PASSAR PARA A OUTRA MARGEM

 

BENTO DOMINGUES, O.P. .................................Público, Lisboa, 2.07.2006

1. A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protoloco oficial do Estado não levantou grande tempestade em Portugal. Talvez porque os bispos portugueses gozem de mais prestígio do que os deputados e os jornalistas interessados nesta quezília, o que não impede um ar de guerrinha entre alguns devotos do laicismo e alguns devotos de uma boa moldura para os representantes da Igreja católica na hierarquia do Estado.

Que este tenha um protocolo para os seus rituais é normal. Que o Estado laico estabeleça, no seu protocolo, um lugar para os bispos católicos ou para os representantes das outras religiões, parece-me excessivo. Se não fazem parte da estrutura do Estado, que estariam lá a fazer?

Não para responder na mesma moeda, mas por coerência, as hierarquias das religiões também não deviam convidar, para as suas celebrações, representantes oficiais do Estado. Não se trata de impedir que eles, a título individual, por devoção ou curiosidade, possam estar nas celebrações religiosas, assim como os membros das hierarquias religiosas, como cidadãos, têm todo o direito a participar nas cerimónias promovidas pelo Estado.

A hierarquia católica não tem perdido muitas energias com esse tema. E ainda bem. Foi conservada uma sentença de Cristo que deve continuar como sua orientação de fundo: "Dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César".

Dir-se-á que estou a ser ingénuo: as correntes mais radicais do laicismo pretendem eliminar do espaço público qualquer referência religiosa. Vivem o laicismo como uma anti-religião. Talvez. Julgo, todavia, que só poderiam ter êxito, e esse parcial, se pudessem eliminar a liberdade religiosa. Porque todos esses esforços não conseguem impedir que, na sociedade pós-secular, se manifeste um renovado interesse pelas religiões. É impressionante o número e, em muitos casos, a qualidade de novas e antigas publicações de temática religiosa, sem falar dos abundantes sinais da religiosidade difusa. A religião não desaparece. Transforma-se.

2. Quando se diz que o laicismo pretende eliminar a religião do espaço público e encerrá-la nos templos e nas sacristias, não se julgue que esse seja o caminho adequado para calar os verdadeiros discípulos de Cristo. Esquece-se que nas assembleias litúrgicas, se forem tomadas a sério, podem acontecer coisas absolutamente extraordinárias. Os cristãos reúnem-se porque não podem conformar-se com este mundo assente na injustiça. É preciso preparar explosivos para rebentar com ela. Esses explosivos são fabricados com poemas, contos, provérbios, parábolas, música, pintura, arquitectura, etc. «Só a arte e a poesia nos libertam. Porque dizem "não, não e não" ao necessário, ao despotismo do facto e dos balanços. Um poema é o mais forte dos agentes secretos» (1).

Embora os poemas sejam «grandes explosivos de esperança», não bastam para desenvolver um processo contínuo de dizer "não" ao que estraga a vida e "sim" àquilo que faz dela um caminho para a alegria. A liturgia cristã, e sobretudo a Eucaristia, para a qual os cristãos são convidados, Domingo após Domingo, é não só um acontecimento para os olhos, para os ouvidos, para todos os sentidos, mas um acontecimento de transformação da mente e do coração, um acontecimento da graça divina. Por outro lado, o que aí se passa não é para ficar entre muros. Uma Missa, que não seja uma rotina ou um concentrado de mau gosto, está cheia da semana anterior e abre um novo espaço de transformação: «a luta continua... todos para a rua». Este velho slogan esquerdista devia ser a palavra de ordem da Eucaristia.

3. Os textos de hoje, na continuação do Domingo anterior, são um convite a passar, no meio das tempestades da história humana, para a outra margem. Que significa isto? A tendência do catolicismo convencional é o conformismo social e religioso. Jesus, pelo contrário, está sempre em passagem para a outra margem: optou pelos excluídos da sociedade económica, política e religiosa. O catolicismo convencional, quando vê a barca da Igreja agitada por ventos desconhecidos, julga que o Mestre está a dormir, indiferente aos problemas com que a instituição se debate. Não é verdade. Ele quer a paz da Igreja. Sossega as ondas, mas é para que a Igreja toda passe com Ele para fazer recuar a morte, curar os que estão na valeta, socorrer os aflitos, dar esperança aos perdidos na noite da droga, da sida, da prostituição, da violência.

A leitura das narrativas dos milagres de Cristo parece situar-nos no reino do desejável, mas impossível. O que nós queremos é resolver os problemas do nosso tempo. Com razão. Mas não sejamos tão precipitados. Não peçamos a essas narrativas o que elas não querem dizer. São apenas uma pedra no charco da nossa indiferença perante uma sociedade em que uns têm tudo e outros não têm nada. E volto à minha fórmula: os milagres não pretendem resolver nada, mas resolver-nos a que nos resolvamos a resolver o que deve ser resolvido por nossa conta e risco, passar para a outra margem, onde vegetam os esquecidos e abandonados.

Ao longo da história, houve sempre homens, e sobretudo mulheres, que escolheram a companhia dos perdidos. De facto, os nomes mais registados são testemunhos de homens notáveis: S.   Francisco de Assis, S. Filipe de Nery, Montesinos, Bartolomeu De Las Casas, S. João de Deus, D. Bonhoeffer, Oscar Romero, Padre Américo, l'Abbé Pierre, Pedro de Meca, mas Teresa de Calcutá é o símbolo de todas as mulheres que escolheram estar ao serviço dos "mais pobres dos pobres".

Não se pode dizer que a liturgia, a oração, foi para eles um tempo de alienação, de esquecimento ou abandono do mundo. Foi um encontro tão explosivo que os lançou para outro lado do mundo, para os braços dos esquecidos da história.

A característica do testemunho cristão não é a defesa dos cristãos ou da sociedade cristã, mas de quem precisa, seja qual for a sua religião, tenha ou não religião. Quando assim não é, o cristão transforma-se num sectário como qualquer outro, contra a própria essência da Igreja.

 
(1)  George Steiner, Os Logocratas, Lisboa, Relógio d'Água, 2006, p. 163.