segundo encontro na quinta do frade: «ARTE, CIÊNCIA E ESPIRITUALIDADE» - ÍNDICE

F.J. CRAVEIRO DE CARVALHO

De Ms Katharine O'Brien às Greguerías

Esta conversa terá por tema Poesia Matemática, uma expressão que, naturalmente, resulta da junção das palavras Poesia e Matemática. Não me debruçarei sobre quaisquer aspectos experimentais de uso das palavras que, no contexto presente, me não interessam nada.

O que é que eu pretendo dizer? Que me interessa a ligação entre Poesia e Matemática feita  através de um poema, mais ou menos tradicional quanto à forma, que, entre outros aspectos, possa envolver ideias vindas da Matemática, um processo de construção matemático, por exemplo o uso da sucessão de Fibonacci para o número de sílabas ou palavras em cada verso, ou ter carácter biográfico.

É comum, ao andar pela net, encontrarem-se curtos textos poéticos, humorísticos, sem dúvida, mas que não vão além da anedota engraçada. Nada de mal, têm uma função de diversão e cumprem-na, mas aqui, sem querer parecer pretensioso, pretendo ir mais além. Isto é, a maioria dos poemas que iremos ouvir têm  qualidade suficiente para se aguentarem por si literariamente.

Um exemplo da diferença que pretendo estabelecer é dado pelos dois poemas seguintes, onde um é uma piada divertida e o outro propõe uma meditação, dramática diria, sobre certas situações da nossa vida:

 

Solução nova para um velho problema 

A filha da topóloga era muito suja e  activa

até aquela pensar em Möbius e na fita.

A porcaria de dentro

ficava assim logo fora

e a bébé limpa sem demora.

 

Eleanor Ninestein 

e 

Haiku contra a geometria romântica 

Nunca tive jeito para a geometria

porque vejo sempre na pirâmide

o suor de quem a construía. 

Fernando Grade

 

O meu interesse por estas coisas surgiu  no final da minha carreira profissional e, honestamente, proporcionou-me uma alegria e um entusiasmo que estava já longe de esperar. Concretamente, deu a origem a um percurso em que descobri e traduzi muitos poemas e poetas, actividade criativa  que me deu um prazer enorme.

 

1. Katharine O'Brien 

Em Leeds, em Junho de 2006, não havia maneira de nos escondermos do futebol. Multidões a  deslocarem-se para e de The Millenium Square, écrans em tudo quanto era public house - o exagero terá sido tal que, em Agosto, em Londres e num pub pelo menos, vi o anúncio Sportsfree Pub - as wags, wives and girlfriends dos jogadores ingleses, a  viverem os seus 15 minutos dourados e a  estarem nas primeiras páginas todos os dias.

Tendo este pano por fundo, eu tentava estabelecer resultados matemáticos, numa luta, muitas vezes perdida, com a angústia que, para alguns,  sempre acompanha  o trabalho original.

E, uma tarde, descobri Katharine O'Brien através de um poema, notável, sobre Einstein.

 

Einstein 

Consta que, no seu primeiro dia em Princeton,  

foi dar uma volta (com a sua roupa amarrotada).

Entrou num café - hesitou -

depois sentou-se num banco e olhou à volta.

A seu lado, um caloiro, também só e deslocado,

consolava-se com um cone de gelado.

       

        A alegria de Einstein

        foi tão clara

ao ver cone e bola

(nas mãos de um caloiro numa gelataria)

       e - que incrível –

       comestível até ao fim!

 

Sorriu ao caloiro, o empregado veio,

Einstein apontou que queria o mesmo e ficaram às lambidelas, cúmplices,

sem palavras para se expressarem.

Mas não sendo estranhos já, nem estando isolados,

irmanados por um gelado.

 

Sendo um achado casual, tive muita sorte. Como viria a descobrir mais tarde, o poema atrás é, talvez, o melhor poema que Ms O'Brien escreveu.

