Cristianismo social

e espiritual



 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 6.05.2007

1. As boas e as más notícias de cada dia giram à volta do primado da economia. Na Europa, vive-se com inveja do vigor da economia norte-americana. A China assusta pelo seu espectacular crescimento económico. O percurso da Índia, embora diferente, já não é célebre, apenas, pela sua profusão de espiritualidades no meio da miséria. A força da economia espanhola humilha-nos. Sabe-se que a própria guerra, no Iraque, por mais hedionda que se apresente, está perdoada por ser obra da economia mais forte. Não é difícil a contagem dos homens mais ricos do mundo, mas calcula-se que quase mil milhões de pessoas vivem com menos de 73 cêntimos por dia. O primado absoluto da economia deixa a retórica dos direitos humanos a um canto. A economia não é para as pessoas, são as pessoas para a economia.

2. Não é novidade. Estamos a celebrar 40 anos da notável encíclica Populorum Progressio de Paulo VI. François Perroux, grande economista francês, colaborador do padre dominicano, Louis Joseph Lebret, fundador do célebre movimento Economie et Humanisme (1), chamou a este documento pontifício a “Encíclica da Ressurreição”. Não a designava assim só porque foi publicada na Páscoa de 1967, mas porque se tratava da encíclica para a ressurreição dos povos que viviam, na miséria, uma espécie de morte.

A encíclica não era fruto de uma inspiração instantânea. Era o ponto de chegada de uma progressiva tomada de consciência por parte da Igreja católica, mediante o contributo de vários pensadores e movimentos suspeitos do século XX, de antes e depois da Segunda Guerra Mundial e do impulso decisivo do Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes). Essa história está feita e publicada (2).

A questão do desenvolvimento não se situava, apenas, no campo da teoria económica. A injustiça das flagrantes desigualdades, quanto ao desenvolvimento social e económico, era inaceitável. E o dilema, na altura, era este: ou reformas audaciosas ou a revolução. «Temos de começar já: são muitos os homens que sofrem, cresce a distância entre o progresso de uns e a estagnação ou, até mesmo, o retrocesso de outros. Mas é preciso que a obra a realizar progrida harmoniosamente, sob pena de destruir equilíbrios indispensáveis. Uma reforma agrária improvisada pode falhar o seu objectivo. Uma industrialização precipitada pode desmoronar estruturas ainda necessárias e provocar misérias sociais que seriam um retrocesso humano. Há, certamente, situações cuja injustiça brada aos céus. Quando populações inteiras, desprovidas do necessário, vivem numa dependência tal que lhes impede toda a iniciativa e responsabilidade, e também toda a possibilidade de promoção cultural e de participação na vida social e política, é grande a tentação de combater, pela violência, tais injúrias à dignidade humana. Sabe-se, no entanto, que a insurreição revolucionária – salvo casos de tirania evidente e prolongada que ofendem gravemente os direitos fundamentais da pessoa e prejudicam o bem comum do país – gera novas injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas. Nunca se pode combater um mal real à custa de uma desgraça maior. Que nos compreendam bem: a situação presente deve ser enfrentada corajosamente e as injustiças, que ela comporta, devem ser atacadas e vencidas. O desenvolvimento exige transformações audaciosas profundamente inovadoras» (nº 29-32).

3. O desenvolvimento, dizia o Papa, não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, isto é, promover todos os homens e o homem todo. Ao dizer isto, Paulo VI assumia o pensamento e a prática do P. Lebret a quem chama, no corpo da encíclica, um “eminente especialista”. Isto era novo. Nas encíclicas, só os Padres da Igreja e os Papas eram referidos. Agora, este rebelde é citado explicitamente: «não aceitamos que o económico se separe do humano; nem o desenvolvimento, das civilizações em que ele se inclui. O que conta, para nós, é o homem, cada homem, cada grupo de homens, até chegar à humanidade inteira».

Certas correntes da Igreja, para dizer bem de Deus e da sua acção no mundo, desprezam a iniciativa humana e o desenvolvimento; para honrar a fé, desonram a razão; para exaltar o espiritual, dizem mal de tudo o que é material; para dizer bem da meditação, da oração, dizem mal da acção. Com o movimento Economie et Humanisme, o P. Lebret e o P. Chenu introduziram a coexistência pacífica da investigação sociológica, das propostas do desenvolvimento económico com a espiritualidade da acção, mediante a teologia do trabalho, também referida na encíclica. As obras de carácter técnico foram sempre acompanhadas de uma colecção de espiritualidade.

Entretanto, para o melhor e para o pior, o mundo já não é o mesmo. A nossa era de mudanças converteu-se numa mudança de era, como diz Edgar Morin. Que formas de intervenção e de espiritualidade exige esta nova era?

 

(1) Denis Pelletier, Economie et Humanisme, Paris, Cerf, 1996.

(2) Jean-Yves Calvez, Chrétiens penseurs du social, Tomo I (1920-1940), Tomo II (1945-1967)  Paris, Cerf, 2002 e 2006.