RICARDO DRACO
Xamanismo Celta

O termo xamanismo é um rótulo generalista para antigas culturas religiosas, culturas estas que encontram suas bases na essência tribal. A palavra xamã, etimologicamente, vem da Sibéria, da tribo Tungusi. Um xamã (saman) é aquele que tem habilidade de trabalhar a energia do fogo (saman = queimar), ou seja, a espiritualidade para aqueles que o rodeiam.

O Dr. Roger Walsh, professor de psiquiatria, filosofia e de antropologia na universidade de Califórnia em Irvine, define o termo xamanismo como: "uma família de tradições onde os praticantes focalizam voluntariamente em incorporar os estados alterados da consciência em que experimentam de modo espiritualizado, buscando suas jornadas a outros reinos, e interagindo com outras entidades a fim de servir a sua comunidade".

Resumindo, o termo xamã reflete uma pessoa voltada às técnicas espiritualistas de sua comunidade e que utiliza as ferramentas dadas à situação geográfica e os recursos naturais. O próximo passo é entendermos o termo celta.

Em muito se busca a origem do nome celta, alguns dizem que fora dado pelos gregos, outros que seria a derivação da origem de alguma palavra ou objeto tal como um rio, mas em resumo é um dos vários povos que estiveram em dadas regiões na Europa. Encontramos algum material escrito sobre este povo nos manuscritos de Leabhar Laighneach (Livro de Leinster) e nas descrições de antigos filósofos como Estrabão, Plínio, César, etc.

O termo Xamanismo Celta nos leva a um mundo de crenças e técnicas nativas e antigas dos povos celtas. Por certo, os antigos celtas não se auto-declaravam xamãs. Podemos citar que o druidismo seria a concepção mais exata do poder religioso daquele povo onde seus membros podem receber o nome de druidas, Fili e Faithi, mas também estaríamos nos perdendo em palavras, em rótulos, o que devemos ter em foco é à busca da essência cultural e mágica deste povo.

Lembro que num determinado tempo isto foi muito questionado (sobre quais as diferenças entre druidismo, xamanismo celta e bruxaria tradicional voltado ao povo celta). Poderíamos resumir em total simplicidade, mas que no final das contas seria superficial. Portanto apenas para que nosso senso racional não fique perdido, a primeira esta mais relacionada a um corpo sacerdotal, a segunda a técnicas espirituais e, a última, ao folclore e costumes populares, mas esta separação é apenas uma pequena luz que nem de longe contempla o Sol de fundamentos vivos e poderosos da percepção de estudar o mundo celta.

Estas técnicas espirituais xamânicas podem ser alcançadas com a dança, com música ritual, meditação, ervas de poder ou com situações preparadas em rituais que descrevem um mito ou alguma maneira ritualística de alteração de percepção.

Qualquer tentativa de racionalização de uma crença antiga é perda de tempo. As lendas são os mitos da psique, o caminho em que cada um de nós persegue dentro ou fora da magia, mas que nos leva aos mesmos contos do passado, e não há como alcançar tal entendimento a não ser pela mais pura reflexão e vivência dentro deste caminho.

O mundo dos deuses e ancestrais não é uma prática meramente religiosa e sim um agregado cultural, filosófico, onde é necessário não apenas dizer que entende e sim que concebe. Seria muito difícil que alguém que não acredite em espíritos ou na espiritualidade venha a compreender e aceitar um politeísmo rico em divindades e entidades. Seguindo por esta linha de pensamento, os povos celtas não acreditavam existir o conceito temporal de passado, presente e futuro (o que é muito distante de nossa realidade), bem como alguns pontos referentes à sexualidade, sacrifício, sentido de hospitalidade, morte, sejam extremamente reprimidos ou mal interpretados em nossa atual época.

