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HUGH LACEY
Valores científicos e sociais -
Com base em que discordar?

Entrevista de Alessandro Zir

Hugh Lacey é professor do Departamento de Filosofia na Universidade de Swarthmore, Estados Unidos. Nascido na Austrália, é casado com uma brasileira, já tendo lecionado nas universidades de Sidney, Melbourne, Standford, USP e UNICAMP, entre outras. PhD pela universidade de Indiana, e pesquisador da US National Science Foundation, Lacey tem vários livros publicados, inclusive no Brasil. Esta entrevista refere-se principalmente ao material que podemos encontrar em seu livro "Valores e atividade científica", São Paulo: Discurso Editorial, 1998.

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Na sua análise do conhecimento científico, o senhor usa uma terminologia que inclui "valores sociais" e "valores cognitivos". O que esses termos têm em comum, enquanto valores, e no que eles diferem?

Para mim, um valor, em geral, é um critério do que é bom. Um valor cognitivo é um critério de bom entendimento. Um valor social é um critério de uma boa sociedade, e um valor moral é um critério de um bom relacionamento entre pessoas. Quando praticamos a ciência, temos interesse em aplicações que sirvam aos nossos valores sociais e morais - nesse momento, assumimos uma dada estratégia. A estratégia define quais possibilidades queremos pesquisar. Mas quando investigo, é importante que identifique possibilidades reais, que em princípio possa realizar na prática. Por essa razão, é importante que minhas teorias sejam avaliadas através de critérios confiáveis, os valores cognitivos.

Não é costume falar de valores cognitivos, talvez porque, em relação a eles, pareça existir consenso.

Isso é verdade. Quando falamos em valores morais, entramos em desacordo, mas com valores cognitivos geralmente não. Cientistas freqüentemente discordam a respeito das avaliações que eles fazem de teorias, mas raramente a respeito de quais sejam os critérios a serem utilizados em suas avaliações. Acho que é importante criar um espectro de valores tanto com relação a questões sociais, morais, políticas, econômicas, religiosas, estéticas, como com relação a questões cognitivas. A terminologia "valor cognitivo" foi introduzida por Kuhn, por volta de 1977, e a partir daí surgiu uma literatura sobre o assunto e controvérsias. Algumas pessoas não gostam dessa terminologia e preferem falar de "critérios de avaliação", "regras" e "confirmação". Mas, para mim, é importante reconhecer que esses critérios operam em termos amplos, de acordo com a mesma lógica, como valores em geral. Isso também sugere que valores não precisam ser simplesmente coisas subjetivas. Na ciência, esses valores cognitivos são mais ou menos objetivos - geralmente há acordo com relação a eles.

Das várias ciências que se praticam hoje em dia, o senhor concordaria que os cientistas de cada uma delas estabelecem critérios cognitivos diferentes para avaliação de suas teorias?

Eu não concordo exatamente com isso. Para mim, as diferenças principais são diferenças nas estratégias. É claro que a estratégia ecológica é muito diferente da estratégia de biologia molecular. Mesmo assim, nos dois casos é importante que nossos resultados sejam empiricamente adequados e que eles tenham poder explicativo. Penso, assim, que os mesmos critérios cognitivos estão em jogo. Por outro lado, é correto afirmar que as visões são muito diferentes. Na ecologia, tem-se uma perspectiva em que cada coisa está relacionada a um todo, o que não ocorre na biologia molecular. Essas diferentes visões de mundo afetam diretamente as estratégias, e a partir de diferentes estratégias os cientistas desenvolverão diferentes teorias. Mas os critérios de avaliação, eu sugiro, são os mesmos em ambos os casos, havendo talvez algumas diferenças de ênfase e significação. Em ecologia, ao contrário do que ocorre na biologia molecular, não se tem interesse em previsões exatas. Não há como prever exatamente o que irá ocorrer, mas sim identificar as várias possibilidades do sistema ecológico.

O senhor acredita então em critérios que seriam compartilhados pelas ciências em geral?

Sim, é uma posição controversa, mas essa é a minha opinião. No entanto, com uma qualificação: existe uma história dos valores cognitivos. Em Aristóteles e em Descartes, um valor cognitivo foi a certeza, mas para nós não é, pois não acreditamos poder obtê-la. O valor de concordar com dados precisos em termos matemáticos é do século XVII, e não existia na cultura grega.

Nessa sua perspectiva histórica, como podemos defender certos valores diante de questões como a da incomensurabilidade? Se existem valores mais básicos diferentes dos nossos, como é o caso em Aristóteles, como decidir qual posição é melhor?