Katharine O'Brien foi aquilo a que chamaríamos uma excelente professora de Matemática. Uma das 100 primeiras mulheres a obter o doutoramento nos EUA, sobre ela, alguém disse 

Um dia, sentada na minha aula aula sobre Escritores do Maine, ao ouvir o Dr Fife dissertar sobre os vários poetas, fiquei, de súbito, alerta, ao ser mencionado o nome Katharine O’Brien. Visualizei, imediatamente, uma mulher pequena, com óculos, a resolver os problemas de cálculo para os seus confusos alunos, pois Katharine O’Brien era a professora de Matemática na Deering High School em Portland, Maine, quando eu lá andara quatro anos antes. Realço a palavra a porque, sem qualquer dúvida, ela era a melhor professora de Matemática que qualquer escola daquele estado poderia oferecer. 

Embora não atinjam a qualidade do poema sobre Einstein, os outros poemas de Ms O'Brien são dignos de interesse. Mesmo estando muito próximos da Matemática, são veículos de alguma ironia, crítica social ou uma dose de carinho.

Vejamos alguns exemplos

 

Os Bernoulli 

Gente notável, sem dúvida,

Os Bernoulli.

Dois de nome Jacob, três João, em corajosas explorações,

Também um Daniel e dois Nicolau.

Oito ao todo, ao longo de três gerações.

(Das esposas nunca houve menção.)

 

História policial 

Uma equação é como um romance policial;

prende-nos logo mal começamos.

Perseguimos silenciosamente o assassino,

X representa Quem terá sido?.

 

Há que vasculhar primeiro o local do crime,

reunir todos os suspeitos,

preparar bem o interrogatório

para arrancar a X uma confissão.

 

Se o caso for complicado e de difícil resolução,

um apertão por Newton ou Horner

pôr-nos-á na pista certa

e X acabará encurralado a um canto.

 

 

Carta para o Pai Natal 

Visita os que têm dificuldades com a Matemática;

anima-os, ilumina-lhes o caminho.

 

Vê lá se regateias bençãos à Paula Certinha:

ela nunca se esquece de nenhum parêntese.

 

Aumenta a minha dose de paciência

quando eles se enredam com os logaritmos.

 

Dá-me resignação quando (e cito)

“Uma hipérbole é uma assímptota.”

 

São estas as faces que vejo diariamente.

Que cada uma se ilumine é o meu desejo!  

 

2. The Scottish Cafe 

O Scottish Cafe era o café em Lwów, hoje em dia Lviv, cidade ucraniana, na altura polaca,  onde nos anos 30 e 40 se reunia um activo grupo de matemáticos para discutirem problemas de investigação, principalmente, nas áreas da Análise Funcional e da Topologia. Nomes que faziam parte desse grupo incluem Banach, Ulam, Borsuk, Kuratowski, Steinhaus etc.

 As mesas tinham tampos de mármore de modo que era possível escrever neles a lápis durante as discussões. Havendo o perigo de os resultados se perderem  e irritada com o facto de escreverem sobre as mesas,  a mulher de Banach ofereceu um caderno enorme que viria a ser conhecido como o Scottish Book, usado para anotar enunciados e soluções e ao qual qualquer cliente tinha acesso.

 Resolver um problema dava direito a um prémio, que dependia da dificuldade do mesmo.

 Para o problema #153, que se veio a concluir estar relacionado com uma questão de Banach, the basis problem, Stanislaw Mazur, ofereceu um ganso vivo. Per Enflo que resolveu a questão em 1972 teve direito a ele, numa cerimónia transmitida em toda a Polónia.

 

Susana H. Case não é matemática, mas   escreveu “The Scottish Café", que ganhou a Slapering Hol Press Chapbook Competition, em 2002.

Perguntei a Susana por que se interessara por aquele grupo de matemáticos e a resposta foi 

Interessei-me pelo Scottish Café após ler um artigo sobre Banach e Tarski e o Axioma da Escolha num jornal de interesse académico geral, chamado Lingua Franca, que já não existe. Foi logo a seguir ao 9-11 e eu estivera a ver o fumo do meu apartamento e, na altura, não era claro se algo mais ia acontecer, de modo que comecei a pensar sobre como viver com alguma qualidade num ambiente de medo e a pensar nos matemáticos que viveram num ambiente de horror pior e mais duradouro e, contudo, conseguiram essa qualidade. Interessei-me e comecei a ler mais. De certa forma alguns dos matemáticos “perseguiram-me”. Sentia que se haviam amontoado no meu apartamento e que eu os via, vividamente. Fiquei surpreendida quando vi fotografias de alguns. Não eram as imagens que tinha na cabeça, embora pessoas que visitaram o Café me tenham dito que retratei bem o Café nos poemas. Tudo isto aconteceu depois de um período de alguns meses de incapacidade  de escrever fosse o que fosse, traumatizada, incapaz de usar o metro etc, embora, não tendo sido directamente afectada, tenha sido, digamos, um traumatismo indirecto. Não que tenha morrido assim tanta gente em comparação com outros acontecimentos no mundo inteiro, mas os americanos não estão habituados a ataques destes – fomos mimados durante muito tempo relativamente aos outros. 