Alguns autores tentam colocar pré-conceitos ao Xamanismo, mas diante de tal enriquecedora vastidão de conhecimentos e cargas emocionais, é tão válido como falho gerar um conjunto de regras tal como amar a natureza, ou falar do princípio criador. Algumas crenças estão mais direcionadas às relações humanas e à interação homem/natureza do que com uma responsabilidade ecológica que, com certeza, não havia quando olhamos para trás, pois a questão era auto preservação, de sustento e de forma alguma uma ideologia, do tipo "Vamos salvar o mundo!".

Com alguns estudos podemos traçar um parâmetro básico entre as diversas crenças antigas, tal como as tribos primitivas da Sibéria e dos nativos norte-americanos, encontramos traços xamânicos entre os bosquímanos africanos, os aborígines australianos e obviamente, entre os antigos Celtas, porém de modo algum podemos dizer que um Xamã Siberiano emprestou suas crenças ou compartilhou com os celtas os fundamentos espirituais de sua comunidade, e para alguns radicais o termo Shaman deveria ficar somente com os siberianos.

A cultura Celta é baseada no ciclo da vida, onde as estações do ano regem o papel principal. Suas datas, tal como são celebradas hoje, são devido a vestígios arqueológicos, tal como o calendário de Coligny, onde estão as quatro ritualísticas básicas deste povo e, através destas, são feitos rituais com deuses específicos, comemorando determinada fase da vida, seja o plantio, a colheita, o culto à vida, à compreensão da morte.

O Xamanismo Celta (as técnicas envolvidas) é voltado ao trabalho espiritual em si. Nele encontramos os segredos escondidos pelo nosso lado obscuro, onde alguns chamam lado sombra, outros de subconsciente. Encontramos também o significado das forças da natureza, o caminho de descobrimento e compreensão. Digo que encontramos a riqueza da nossa alma, onde a separamos em vários pedacinhos e depois a juntamos de uma forma que nos traga maior respeito como pessoas, aos que nos cercam e a convivência harmoniosa entre tudo e todos, porém cheia de desafios entre o fascinante vigor de um culto ampliador da percepção.

É comum encontrarmos na arqueologia o caçador (Kernunos) de costas para uma árvore. Esta arvore é sagrada e simboliza o caminho para os três mundos: o mundo inferior através do desenho das raízes, o mundo médio onde o caçador exibe seu capacete de galhos dando também a impressão de sua cabeça seguir a mesma simbologia dos galhos que apontam para cima em direção ao céu, onde lá se encontram os deuses de devoção. Também é comum o olhar meditativo, num êxtase profundo sinal de religação com outros planos.

Entre os galhos da árvore vemos a figura do Sol e da Lua, um em cada canto, simbolizando não apenas o ciclo da natureza, mas também a importância dos mesmos para a civilização antiga, no qual dependia de suas fases para o plantio e caça.

A partir da roda do ano estabelecemos celebrações, festividades e rituais em honra a estações e suas respectivas energias evocando os deuses que comandavam tal mudança na terra, pedindo proteção, fertilidade, prosperidade, saúde, etc...

Os três mundos não apresentam diferenças hierárquicas, de mesma proporção o homem perante as criaturas da natureza possui de igual maneira um equilíbrio, onde não existe superior ou inferior e sim uma contemplação e interação, onde tudo tem que ser e estar da maneira que deve conforme as leis da natureza, ou seja, leis naturais.

Portanto, no mundo celeste, encontramos deuses, o Sol, a Lua, as criaturas etéreas, espíritos do céu e do ar, as aves. No mundo médio encontramos o que está a nossa volta, ou seja, o nosso mundo, o nosso repouso, o qual compartilhamos com os animais, os espíritos da natureza. E, finalmente, o mundo inferior que é o mundo dos ancestrais, das raízes de nossos antepassados onde também existem deuses ligados com os espíritos ancestrais, com a terra e os minerais. Neste mundo o xamã procura seus aliados que lhes são apresentados através dos exercícios espirituais da caverna, do poço ou do buraco na terra, entre outras técnicas, na busca do animal totem o qual irá lhe ajudar em sua jornada entre os mundos.