Considero essa uma questão importante. Para identificarmos valores cognitivos, várias questões são relevantes. Primeiro, um valor cognitivo parte da prática científica. Por exemplo, poder explicativo: os cientistas têm interesse em explicações. Eles usam esse critério. Segundo, o valor cognitivo deve poder ser realizado - por isso certeza não é um valor cognitivo. Temos boas razões para acreditar que não poderemos alcançá-la. Terceiro, um valor cognitivo deve fazer sentido na luz dos objetivos da ciência, p. ex., de obter o entendimento de fenômenos. Podemos pensar filosoficamente sobre um ideal de entendimento, e, a partir desse ideal, derivar certos critérios. Essas questões não resolvem todos os problemas. Considerando o valor "simplicidade". É ele um valor cognitivo? A resposta é talvez. Existe discussão a respeito. Utilidade é um valor cognitivo? Bacon diz que sim, mas, para mim, utilidade é um valor social.

Essa sua postura com relação aos valores cognitivos é a mesma com relação aos valores sociais?

Com relação a valores sociais, provavelmente não no mesmo sentido. Acho que podemos concordar sobre o ideal de entendimento, mas não sobre o ideal de sociedade. Não que eu ache que esses critérios sociais sejam apenas uma questão de opinião - penso que precisamos ter argumentos para defendê-los. Em geral, na história, a questão do que é a boa sociedade é muito controversa, e acredito que essa controvérsia permanecerá no futuro. Mas isso não implica que não possamos discutir razoavelmente os valores sociais.

A escolha entre diferentes teorias científicas não está baseada nesses valores sociais controversos?

Pode ser. No meu quadro geral, é importante separar o lugar onde os critérios sociais e cognitivos são valorados. Os valores cognitivos são relevantes na escolha de teorias. Os valores sociais são relevantes na escolha de estratégias de investigação. Talvez eu rejeite certos valores sociais, e então não tenha nenhum interesse em certas estratégias de pesquisa. Por exemplo, posso não ter interesse nas estratégias de biotecnologia, porque descordo das aplicações dessas teorias. Mas não discordo dos fatos que elas confirmam. É importante então, para mim, entrar em diálogo com aqueles que sustentam a outra posição. Talvez eu possa convencê-los ou eles a mim. É uma situação complicada, mas não quero dizer que meus valores sociais mostram que os resultados das pesquisas deles são errôneos.

Como foi sua experiência com abordagens alternativas da ciência, como as feministas e a agroecologia?

Para mim, foi muito importante identificar alternativas. Certamente, existem muitas outras alternativas. Essas duas têm interesse para mim. Nos Estados Unidos, sempre está se discutindo com as feministas. Eu acho que, especialmente em certas áreas de psicologia e em psicobiologia, as abordagens feministas são interessantes. Mas estou interessado muito mais em agroecologia, pois sou católico e tenho interesse em Teologia da Libertação há muitos anos. Dou aulas sobre Teologia da Libertação, e esses valores da Teologia da Libertação são os meus valores. Eles estão vinculados de um modo muito interessante com as práticas de agroecologia.

Até que ponto pode-se separar valores cognitivos e sociais?

Tive essa discussão com meus amigos e amigas feministas. Muitos deles afirmam que não existe uma separação entre valores cognitivos e sociais. Os dois estariam sempre misturados. Em relação a isso, sugiro que devemos examinar exemplos. Com base em análises de casos, creio que uma distinção entre estratégias e valores cognitivos explica muito melhor a história da ciência, as controvérsias da ciência e inclusive a prática dos próprios cientistas feministas. Não tenho um argumento dedutivo para essa distinção, mas acho que os valores sociais que as feministas identificam nas teorias científicas têm a ver com as estratégias dessas teorias e não com os valores cognitivos delas. É importante, para as próprias feministas, que elas identifiquem possibilidades reais de transformação da sociedade. Se não podemos separar valores cognitivos e valores sociais, não podemos diferenciar realidade e ideologia. Nesse caso, se eu proponho modificar a sociedade numa dada direção e você não concorda, isso seria apenas uma questão de opinião.

É possível investigar valores sociais?

Em sociologia, investiga-se a sociedade, e distingue-se, por exemplo, sociedades que funcionam mais e outras que funcionam menos. Estes termos valorativos são parte da investigação sociológica. Em princípio, acho que não há problema com isso. Podemos analisar valores sociais empiricamente. Se alguém mantém que não é possível alcançar igualdade social, acho necessário que se produzam evidências de que essa pessoa está errada. Não é suficiente dizer que a posição dela não concorda com meus valores sociais . Alguns feministas e marxistas dizem 'meus valores exigem uma sociedade de tal tipo'. Para mim, os valores devem fazer com que se adote estratégias de investigação. Essas estratégias é que irão identificar se as possibilidades sociais em que acredito são reais. Não se pode evitar a investigação empírica. Sempre queremos que o mundo seja tal como acreditamos que ele é, mas não é assim.

A investigação empírica seria então necessária inclusive para questões éticas?

Sim, mas isso depende da tradição filosófica. Na minha opinião, as análises não cognitivas de valores sociais e morais não são corretas. Penso que, em toda a perspectiva sobre esses valores, estão implicadas certas pressuposições sobre a natureza humana e sobre as possibilidades da vida humana. A natureza humana e as possibilidades de convívio humano são passíveis de investigação.