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Madrid, Onze
Maria Estela Guedes

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O 11 são as armas do pecado
Santo Agostinho
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É claro já que o 11 não é número de acaso. O 11 é símbolo de ruptura de uma unidade, o ciclo completo representado pelo 10. Mais ainda, o 11 é igual a 2, a divisão do que devia ser uno. O 11 manifesta também a luta individual.

Estamos, no TriploV, consternados com os acontecimentos de hoje em Madrid. A quem nos leia e entenda a língua, em especial colaboradores espanhóis, manifestamos desgosto pelo sucedido e solidariedade com a sua dor. Aos portugueses manifestamos o receio de que um terceiro ou quarto 11 atinja Lisboa.

Não é fácil lidar com estes problemas, Maquiavel não é um autor pacífico. Quase diariamente lido com problemas idênticos ao ler o texto científico, simplesmente o texto é um documento do passado, a História afecta-nos muito menos do que o presente e o futuro próximo. E o problema é este: vemos que há pessoas a lutar contra injustiças, contra uma crueldade às vezes implacável, contra um total desprezo por outra faixa da humanidade, e somos solidários com essa luta, porque não? Quem, hoje, sobretudo, não seria solidário com os que combateram o esclavagismo?

Hoje, enquanto em Madrid uns morriam e outros gritavam, fazia eu pesquisa na Biblioteca Nacional. Tema: a escravatura, precisamente. Nos ficheiros manuais busquei a gaveta das fichas relativas ao assunto, e de facto está lá uma gaveta com etiqueta "Escravidão", mas sem as fichas correspondentes. Perguntei onde estavam as fichas, responderam-me que não sabiam, tinham desaparecido.

É contra este tipo de ofensas intelectuais que tenho feito o meu 11, a minha luta individual, sabendo embora que, quem faz desaparecer fichas, livros, documentos, exemplares de museu, etc., não está agir por mal, sim movido por bons sentimentos. Nem sequer destrói o que é bom, sim o que contém ilusão, o que engana, o objecto falsificado. Quem introduz deliberadamente formas fatais de agentes patogénicos numa região agricola, se tal foi feito, agiu em prol de um ideal humanitário, acabar com a escravatura nessa região. Quem criou falsos documentos para pôr um agente secreto nesse local, também agiu movido pela vontade de mudar um regime que consentia vilezas. Quem lança nos textos a lepra das gralhas está a contar uma verdadeira história nelas, e as vítimas desse código invisível são-no de um combate contra a impossibilidade de falar. E por aí adiante.

Sou solidária com a luta contra a injustiça. Sou solidária com as vítimas inocentes de todas as guerras. Sou contra as guerras, prova mais do que cabal de que não há civilização nenhuma de que nos possamos orgulhar, isto é, se fomentamos guerras contra os mais fracos, se usamos os mais fracos como nossas bestas de carga, não podemos chamar selvagens às bestas de carga, porque muito mais selvagens somos nós.

Mas não é admissível a doutrina de Maquiavel, não é possível aceitar que todos os meios sejam bons desde que os fins a alcançar sejam bons também. Por isso a minha simpatia e solidariedade com todas as causas justas e boas ficam muito abaladas face aos meios usados, quando os meios de luta são a escrita gralhada, a destruição de ficheiros, livros, imagens, exemplares de museu, e, mais sério ainda, quando os meios são a chacina humana.

Lamento.

 

Lisboa, 11 de Março de 2004