Um xamã tem a facilidade de atravessar mundos, de encontrar animais de poder, de interagir com a natureza e com os animais. Tal simbologia do xamã e a árvore da vida nos remonta que como uma árvore devemos entender nossa ancestralidade, nossa introspecção, nosso meio externo. Através da visão do xamã, com seu capacete de caçador em busca de sua maior caça, ele próprio, o auto-entendimento, e a sua relação com o êxtase de elevação voltado aos galhos apontando para o céu.

Muitos praticantes do xamanismo celta utilizam a árvore sagrada para alcançar os reinos do além, do outro mundo, subindo pelos galhos ou descendo pelas raízes. Esta simbologia encontra-se também no fato de que as árvores possuíam um caráter de serem verdadeiros portais, pontos de adoração e respeito. Árvores como o carvalho, a aveleira e o azevinho eram extremamente consagradas nos rituais celtas. Algumas tribos chegavam a dar o caráter de ancestralidade a elas, ou seja, eram a raiz de uma tribo, o totem base para a cultura da tribo, eram os lugares de recolhimento para reuniões e discussões importantes, onde as alianças e contratos eram selados. Nada mais natural, pois estas árvores eram canalizações diretas da influência do além, do pacto entre homens e seus deuses.

Outro fato interessante é que também encontramos a relação de caminho e vida com relação a uma fonte (fonte de Segais), de onde surgem os sete rios da vida. Nasce no mundo inferior (ancestralidade) e pressupõe-se sete caminhos da alma rumo aos desígnios do estereótipo e da psique. Muitas culturas, inclusive a egípcia, crê no nascimento das águas como sendo o começo da vida; no Cristianismo, com Jesus ao andar pelas águas; nas mitologias africanas na junção, mar (mãe) e céu (pai); na trindade celta (céu, mar e terra); em todas encontramos a consagração do elemento água, líquido amniótico que traz a vida.

Para os xamãs, sua busca começa no mundo médio e se prolonga pelo outro mundo, e esse tramitar é muito importante, pois traz não apenas a busca por outras sensações, mas o contato com outros seres pelo qual são repassados conhecimentos. A cada jornada, uma aventura, um conto, um poder a ser entendido e respeitado.

Nas festividades celtas é normal encontrarmos portais que nos levam aos ancestrais, outros seres e deuses. Nada seria mais comum para aqueles que procuram nesta forma de religação o contato entre os mundos.

A mitologia celta é rica em contos folclóricos a respeito da travessia entre os mundos, colocando vários portais sobre a terra levando a incríveis estórias de aventura. É muito citado sobre as nove árvores de avelã que crescem em torno das bordas de um lago. Estas aveleiras deixam cair seus frutos, que são o símbolo da sabedoria e da inspiração oculta nas águas deste lago, onde a água é também conhecida como fator inicial da vida. Dentro do lago vivem cinco salmões, que comem as mesmas. Quem come do salmão recebe a sabedoria. O salmão possui, além dos atributos de sua esperteza, também o da beleza, de ser um navegador do lago da vida. Isso nos traz a lembrança de um peregrino caminhando pelos mistérios da vida.

A sabedoria da avelã é a visão que engloba todo o Universo, ou seja, para os celtas tudo está incluso e perfeitamente equilibrado entre os mundos. Quem consome a avelã concebe o equilíbrio aos mundos, a perfeita consciência dos caminhos entre ser e estar, do interior e exterior, da migração da alma, do começo ao fim e ao chegar ao fim voltar ao começo. A avelã é a semente da árvore da vida, é a contemplação. Tudo nasce dali e se projeta e volta a se tornar semente e assim cumpre o ciclo da roda do ano.

Um pouco sobre Contos Celtas
e o Xamanismo Celta

Cormac e Connla foram convidados ou seduzidos para começar suas jornadas "xamânicas". No exemplo de Connla: "Connla que num encontro (festividade) estava no monte de Usnach com alguns companheiros quando uma mulher estranha lhe disse: " - Eu venho das terras da vida, onde não existe a morte; nós mantemos as festividades sem fim e vivemos num reino de paz, vivemos na montanha e somos chamados de povo de fairy (povo das fadas)".

