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SOCRÁTICOS E ANTI-SOCRÁTICOS
Maria Estela Guedes

 

 

Algo como isto é atribuído a Sócrates, referindo a sua enorme sabedoria: Eu só sei que nada sei. Vejamos em que circunstâncias práticas a fórmula mágica funciona como interruptor que faz aparecer a luz, depois de premido.

Como podem ver no TriploV, compilei há pouco um conjunto de imagens alusivas ao Natal para pôr em linha como Boas Festas . Receio que no conjunto não haja nada da pintura contemporânea. O mais aproximado que encontrei foram quadros de Picasso sobre a família, que mostram três personagens, tendo a mãe o filho ao colo. Como nada indicasse que se tratava da Sagrada Família, não as incluí. Enquanto buscava as imagens, notei que a iconografia sacra aparece em quantidade fabulosa, originando-se em autores, períodos e estilos vários, mas é extraordinariamente pobre do ponto de vista temático. A bem dizer há só dois temas homogéneos, cujos motivos secundários variam: a infância e a Paixão de Jesus. Na infância, abundam os presépios, e escasseiam outros sub-temas. Além do nascimento, só encontrei dois quadros com o Menino Jesus já crescido, ambos alusivos ao repouso da família durante a fuga para o Egipto. A partir daqui há um salto para a Última Ceia, morte e ressurreição.

Ora, que conclusões tirar deste facto? Para já, da vida de Cristo pouco se sabe, por isso os pintores só representam aquilo de que têm conhecimento. Entre a fuga para o Egipto e o começo da pregação, há uma lacuna imensa, de Cristo só sabemos o equivalente a um Alfa e a um Ómega: "Eu sou o princípio e o fim", o que não deixa de ser fascinante, pois se reduz a pó biografia terrena, na esperança de uma outra vida mais plena, Algures.

De outra parte, concluo eu, a imagem cristã está a desaparecer, os pintores contemporâneos deixaram de fazer arte sacra. Seja porque a tendência actual é não só para abandonar a representação como para tornar a obra de arte um autómato, um ser independente da nossa vontade, seja porque o próprio Cristianismo esteja em declínio, a arte contemporânea tem na Catedral da Sagrada Família, em Barcelona, o seu derradeiro expoente, como afirmam os esoteristas, referindo-se a Gaudi como o último grande construtor de catedrais.

E o que tem isto a ver com socráticos e anti-socráticos? - pergunta o leitor. Respondo que acabei de representar o papel de um anti-socrático, que é o comum, nós todos somos anti-socráticos, infelizmente. Não nos damos conta disso, mas somos. O socrático é aquele que dá valor à sua ignorância, isto é, aquele que sabe que não tem no arquivo todas as imagens cristãs, que só compilou uma dúzia delas, e por isso nada pode concluir de estatisticamente válido com amostragem inferior a 100. Socrático é aquele que sabe que não sabe tudo, e neste caso não sabe se há muitas imagens além das publicadas no TriploV, a desmentirem tudo o que afirmou acerca de só existirem dois grandes temas na iconografia cristã relativa à vida de Jesus, reduzindo-se a da infância ao nascimento e fuga para o Egipto. E socrático é ainda aquele que reconheceria não saber se de facto a biografia de Jesus é lacunar, pois pode dar-se o caso de em alguma obscura biblioteca estarem conservados documentos que esclarecem onde viveu e o que fez durante vinte e tal anos, entre a fuga para o Egipto e o início da missão cristianizadora. Temos de nos habituar a questionar a sapiência própria e alheia, a perguntar: Como é que eu sei, como é que V. sabe isso? Muitas vezes o como até desaparece debaixo de um rotundo não sei e não sabe, pois não é raro escrevermos sobre o joelho e falarmos de cor.

Anti-socrático é o que não dá valor à sua ignorância, o que não reconhece sequer que não sabe: aquilo que ignora é transmitido como se não existisse. Ainda no âmbito da pintura, direi então, muito anti-socraticamente, que a obra de Kandinsky, ao contrário da pintura sacra, é tipicamente abstraccionista, o pintor toda a sua vida fugiu à representação, como provam as duas imagens em cima (2).

A nossa tendência natural, sobretudo quando fazemos uma investigação e já reunimos abundante bibliografia, é para agir como se não existisse mais nada sobre o assunto: nem mais documentos nem mais factos novos. E é sobre este não sei que não sei=não existe que tecemos a nossa interpretação ou teoria. Por isso a teoria se reduz a pó, quando novos factos e novos documentos aparecem. Por exemplo, toda a teoria científica de que o Homem é uma espécie recente na Terra assenta no facto de que não se conhecem registos fósseis nem outros, anteriores ao Quaternário, período geológico em que vivemos ainda. Esta teoria é anti-socrática, dá como inexistente o não encontrado; realmente só sabemos o que conhecemos, e só conhecemos o que descobrimos, é impossível saber o que ignoramos.

Seria mais sensato talvez teorizar e interpretar partindo sempre do princípio de que ignoramos mais do que sabemos. Basta aparecerem vestígios da presença humana no tempo dos dinossauros, ou mesmo mais tarde, para ruir o paradigma darwinista. E nós não sabemos se eles existem, apenas sabemos que não foram encontrados. Do não foram encontrados vestígios da presença do Homem na Terra antes do Quaternário até ao dogma de que O homem só apareceu na Terra no Quaternário vai toda a distância do socrático ao anti-socrático. Essa teoria vale tanto como a minha, a de que não há figuração na obra de Kandinsky. A única diferença está na categoria do emissor: do meu lado, sou um indivíduo a emitir uma opinião. Do lado da ciência, há um colectivo a manifestar um consenso, a votar por unanimidade. Em qualquer dos casos, ao que se manifesta falta o fundamento, porque não não é possível usar como prova aquilo que não temos, não sabemos, não encontrámos.

Pior do que isto, porém, é sabermos que sabemos alguma coisa, mas não termos a certeza da amplitude e implicações do nosso conhecimento. E por isso é ainda maior a insatisfação, quando achamos que em certas alturas o melhor é ficarmos calados.

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(2) Neste Dezembro de 2003, na Fundación Juan March, em Madrid, está uma retrospectiva - Kandinsky, Origen de la abstracción - , revelando que numa fase inicial foi um pintor familiar da representação, de características impressionistas, como revela a reprodução em baixo. As três imagens de Kandinsky que apresentamos foram extraídas do catálogo.