NICODEMOS SENA E O NATURALISTA

"Os índios são diferentes: levam a guerra no punho de seus tacapes; o terror que inspiram voa com o rouco som do boré; a pocema da guerra troa e retroa mais forte que a pororoca. Os índios têm “acangatar” (cocar), têm “nhanduab” (penacho), têm “oré mbaequab” (conhecimento de coisas), sentam-se conforme seu modo de sentar (“aguapic xe guapicabamo”), comem segundo seu modo de comer (“acaru xe carusabamo”). Sim, são “sarauaiamo oroicó” (selvagens), não têm “abá i aobeim” (roupa), mas são limpos, banham-se no rio muitas vezes por dia, enquanto os brancos andam “iumunéu uatá” (vestidos) mas são uns “sarigüé-nema” (sarigüês-fedorentos). “Conheço acaraí-quab (homem branco)”, prossegue Guaratinga-açu. “Cariua puxi reté” (homem branco é ruim). E conta que, ao chegar o primeiro navio português na baía de guajará, eles, os tupinambás, subiram confiantes a bordo, para comerciar, mas os portugueses os assaltaram, amarraram e escravizaram, por isso são inimigos. E arremata, provocando o riso dos seus companheiros: “Iandé perouicá, iandé poru, iandé carueté” (nós matamos gente, nós comemos gente, somos muito comilões)." NICODEMOS SENA

O acaso quis que ao TriploV, portal ocupado na sua parte mais extensa com trabalhos de investigação em História e Filosofia das ciências, tivesse chegado um folhetim de Nicodemos Sena, seu segundo romance, a editar em breve, "A noite é dos pássaros". O protagonista é Alexandre Rodrigo Ferreira, naturalista português do século XVIII, nome que deixa ver à transparência o de Alexandre Rodrigues Ferreira, naturalista português do século XVIII, explorador da Amazónia, e de quem sobra de facto um romance, constituído por inúmeros textos, alguns bem mirabolantes, sobretudo os oriundos dos colegas de ofício - naturalistas que fazem História da História Natural. Esse romance é especialmente notório no capítulo do destino que levou o seu espólio científico.

A mais recente obra publicada sobre esse filósofo natural, em dois volumes, traz por título "Viagem ao Brasil de Alexandre Rodrigues Ferreira", Kapa Editorial, s/l, 2002. Inclui ensaios de Carlos Almaça, José Pereira da Silva e outros, e apresenta muitas estampas resultantes da expedição.

A do lado representa um índio mauá e também faz parte do acervo relativo a essa expedição. Pertence ao Arquivo histórico do Museu Bocage e foi publicada numa obra importante sobre os naturalistas portugueses desta época: "Scientific Expeditions in the Portuguese Overseas Territories (1783-1808), de Wiiliam J. Simon (Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983).

Não sei até que ponto há uma biografia no folhetim de Nicodemos Sena, pois a única vantagem que de momento tenho sobre os leitores é conhecer os três primeiros episódios. Do terceiro recolhi o fragmento em epígrafe, por revelar um esforço de veracidade histórica num outro nível, que não o biográfico. De facto, Alexandre Rodrigues Ferreira era português, nascido no Brasil, mas explorou a Amazónia décadas após o que o romance relata (partiu de Lisboa em 1783), não consta que tenha estado em risco de ser jantado pelos índios, e é difícil aceitar que fosse ateu, ele, que, entre as obras que sonhou escrever, fala algures de uma "Teologia" dos vermes ou outros invertebrados. De notar que esse termo, "teologia", não é raro em obras da época dedicadas às plantas e animais. De regresso do Brasil, Alexandre Rodrigues Ferreira teve a seu cargo a direcção do Real Jardim Botânico da Ajuda. Suceder-lhe-ia Brotero, e após isto a instituição mergulha, com a História Natural portuguesa, na cinza que recobre os tempos das guerras liberais. Ele pertence a um período brilhante mas muito curto de actividade científica, possibilitada pela Reforma da Universidade, ao integrar o laboratório e as ciências experimentais nos currículos escolares. Uma vez independente o Brasil, quando a História Natural volta à cena, é para se ocupar sobretudo das colónias africanas, imperativo político da partilha de África pelas potências europeias.

