DO DODÓ À FÉNIX
Parte II
Transmutação na iconografia científica (fim)
Nuno Marques Peiriço 



Patos, Pombos e Avestruzes  

Figura 6: a) DoDó representado por Pieter Withoos em 1684 (in Luna de Carvalho); b) DoDó representado por Salomon Savery em 1680 (in Wissen).


A transmissão do carácter pescoço curvado não vai além do filhote, afinal Withoos, em 1684, mostra-nos o DoDó como um belíssimo pato a cortejar uma pata, de pescoço curto e erecto, sem qualquer ar melancólico, pelo contrário. É Salomon Savery, parente de outros Saverys, que em 1680 ainda mantém o pescoço curvado da família. Mas essa é a única semelhança entre a imagem de Salomon e Roelandt, pois as aves representadas pelos dois autores diferem em todos os restantes caracteres. O que não é de espantar, afinal foi o próprio Roelandt Savery quem também desenhou um DoDó bastante idêntico ao de Salomon e totalmente diferente das suas representações anteriores (figura 7). Só fica por saber quais as semelhanças e diferenças entre estes Saverys que nasceram com dezoito anos de intervalo.  

Figura 7: Desenho de Roelandt Savery representando Dodós em habitat natural, patente na Croecker Art Gallery, Sacramento, USA. In Wissen.

 

Maiores transmutações são observáveis em Minaggio (1618), ao representar um Dodó que se transcende a si mesmo, elevando-se à grandiosidade de um dragão, na forma tendencial de avestruz. Oxalá S. Jorge não liquide o guardião do Jardim das Hespérides, ficávamos sem as maçãs de ouro e o DoDó corria o risco de não alcançar a imortalidade.  

 

 

 

 

 

Figura 8: Cena de Caça ao DoDó representada por Minaggio em 1618. In Luna de Carvalho.

Este aspecto tendencial de avestruz concretiza-se na imagem de Gessner, que representa um verdadeiro Struthio camelus, que alguém tomou por DoDó. Tal é a semelhança que Lineu já tinha classificado o DoDó como Struthio cucullatus, o avestruz encapuçado.

Tirando dispersas similitudes com patos, cegonhas, galinhas, abutres, pinguins e avestruzes, a tendência dominante da ciência é para incluir o DoDó entre os pombos. Os terrestres, por não se assemelhar aos bons voadores, se bem que com os terrestres também não se pareça, conforme declara Milne Edwards. Strikland & Melville resolvem o problema considerando-o uma forma aberrante de pombo, com paragem do desenvolvimento do aparelho de voo.

Milne Edwards nota que as modificações dos pombos para adaptação à vida terrestre são diferentes das apresentadas pelo Dronte, não podendo por isso ser considerado um pombo terrestre, nem sequer da mesma família, sendo necessário criar para ele uma família distinta.

Na linha dos pombos, ou tão próximo quanto a imaginação o permite, apenas encontrei uma imagem, existente no Museu de Port Louis, na Maurícia, não na secção de sexologia, sim na de História Natural. Pelo ar reconfortado da ave, sou da opinião que se trata de uma pomba, possivelmente uma das belas que Leguat amou quando passou por Rodrigues.  

 

Imagem 9: Representação de DoDó patente no Museu de Port Louis, Mauricia. In Luna de Carvalho.

 

Pedras, Ovos, Sementes e Hipopótamos

Na moela do DoDó encontra-se sempre uma e só uma pedra do tamanho de um ovo de galinha, diz Leguat. A comprová-lo, Newton & Clark apresentam três imagens de uma de três pedras, que encontraram na Rodrigues, aquando da Transit of Venus Expedition. Esta pedra, além de desenhada em três posições, foi analisada em profundidade, para detecção dos elementos minerais que a compunham. Basáltica na maior parte, continha hematites, plagioclases, feldspatos, olivinas, labradorite, opacite, augite e outros macrolitos. E anotam os autores que não se pode afirmar que fosse semelhante à pedra descrita por Leguat, por indubitavelmente não ser achatada num dos lados. De outra parte, a ave à qual pertencia aquele apêndice era jovem, pois a pedra ainda era pequena, só pesava 21,26 gramas. Talvez a pedra crescesse com o indivíduo, como pretendem os alquimistas que metais e minerais crescem e se desenvolvem; a menos que não fosse uma pedra, sim um bezoar, como Newton & Newton tiveram ocasião de comprovar em outro artigo.

