior grupo é de católicos. Nada menos que 1.056.920.000. Apesar das profecias que anunciam o seu definhamento irremediável, a Igreja católica, por bons e maus motivos, é uma presença constante nos meios de comunicação e crescem, todos os dias, os estudos sobre a sua história, a sua teologia, a sua intervenção e as suas perspectivas de futuro. O século passado tinha sido um século de eclesiologia. Teve o seu ponto alto no Concílio Vaticano II, tanto na viragem que fez, como nos problemas que adiou.

Quando nos referimos aos problemas da Igreja no mundo actual, queremos dizer que já muita água passou debaixo das pontes depois do Vaticano II. O mundo católico não é de uma só peça, mas não basta repetir a evidência de que é plural. Desde os chamados "não praticantes" até aos grupos que mutuamente se acusam de estarem a arruinar a Igreja, parece que há lugares para quase todos, mas os debates sobre a democratização da Igreja não têm dado grandes resultados. As explicações de ordem histórica e teológica justapõem-se.

3No passado dia 26 de Setembro, foi apresentado, no Centro Nacional de Cultura, o livro Igreja Católica. O Choque de Paradigmas, de José Luís de Matos, conhecido pelas suas investigações no campo da arqueologia e da história. A obra abre com um belo prefácio de Guilherme d"Oliveira Martins.

Lembra o autor que as Igrejas cristãs devem ser entendidas como formações cuja origem e lógica de funcionamento estão intimamente ligadas à história da Europa e do Mediterrâneo. Hans Küng tinha apontado a existência de seis constelações históricas ou paradigmas cristãos: protocristão apocalíptico; vetero-eclesial helenístico; católico romano medieval; reforma protestante; modernidade ilustrada; ecuménico. Este teólogo adoptou a definição de "paradigma" que Thomas S. Kuhn tinha forjado para explicar as condições do desenvolvimento sócio-cultural da ciência.

A divisão em seis paradigmas não é a única possível. J. Luís de Matos não só a discute, como apresenta algumas importantes alternativas. Revelam-se especialmente eficazes para explicar o conflito que a Igreja enfrenta a partir do Vaticano II. Como diz o autor, apesar do exterior monolítico que o catolicismo aparenta, chocam-se hoje, no interior da Igreja católica, três paradigmas diferentes de pensamento e de acção: o paradigma da sociedade de corte, uma estrutura sociológica que organiza, internamente, a hierarquia da Igreja; o paradigma missionário, a chamada "religião dos pobres", que enquadra, desde pelo menos há 150 anos, a religiosidade dos fiéis; o conjunto de orientações do Concílio Vaticano II, cujos documentos, nomeadamente a constituição Gaudium et Spes, representam muito mais que o aggiornamento desejado pelo Papa João XXIII. Definem uma actualização doutrinária e disciplinar, introduzem um novo paradigma, que assume valores estranhos ou contraditórios, relativamente aos paradigmas anteriores ainda actuantes, criando uma dinâmica que está longe de produzir todos os seus frutos.

Os que se interessam pelo presente e futuro da Igreja católica só têm a ganhar com a leitura e a discussão deste precioso ensaio. Não se esqueça, porém, que os documentos do Vaticano II são textos de viragem, mas também demoradas redacções de compromisso. Não bastam para superar o choque de paradigmas.

(1) Michel Quesnel, Jesus. O Homem e o Filho de Deus, Lisboa, Gradiva, 2004.
(2) Premiers chrétiens d"où viennent-ils?, "Le Monde de la Bible" (hors serie), Outono 2007.