De esforço de fidelidade falei, por parte de Nicodemos Sena, mas noutro nível, mais amplo e conceptual do que a obediência aos factos históricos estritos. É o caso do uso do bilinguismo, a que aliás o autor faz questão de se referir no prefácio, para justificar que algumas personagens falem tupi. E é também a tentativa de recriar o choque de culturas entre grupos antropológicos tão díspares como, no caso, os europeus e os índios, mas que existiu também com povos de outros continentes, no período pré-colonizador, em que o europeu se confinou às regiões litorais, por impossibilidade de penetrar no interior das "conquistas". É interessante o modo como se designam os territórios ao longo dos tempos, pois denunciam o tipo de relações que os europeus sentiam ter estabelecido com essas vastíssimas propriedades além-fronteiras. No tempo de Alexandre, eram as "conquistas", mas não os conquistados, pois o grupo de naturalistas de que fazia parte, discípulos de Domingos Vandelli, teve justamente por missão o reconhecimento cientifico-político dos territórios ultramarinos numa dimensão de profundidade, daí que a Amazónia lhe tivesse cabido a ele em sorte. Uma vez conhecido o interior, e feitas tentativas de povoamento, tantas delas falhadas, e mesmo em pequeníssimos territórios, como as ilhas de Cabo Verde, as "conquistas" passam a chamar-se "possessões". E de facto... É uma verdadeira doença, uma possessão diabólica, o que se passa em África com as "possessões ultramarinas", em particular no seguimento da Conferência de Berlim.

Talvez o maior choque do europeu em confrontação com negros e índios tivesse sido esse costume que abre "A noite dos pássaros": a antropofagia. Em África, constitui argumento para as potências europeias se instalarem, alegando a sua missão civilizadora. Havia regiões absolutamente tabu para a ciência, como o Daomé (Benim). A dar crédito às cartas de Francisco Newton, em linha no TriploV, ele foi o primeiro naturalista a fazer ali uma exploração - isto já em finais do século XIX. De um lado, num país em que todos os animais são sagrados, o mais que o naturalista podia era coligir rochas e plantas. Mas o maior perigo era o de serem comidos.

Sem contextualização política, social, militar, e mesmo afectiva, a História, seja ela das ciências ou outra, não passa de um rol de informações desconexas. O escritor é livre de tratar as personagens e assuntos como entende. Não será de mais insistir em que a obra de arte é criação e não cópia de um pretenso real. Também não se pode exigir ao artista outras verdades que não sejam a dele e a estrutural: um romance é uma casa em que tem de haver uma ordem, uma verdade interna, sob pena de o tecto desabar sobre os alicerces. Por isso o escritor pode ser infiel, como no caso é, à biografia do naturalista. Porém o facto de não existir concordância total entre o que relata e o que conhecemos não é motivo para supor que a literatura não deva constituir uma fonte documental tão legítima como a proveniente do campo científico - e todos os leitores atentos do Triplov já devem ter notado que só com luvas e pinças se pode mexer nas fontes científicas do naturalismo; a verdade, nelas, existe, claro, mas só em travesti. A poesia, a ficção, devem fazer parte do corpus do historiador das ciências. Em muitos casos há biografias exactas, e, não havendo, há aquilo que falta à documentação científica: contextualização. Em "A noite é dos pássaros", cuja informação assenta em parte nesse corpus científico em que é bom ter cautela quanto à verdade que manifesta, parece nítido que a colagem da ficção à realidade se faz sobretudo no plano antropológico e linguístico. Mas eu deito-me a adivinhar que o mais apetecível do folhetim é uma bela história de amor, por isso vos convido a seguirem o link abaixo, para comprovação.