Do seu livro escolhi 

Passas de uva 

Orlicz é um frequentador habitual do Scottish Café

o seu apartamento em Lvov é de facto pequeno

e até mesmo os seus espaços de Orlicz

não lhe deixam espaço que chegue em casa

que a sua mulher encheu com imensas

almofadas em lona bordada

de modo que ele cria espaços funcionais no café

cheios de paska* do seu queijo favorito

de onde tira as passas de uva

que o irritam

e usa-os para reunir

os catorze problemas que vão ser a sua contribuição

para o Scottish Book

 

o seu professor Steinhaus ainda não tem problemas

não se esconde ainda dos Alemães

que não estão ainda a caminho de Estalinegrado

o seu professor Banach não foi preso ainda

por negociar em moeda alemã

tudo mentira

a Matemática vai de boa saúde

mais de vinte cinco matemáticos

na Polónia ainda não estão mortos

 

o que deixa Orlicz suspenso

durante um delicioso momento no espaço e no tempo

onde o fermento e os ovos

o queijo fresco e os pães de açúcar

 

são ainda excepcionalmente doces

cobertos cuidadosamente pelo cozinheiro do Café

para se não queimarem

 

*Pão da Páscoa em países como a Polónia, Ucrânia e Eslováquia.

 

3. Um grande poeta 

Uma severa ligação à Matemática não produzirá, quanto a mim, grande poesia. Compreende-se, são dois domínios distintos, altamente especializados nos dias de hoje, requerendo ferramentas, intuições, juízos e tarefas próprios.

Os poemas anteriores serão sem dúvida curiosos e, certamente, estarão longe da banalidade dos nossos dias. Mas, serão grande Poesia?

 

O Prémio Pulitzer é, indubitavelmente, um prémio de grande prestígio. Mesmo que o não fosse, eu seria sempre levado a escolher  Charles Simic, um poeta cuja escrita me atrai, de inglês fácil de seguir. Simic é um grande poeta, servo-americano, vencedor do Pulitzer e finalista mais do que uma vez.

Diria que há uma tonalidade matemática suave nalguns dos seus poemas que lhes dá grande beleza e os torna, quanto a mim, grande poesia.

Os poemas que escolhi centram-se em três situações diferentes: 

O enlevo de um professor perante o universo enorme  e a sua disposição para levar com ele as crianças na grande viagem do conhecimento. 

As dificuldades que uma criança experimenta quando está ao quadro. 

E, finalmente, o desespero de alguém, com um ser querido institucionalizado numa casa de correcção, que contrasta com o abraço de um par amoroso, distante no ponto de fuga.  

O ponto de fuga não existe na realidade, apenas no plano de um desenho para transmitir a noção de perspectiva. Aqui pode ser visto como um ponto irreal para a pessoa que está detida, que não viverá, tão cedo,  uma situação como a do par que se abraça, ou pode mesmo ser a visualização da rua que se afasta onde, lá ao fundo, está o par.

 

Muitos zeros 

O professor levanta-se calado  ante uma turma

De crianças pálidas e lábios  fechados firmemente.

Atrás dele o quadro tão negro como o céu

A anos-luz da terra.

 

É do silêncio que o professor gosta,

O sabor nele a infinito.

As estrelas como marcas de dentes nos lápis das crianças.

Ouçam-no, diz ele feliz.

 

Histórias de fantasmas escritas 

Histórias de fantasmas escritas como equações algébricas.

A pequena Emily está muito assustada no quadro.