Já nos nossos tempos, coube a Stephen Jay Gould (1996b) informar que o objecto contido na moela dos DoDós era a semente muito dura de uma árvore que habitava as terras altas da Maurícia, Calvaria major. Gould conta que Temple, o autor da novidade, argumenta que a Calvaria desenvolveu a sua casca invulgarmente espessa como uma adaptação para resistir à destruição por esmagamento numa moela de DoDó, tornando-se dependente da existência deste animal; visto que, só depois da abrasão, os embriões conseguiam furar a casca das sementes e germinar. O autor provou a teoria, socorrendo-se de perus - nas suas palavras, os análogos modernos mais próximos do DoDó - que obrigou a engolir 17 sementes de Calvaria, das quais 10 foram excretadas ou regurgitadas (as restantes esmagadas) e, destas, 3 germinaram. Hoje as Calvaria quase não existem e a culpa da sua extinção é atribuída ao desaparecimento do DoDó.

E assim, comendo as últimas sementes a caminho do Calvário, o DoDó transmutou-se em peru, para expiar as suas faltas debaixo dos pés do Cristo, à semelhança do dragão. Muito se arrependerá quem em Florença o baptizou.

Quanto a ovos, conheço um. A ser de DoDó, diz Kitchener, a ave teria o tamanho de um avestruz, mas como o autor não concorda que o ovo seja de DoDó, até esse, vindo de uma ilha onde só por milagre haveria avestruzes, se tornou duvidoso. Resta a esperança que seja de hipopótamo, pois já vos informei que existem em ilhas. Uma vez que os animais em ilhas sofrem fortes transmutações face ao stock parental, não será de todo impossível que os hipopótamos ponham ovos na Maurícia. Afinal, não será isso muito diferente de um pequeno pombo verde voar para uma ilha, aí engordar e perder a capacidade de voo e depois ir a nado para outras duas a 600 Km de distância, onde se transforma um pouco mais. Tudo isto num período inferior a 10 milhões de anos.

E ainda há quem diga que o DoDó era lento.

 

Anomalias Geográficas

Newton & Newton, ao discutirem a fauna e flora insulares, consideram que a existência de duas espécies de DoDó na mesma ilha apenas seria possível caso houvesse uma separação dela, como é o caso da Nova Zelândia, em que cada ilha tem a sua espécie peculiar de Apterix. Segundo os autores, a existência de espécies únicas com grande variabilidade individual em pequenas ilhas oceânicas não só está de acordo com o conceito de Selecção Natural, como é um forte argumento em seu favor. O que os pensantes irmãos Dupont & Dupont esqueceram é que não se trata de uma, sim de 3 espécies em cada ilha e isso de forma alguma concorda com o conceito de Selecção Natural. Aliás, talvez por isso um dos autores tenha implorado a um tal Snr. Janner para encontrar mais ossos de solitário e depois de aparecerem umas largas centenas deles, sabe-se lá de quê, puderam os ditos irmãos concluir que a espécie era única na Rodrigues.  

Figura 10: Elementos da avifauna das ilhas do Pacífico apresentadas por Brehm: a) Raphus cucullatus - o DoDó; b) Didunculos strigirostris - a galinha vermelha.

Mas os problemas não acabam aqui, estendem-se até às ilhas do Pacífico, onde Brehm localiza o DoDó endémico das Mascarenhas, com uma sua prima, a galinha vermelha, isto pelo lado Oeste; para Sul, o DoDó encontra-se na Austrália, de acordo com a tradução portuguesa de Alice no País das Maravilhas, na edição da Afrodite (Carrol).

 

Survival of the Fittest

O DoDó desapareceu no século XVII da Maurícia e no século XVIII da Reunião e da Rodrigues, mas as transmutações persistem nos dias de hoje. A última, aclamada com direito a capa da Oxford Today foi a nova silhueta anos 90 do DoDó (figura 11b). 

Figura 11: Modelos actuais do DoDó: a) Zoölogisch Museum van de Universiteit van Amsterdam; b) Oxford University; c) American Museum of Natural History; d) British Museum; e) Mauritus Museum.

  A pedido do Director do Museu da Universidade de Oxford, Kitchener, com centenas de ossos à sua disposição, fez um mapa de um esqueleto na escala de 1:50, a partir do tamanho médio de cada osso. Construiu um esqueleto a que juntou plasticina para representar músculos e outros tecidos. Obteve uma imagem singularmente idêntica ao primeiro retrato do DoDó, visível na obra de Cornelius Van Neck, um DoDó de pernas altas e pescoço fino. O modelo do autor sugeria um animal com peso entre 12,5 e 16,1 kg. Ora Herbert, por exemplo, garantia que o DoDó pesava no mínimo 23 kg. Outro método, baseado numa escala para o peso dos ossos dos pombos, permite estimar um peso entre 10,6 e 17,5 kg. Por mais que tentasse, nunca Kitchener conseguiu obter os 23 kg indicados por Herbert.

