CRER COM DÚVIDAS

 

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ................................Público, Lisboa, 17.09.2005

1. Dois leitores destas crónicas, embora em dias diferentes, abordaram-me, em plena praia. Um declarava-se católico, apostólico, romano e não queria ser outra coisa, mas também se considerava um agnóstico. Perguntava-me se isto era aceitável na Igreja. Ri-me com ele e lembrei-lhe que, desde o século II da era cristã até ao recente reencontro com o apócrifo "Evangelho de Judas", a hierarquia da Igreja não foi com os agnósticos que teve mais problemas, mas com os "gnósticos", aqueles que pretendem saber, sem tirar nem pôr, porque razão andamos perdidos e julgam conhecer o caminho exacto para a salvação fora do corpo e deste mundo.

A conversa não se resumiu a isto. Foi uma manhã muito teológica, observando-lhe que se não queria ser um agnóstico preguiçoso, ainda teria muito que andar e pesquisar para nascer de novo. Ao pôr do sol, a questão de outro leitor não andava longe da precedente: «sou católico praticante e devoto de Nossa Senhora. Acabo mesmo de entrar na capelinha da Senhora dos Navegantes para rezar. Mas tenho muitas dúvidas acerca de vários pontos do Credo». Esta declaração também abriu um longo diálogo e que não iria ficar por ali. Mas comecei por dizer que estaria mais preocupado se fosse um católico fervoroso, como ele de facto era, e que não tivesse dúvidas. Nós só podemos crer interpretando. O terminal da fé não são as afirmações do Credo, mas o Deus inabarcável por qualquer conceito, um princípio interminável de viagem, uma peregrinação sem fim à vista, um aprofundar infinito do desejo de infinito. São os fundamentalistas e os fanáticos de qualquer religião ou irreligião que me irritam. E os ateus também sabem de mais, até sabem que Deus não existe!  

2. Tenho seguido de perto, desde há muito, a vasta literatura sobre os debates em torno da   "Evolução e Criação"  e a acuidade que revestem nos EUA com implicações nos currículos escolares de alguns Estados, suscitando também preocupações nas correntes racionalistas francesas (1). Se não me surpreendeu a notícia de férias acerca de um encontro do Papa com cientistas e teólogos sobre tema tão controverso, fiquei de pé atrás com alguns comentários e ilações que essas notícias veiculavam e provocavam.

No passado Domingo, H. Noronha Galvão cortou, aqui no PÚBLICO, as asas aos devaneios sobre esse encontro no qual, aliás, participou: «os próprios termos do título do Colóquio pertencem a âmbitos muito diversos. A evolução foi, como é sabido, hipótese lançada por Darwin, na base da paleontologia, e que entretanto ganhou a solidez de teoria científica, primeiro com o contributo das leis da hereditariedade de Mendel e, mais recentemente, com o contributo da biologia molecular. A metodologia das ciências experimentais confere a este neodarwinismo a competência de descrever, com rigor, o modo como o fenómeno da vida se processa ao longo do tempo. O conceito de criação pertence a outro âmbito de racionalidade. É um conceito teológico com implicações filosóficas».

Trata-se de uma distinção de bom senso que evita algumas confusões, mas é insuficiente para dizer o que pensam crentes e não crentes, quando se fala do mundo como desígnio e criação de Deus. Na opinião de Tomás de Aquino, sem o alerta da "Teologia Negativa" – e no referente a Deus é a que se impõe em primeiro lugar – estaremos sempre expostos a pensar que sabemos mais do que sabemos ( scg I, 14).

3.   As questões entre fé e ciência surgem, desde há muito, num clima de suspeita mútua, de rivalidade, de medo. Alguns cientistas vêem na fé e nas religiões uma ameaça à liberdade de investigação. De facto, foram recebidos, pelos crentes mal informados, como inimigos que pretendiam arruinar as religiões, semear o ateísmo, provocar a morte científica de Deus, tornar Deus inútil. Por outro lado, quando uma concepção positivista das ciências se apresentava como a única forma válida de conhecimento, exorbitando da sua competência, criava um clima cultural reducionista, pretendendo desautorizar outras formas de abordagem da realidade. Hoje, é normal encontrar cientistas muito crentes e cientistas agnósticos, ateus e a trabalhar em conjunto. Não é por razões científicas que se é crente, agnóstico ou ateu (2).

4. Os conflitos entre ciência e religiões deslocaram-se com predominância para as questões de ordem ética. A construção da primeira bomba atómica reuniu, provavelmente, a maior concentração de talento científico em vista de um objectivo comum. O director do projecto, Robert Oppenheimer, disse que, do ponto de vista das teorias implicadas, aquilo era um regalo. Mas fica-se, realmente, desconcertado quando, muitas daquelas pessoas, tão inteligentes, só começaram a interrogarem-se seriamente sobre o que estavam a fazer, quando viram a primeira explosão de experiência no deserto do Novo México, isto é, quando tinham chegado ao ponto sem retorno, no que dizia respeito à utilização da bomba. O imperativo tecnológico parece ter eclipsado o imperativo ético.

Evoco este caso, porque a investigação científica é apaixonante e a tecnologia sedutora. Quando se deixam invadir pelos poderes político, militar e económico, nasce a pergunta incontrolada: se um projecto está ao nosso alcance, porque não realizá-lo?

Hoje, a engenharia genética abriu tantas possibilidades, tão discutíveis, que não podem ser dispensados os debates da Bioética, nos quais, a sensibilidade religiosa não deverá estar ausente, embora também esta precise de ser questionada.

A dúvida que provoca interrogações é saudável, tanto no campo da ciência, da ética como no das religiões. É um alerta para caminhar sempre, mas com cuidado.

 

(1) La Bible contre Darwin, in «Le Nouvel Observateur hors-série» ( Dez.2005/Jan.2006); Jocelyn Morisson, Dessein intelligent: le debat. L'univers a-t-il un sens?, in «Le Monde des Religions» (Sept./Oct. 2006), p. 6-11.

(2) É vasta a bibliografia sobre «Ciência e Religião». Em português, o texto mais luminoso continua a ser o de João Resina Rodrigues, Sobre a Ciência e a Fé, in Communio I (1984), pp.573-582. Ver também: P. George Coyne, SJ, La fertilité de l'univers: science et religion, in «La Documentation Catholique», 2362 (16. 07.2006), p.675-683; John Polkinghorne, Ciencia y Teología. Una introducción, Santander, Sal Terrae, 2000, trad. do inglês).