Os companheiros de Connla não poderiam ver ou ouvir a mulher, e um dos druidas da corte dirigiu-se a ela mantendo distância e lançou uma maçã a Connla. Após este evento, Connla não poderia comer e nem beber, exceto a maçã, que se renovou continuamente. Connla não mais se importou em remanescer neste mundo, e depois que encontrou a mulher numa outra vez, partiu em uma viagem pelo mar com ela à terra da juventude.

É comum que os heróis celtas que fazem parte dos contos estejam em busca de sabedoria e de conhecimento e sejam testados diante da luxúria e da beleza como também diante de sua nobreza.

Também podemos citar a transformação através de um animal (totem), isto de acordo com a vontade pessoal ou através de uma punição. Há muitas estórias tradicionais celtas que relatam a transmutação em animais a fim de que possam aprender uma valiosa lição!

Numa das estórias celtas do País de Gales encontramos um exemplo de punição. Gwydion e seu irmão Gilfaethwy criam problemas para com o rei de Annwn, Pryderi, onde algumas leis são quebradas e a punição foi transformar Gilfaethwy e Gwydion.

Primeiramente Gwydion foi transformado num veado e Gilfaethwy numa corça. Nestes corpos são forçados a viver como marido e mulher até a morte. Em tal caso são transformados outra vez, desta vez Gwydion transforma-se em uma porca e Gilfaethwy em um porco. Numa outra vez, após a "encarnação" como porcos, vivem outra vez como lobos, Gwydion, o lobo, e o e seu irmão, a fêmea. Devemos frisar que foram três transformações, onde o número três tem uma forte importância para os celtas. Neste caso, o final de três ciclos, tal como acontece dentro da Bruxaria Tradicional voltada aos Celtas, existem três anos para o romper do primeiro ciclo do aprendiz.

Cada estória nos mostra além da busca pela sabedoria, a intervenção de um protetor ou guardião do local, um deus, um ser do outro mundo pelo qual é encaminhado o peregrino diante de um portal ou nova visão. Também podemos encontrar animais sagrados fazendo menções diretas a deuses tal como o cavalo para Epona, o corvo para Lugo, o gamo para Taliesin. Este fator é comum também no xamanismo de forma geral, a vontade e o poder ambos a serviço de uma causa comum, a viagem mais livre ao outro mundo e a obtenção de vivências e sabedoria.

As técnicas xamânicas, principalmente voltadas aos povos celtas, como ferramenta de busca de sabedoria, não visam uma causa superficial do próprio ego. A jornada, seja através do montar de um cervo branco, ou através do som do black bird, é um principio que nos leva a crer que existe muito mais do que nossos caprichos pessoais.

Alguns rotulam o que um xamã deve ser. Um xamã é o que ele em essência crê. Se é um bom conversador será um ótimo contador de estórias; se é dado a cuidar da saúde será responsável pela cura de si como também pode estender a seu semelhante; se resolve ter um pacto com o poder pessoal será um intermediário entre o homem e a divindade; portanto, não há como rotular, não há como dogmatizar certas heranças contidas na mais absoluta verdade interior esquecida do outro lado da lua, no oculto de nossa alma. 

Ricardo DRaco

 
Nota: (Fontes:
Antigas Estórias Irlandesas - Michael Harner, (1990).
Shapeshifting in Celtic Myth - por Kenneth R. White
O espírito do Xamanismo - Mircea Elaide (1971)
Xamanismo: Técnicas antigas de Êxtase - Kuno Meyer (1889)
Xamanismo: Como uma prática espiritual para a vida diária - Sandra Ingerman, (1991).
A maneira do Shaman - Tom Cowan, (1993).
Xamanismo celta: Um Manual - John Matthews, (2002).
Anam Cara: Um livro da sabedoria celta.
Taliesin: O último Shaman celta - Caitlin Matthews, (1995)
Viagem Celta de Jeannette - M. Gagan Ph.D.)