O DoDó era muito mais magro do que se pensa, por isso podia ter ganho a corrida eleitoral de Alice no País das Maravilhas. O mesmo aliás fora descrito em 1662 por uma testemunha ocular, o senhor Volquard Iversen, náufrago numa ilha a sudeste da Maurícia, que conta: Amongst other birds were those which men in the Indies called doddaersen [”round bottoms”]; they were larger than geese but not able to fly. Instead of wings they had small flaps; but they could run very fast.

Kitchener põe a hipótese de que o DoDó estivesse sujeito a ciclos sazonais muito diferentes nos recursos alimentares. Oudemans acrescenta que este comportamento é similar ao de outras aves endémicas da Maurícia, mas ressalva que nunca nenhuma delas mostrou discrepâncias de peso tão drásticas como as patenteadas pelos quadros do DoDó.

A confiar em Kitchener, conclui-se que os primeiros desenhos e quadros, que mostram uma ave muito mais magra do que aquela que estamos habituados a ver, foram todos efectuados no ciclo de grande pobreza de alimento. Os restantes, a partir de cerca de 1626, que apresentam invariavelmente a variedade mais pançuda, foram pintados durante o ciclo de abundância. Kitchener formula outra hipótese, com base no conhecimento de que a maioria das representações posteriores a 1626 são de artistas europeus que nunca foram à Maurícia. Os DoDós cativos na Europa eram por alguma razão mais gordos: They might have grown dissolutely obese on the voyage, gorging on an unrestricted diet of ship’s biscuits and the weevils that inevitably went with them. Outros autores lembram que os animais, na Europa, eram domésticos e por isso provavelmente sobrealimentados.

Da conclusão dos seus estudos, Kitchener elaborou um novo modelo de DoDó, patente no Museu de Oxford, a partir do qual se confirmam as expectativas do autor acerca da boa capacidade de corrida. Ao contrário do que tem sido dito do DoDó há mais de 340 anos, the reality is, however that in the forests of Mauritius it was lithe and active.

O autor aceita a tese dos ciclos sazonais mas nunca nas proporções que as figuras patenteiam. Finalmente, comenta com tristeza: Sadly, it is from this portraits of the last captive individuals that most people have gained their impressions of the world’s largest and famous pigeon.

Olhando para as representações da figura 11, vemos que tem sido acidentado o caminho mutante de uma ave que teve a triste missão de ser a primeira espécie extinta da era moderna. À semelhança do que tem acontecido com outros endemismos, em outras partes do mundo (Guedes & Peiriço), não julgo que a história acabe aqui. Acredito antes que por detrás de tanta transmutação há outras histórias, segredos por contar, códigos por decifrar. Em suma, jogos que me são difíceis de jogar.

Mas arrisco, e mesmo sem estar certo das regras avanço com as minhas propostas. Se as transmutações do DoDó forem apenas uma questão de adaptação às correntes da moda e do design, permitam-me que apresenta a minha proposta para a colecção DoDó século XXI.

 

Figura 12: Galo monstruoso de Aldrovandi.

  Podem rir. Mas se o fazem é porque certamente já esqueceram as regras do jogo. Eu levanto o véu. A informação que vos queria passar é que, creio eu, o DoDó, nascido como galo peregrino, só deixou de o ser para se tornar na galinha vermelha. Isto é, a espécie de DoDó é única, aquela que se transmutou em Aphanapterix imperialis. A ser verdade, terá razão Jerry Berg Man ao sugerir que os factos da história do DoDó não suportam o mito da evolução, suportam sim a corrupção moral da humanidade?

Eu não tenho a resposta, pois como vos disse desse jogo não conheço as regras. Apenas vos lembro que esta é uma história com início alguns anos depois da edição da obra de Darwin, On the Origin of Species, numa altura em que a Ciência começava a ganhar algum espaço à Igreja Católica e em especial ao Santo Ofício.

Por outro lado, o DoDó é uma ave nauseabunda, de formas grotescas, pateta e pachorrenta que se transmuta num animal de encantadora beleza, ágil, bastante elegante e com uma plumagem exuberante e cuidada. A valer pelo seu poder transmutante, o DoDó é a Fénix, ainda que inepta por não saber voar. 

 

Do Dodó à Fénix, III - Maria Estela Guedes