Beatificação de 498 Mártires



 

BENTO DOMINGUES, O.P. .......................Público, Lisboa, 28.10.2007

1. O número de católicos – leigos, religiosos, padres e bispos – mortos em Espanha nos anos 30, durante a Guerra Civil, foi extremamente alto. O Vaticano comportou-se com muita prudência nos processos da sua beatificação, para evitar a ideia de uma “canonização” do regime de Franco. Foi isso, aliás, o que o próprio Cardeal Pietro Palazzini, prefeito da congregação das causas dos santos, declarou em 1983.

Hoje, no entanto, são beatificados 498 mártires espanhóis dessa época. Terá sido a decisão mais acertada? Se não é bom perder a memória, será saudável estar sempre a lembrar os mesmos pesadelos, fazer sangrar as mesmas chagas e perpetuar a divisão de Espanha?

No Domingo passado, Jaime Gonzáles Sempere (Valência), numa carta ao director do El País, dizia que os beatificados de hoje pertencem unicamente ao “bando nacional”. Estranha que não se mencione nenhum dos assassinados do outro “bando”, o republicano, do qual morreram centenas de milhar durante a guerra civil e, depois desta, numa longa e cruel repressão. Será que a Igreja católica e a direita espanhola pensam que, entre os republicanos que morreram às mãos dos golpistas, não havia pessoas que professaram, sinceramente, a religião católica? Pensarão que, por serem republicanos, já não podiam ser crentes? Esta exclusão será um castigo que a Igreja aplica aos do “bando republicano”, pois a sua beatificação poderia significar um reconhecimento desta realidade complexa? E que dizer do assassinato, por Franco, de curas bascos, entre outros? Será pura casualidade a coincidência desta beatificação com a aprovação da Lei Memória Histórica prevista para os dias 30 e 31 deste mês?

2. Andrea Riccardi, na sua obra sobre os extermínios colectivos e o martírio individual dos cristãos, no século XX, não podia passar ao lado dessa história que aparece, com o distanciamento do tempo, mais complexa. Complexa e contraditória foi a história da Segunda República espanhola que ganhou as eleições a 12 de Abril de 1931. Afonso XIII abandonou o país, deixando o poder a um governo republicano.

A República atacou a Monarquia e a classe aristocrática e, pouco depois, fatalmente, o conflito envolveu também a Igreja, se bem que ninguém quisesse, explicitamente, esse conflito frontal e houvesse alguns, quer de uma parte quer da outra, que o tivessem tentado evitar (1).

3. Este não podia ter sido mais brutal. A 7 de Janeiro de 1937, o ministro republicano basco, Manuel de Irujo, apresentou, numa reunião de gabinete, um memorando sobre a perseguição religiosa que transcrevo: “A verdadeira situação da Igreja, a partir de Julho passado em todo o território que permaneceu fiel, excluindo as províncias bascas, é a seguinte: a) Todos os altares, imagens e objectos de culto, salvo bastante raras excepções, foram destruídos, na maior parte dos casos com forte vilipêndio. b) Todas as igrejas foram encerradas ao culto que ficou suspenso de forma total e absoluta. c) Uma grande parte dos templos foi incendiada e, na Catalunha, isto aconteceu frequentemente. d) Os depósitos e os organismos oficiais receberam sinos, cálices, ostensórios, candelabros e outros objectos de culto, fundiram-nos e também utilizaram os materiais para a guerra ou para fins industriais. e) Nas igrejas foram instalados armazéns de todos os tipos, mercados, garagens, estábulos, alojamentos, abrigos e muitos outros tipos de utilização... f) Todos os conventos foram desocupados e neles a vida religiosa foi suspensa. Os edifícios, os objectos de culto e os bens de qualquer espécie foram lançados para o fogo, saqueados, ocupados e demolidos. g) Sacerdotes e religiosos foram presos, atirados para as prisões e fuzilados aos milhares sem qualquer processo e estes factos, ainda que em número menor, verificam-se ainda, não apenas nas zonas das vilas campesinas, onde lhes foi dado caça e se lhes deu a morte de uma maneira selvagem, mas também nas aldeias e nas cidades. Madrid e Barcelona e as outras grandes cidades contam os presos às centenas, detidos nas suas prisões sem qualquer outra causa conhecida a não ser o seu carácter de sacerdotes e religiosos. h) Chegou-se à proibição absoluta de ter, de forma particular, imagens ou objectos de culto. A polícia que leva a cabo buscas domiciliárias, investigando no interior das habitações, no íntimo da vida do indivíduo ou da família, destrói com escárnio e violência imagens, gravuras, livros religiosos e tudo o que tenha relação com o culto ou o faça lembrar”.

José Diaz, secretário-geral da secção espanhola da III Internacional, vai mais longe: “Nas províncias em que temos o poder, a Igreja já não existe. A Espanha superou em muito a obra dos soviéticos, porque a Igreja, em Espanha, está hoje em dia aniquilada” (2).

Em vez de beatificações e maldições, a Espanha religiosa e anti-religiosa talvez precisasse, sobretudo, de silêncio para se interrogar, até ao fundo da alma, como é que foi possível tanta crueldade.

 

(1) Andrea Riccardi, O Século do Martírio, Lisboa, Quetzal, 2002, p. 310.

(2) Obra cit., p.326.