Os Xs parecem um cemitério à noite. O professor

quer que ela use um pedaço de giz entre eles como se fosse

um atiçador. Todas as crianças estão ansiosas. O giz

branco range uma vez entre os  sinais

de mais e  menos, e depois fica quieto.

 

De acordo com a perspectiva 

Num grande quarteirão

Onde fica a parede

Da casa de Correcção,

Alguém parou

Para gritar o nome

De um filho ou de uma filha.

 

Tudo o mais  no mundo

Parece estar suspenso:

O entardecer quente de verão;

O miúdo com patins de rodas;

O par prestes a abraçar-se

No ponto de fuga.

4. Haikus 

Quase a terminar, mencionarei   uma pequena contribuição minha, consciente que estou de mais não ser do  que "um soldado raso no exército de Euclides", expressão roubada a um muito querido amigo que, ironicamente, assim se referia às suas contribuições originais em Matemática. Nada irrelevantes, por sinal.

O Haiku ou Haikai ou, ainda, Haicai, é uma forma poética de origem japonesa. Caracteriza-se por ser um terceto, com 5 sílabas no primeiro e no terceiro versos e 7 no segundo, havendo ainda uma referência às estações do ano.

O cultor mais conhecido é Matsuô Bashô (1644-1694), cujo haiku sobre a rã tem dezenas de versões em inglês e português e noutras línguas, presume-se. 

Aqui vão duas versões portuguesas:

 

velha lagoa

o sapo salta

o som da água 

Paulo Leminski  

 

 

Velho tanque.

Uma rã mergulha.

Barulho da água. 

Cecília Meireles

 

Ou, por curiosidade e divertimento, uma versão gráfica e radical do poeta canadiano bpNichol, conhecido pela sua poesia experimental.

 

para ser lida como piscina e trampolim para a rã.

Os aspectos formais do haiku foram sendo abandonados ao ponto de, numa posição extrema, Jack Kerouac, expoente significativo da Beat Generation,  o reduzir a um poema com três versos. Kerouac sabia do que falava e o que queria, como se pode verificar lendo o seu Book of Haikus, donde extraímos este:

 

Uma circunferência perfeita o contorno

da lua

No centro do céu

 

Em Agosto de 2013 também eu escrevi uma pequena sequência de haikus de sabor matemático, sem causa aparente.  Alguns deles serão lidos agora.

 

Cabeça no ar

a circunferência perdeu o centro

e ficou uma curva informe.

 

Com a confusão

entre eixos maiores e eixos menores

a elipse acabou uma circunferência

 

Uma paralela gritou-lhe de longe:

Não nos podemos encontrar.

Não quero que nos confundam.

 

Porquê num céu desenhado infantil

as pontas de cada estrela

formam um polígono regular?

 

Do teorema de Pitágoras

há provas às dezenas.

Dezenas? Ouvi falar em centenas.

 

A circunferência tem prazer

em ser a cara da mulher

que a criança acaba de fazer.

5. O fim da história 

O meu empenho na descoberta e tradução de, digamos, poemas matemáticos foi diminuindo.

Basicamente porque me é difícil, agora que a linha do horizonte está cada vez mais próxima, encontrar o entusiasmo que já tive por tais actividades. Haverá ainda um certo cansaço causado pelas tentativas de obter autorizações para publicar as traduções que faço, não podendo, contudo, deixar de destacar a generosidade que encontrei tantas vezes em pessoas como Charles Simic, Jane Hirshfield e quase todos os outros, diria. Se calhar, talvez também não haja  já assim tantos poemas adequados a  esta forma de olhar. Mas continua a haver surpresas. E acabo com três greguerías maravilhosas de Rámon Gómez de la Serna: 

Os números são os melhores equilibristas do mundo: sobem uns para cima dos outros sem caírem. 

A menina com o  arco na mão vai, tanto ao jardim como à escola, brincar com a circunferência e a tangente. 

Os zeros são os ovos de onde saíram os outros algarismos. 

 

 

 

 

(Este texto, na sua quase totalidade, foi lido numa sessão na Universidade da Beira Interior, em Maio de 2014. Retirei apenas algumas observações que seriam descabidas aqui e fiz uma pequena adição no final.)

 
 
 
 
Tomada de imagem: Maria do Céu Costa
Fotos: https://www.youtube.com/watch?v=Bl_Tj2J2fnQ
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