Professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Eduardo Gonçalves Crespo tem-se dedicado, entre outras matérias, ao estudo da biologia dos anfíbios (sapos, rãs, salamandras, cecílias) e dos répteis (cobras, lagartos, osgas, etc..) em diversas vertentes: sistemática, evolução, anatomia comparada, genética, bioacústica, conservação, e agora, com a publicação de Paleo-herpetofauna de Portugal*, aos seus vestígios fósseis ao longo de vários períodos geológicos, em Portugal e também em Espanha.

A propósito da publicação do seu livro, E.G.Crespo teve a amabilidade de nos conceder uma entrevista, que permite aos especialistas saber algo da composição paleofaunística de répteis e anfíbios na Península Ibérica, mas também esclarece os não especialistas acerca do trabalho do paleontólogo, de quais as diferenças entre o material classificável por ele e pelo zoólogo, e até sobre o que deve entender-se pela palavra "fóssil".


E.G.CRESPO


TRIPLOV : - Depois da recolha que fez no seu livro, "Paleo-Herpetofauna de Portugal", o Prof. Crespo ficou certamente com uma ideia segura da riqueza do material fóssil do nosso país, não só em relação a outros espaços, como a Espanha, mas também em relação aos tempos geológicos. Qual dos períodos melhor exprime a riqueza da nossa herpetofauna e a singularidade das suas espécies?

E.G. CRESPO : - Cara Estela, no que se refere a vestígios da paleo-herpetofauna, o território que agora é o nosso país é relativamente rico, sobretudo no Jurássico superior, Cretácico e Miocénico. É claro que este facto está intimamente associado à circunstância de os terrenos daquelas épocas terem sido propícios à sua conservação e não, propriamente, à maior ou menor riqueza faunística daqueles tempos. Por exemplo, durante o Paleozóico, é natural que tenham existido muitos grupos no nosso território mas, devido à natureza dos terrenos (metamorfizados e erodidos), não deixaram quaisquer vestígios – isto no que respeita a vertebrados terrestres.

TRIPLOV : - E em relação à paleo-herpetofauna espanhola?

E.G. CRESPO : - Bem, não se pode fazer uma comparação minimamente credível entre a riqueza da paleo-herpetofauna espanhola e portuguesa. Depende muito das jazidas que foram descobertas e até do modo como foram mais ou menos exaustivamente estudadas. De qualquer modo, do meu ponto de vista, o período que exprime maior riqueza e até certa singularidade, é, no nosso país, o Jurássico superior/Cretácico. Principalmente no que respeita a dinossauros.

TRIPLOV : - Em tempos remotos, havia crocodilos na região que hoje é Lisboa. O clima e o ecossistema eram então muito diferentes dos actuais?

E.G. CRESPO : - Na região de Lisboa, os vestígios de crocodilos datam sobretudo do Miocénico. O ecossistema era na altura bastante diferente. No começo do Miocénico, uma vasta transgressão marinha...

TRIPLOV : - Transgressão marinha...

E.G. CRESPO : - Sim, um avanço do mar atingiu o litoral português para sul das Azenhas-do-Mar, em Sintra, com maiores repercussões (mais de 30 Kms) nas bacias do Tejo e Sado. Subsequentemente houve sucessivos avanços e recuos do mar. No início do Miocénico, prevaleceria um clima de características tropicais (com temperaturas que chegam a ser semelhantes às que actualmente se verificam no Golfo da Guiné). Já no Miocénico médio teria prevalecido um clima de características mediterrânicas ou sub-tropicais secas, mais quente do que o actual. No fim do Miocénico, o clima ter-se-ia tornado ainda mais quente.

Os crocodilos então existentes, Diplocynodon, Tomistoma lusitanica e Gavialis sp., seriam sobretudo formas de estuário, embora capazes de fazer algumas incursões nas zonas marinhas costeiras. Aliás, a presença de crocodilos é um excelente indicador da prevalência de condições tropicais. O arrefecimento que teria ocorrido posteriormente teria sido certamente a causa do seu desaparecimento definitivo no nosso território.

TRIPLOV : - Qual a percentagem de fósseis de espécies actuais, como Pleurodeles waltli, em relação aos de espécies desaparecidas, como os dinossauros, na Península Ibérica?

E.G. CRESPO : - As espécies actuais, ou próximas das actuais, da nossa herpetofauna, só começam a surgir a partir do Miocénico - géneros Vipera e Coluber (Serpentes) - e só declaradamente a partir do Plistocénico (1.5 M.a B.P.). Os vestígios mais antigos que se conhecem de Pleurodeles waltl em Portugal são os da Guia (Albufeira), que datam do Plistocénico superior, ou são ainda mais modernos.

TRIPLOV : - Interessava saber a percentagem...

E.G. CRESPO : - Mas não se podem estabelecer comparações entre as percentagens dos fósseis das espécies actuais em relação aos das espécies desaparecidas, como os dinossauros! Tudo depende do número e da natureza das jazidas encontradas. E também de muitos outros factores. O facto de se encontrarem numa certa jazida cem fósseis de uma dada espécie ainda actual não quer dizer que esta seja mais abundante e mais difundida do que o facto de se encontrarem dois dinossauros noutra jazida. Depende das dimensões, hábitos da espécie, etc., etc....

TRIPLOV : - O sistema de classificação do zoólogo, que tem à sua disposição os animais completos, e até vivos, além de saber que constituem populações, é muito diferente do dos paleontólogos, que por vezes nem ossos têm para classificar, apenas concreções geológicas com forma de ossos. Quer explicar-nos quais os meios do paleontólogo para classificar dados vestígios como pertencendo ao cágado Mauremys leprosa, se o herpetologista o classificaria a partir de caracteres externos, por exemplo as listas na pele do pescoço?

E.G. CRESPO : - Os caracteres que servem de base às "classificações" taxonómicas actuais são em princípio todos aqueles que estão disponíveis: morfologia externa, morfologia interna (incluindo ossos), fisiologia, bioquímica, análise genética, etc.. Os paleontólogos em geral apenas recorrem ao que está disponível - restos de peças ósseas fossilizadas. Têm portanto mais dificuldade em fazer uma classificação correcta que traduza, nomeadamente, relações de parentesco entre as várias formas que vão encontrando. Muitas vezes têm de fazer extrapolações em relação ao que se observa nas espécies actuais. Em princípio, não há qualquer diferença nas filosofias classificatórias dos taxonomistas das espécies actuais e das fósseis. Só que neste último caso se recorre apenas, mais frequentemente, a um dos critérios que são utilizados - anatomia óssea.

Na classificação (identificação) de Mauremys leprosa, não nos socorremos apenas da morfologia externa. Estuda-se também o esqueleto e, como disse, no vivo, tudo aquilo que pode ser evocado e estudado para nos permitir uma identificação o mais correcta possível.

TRIPLOV : - Gostávamos de saber a partir de que idade há justificação para dar a vestígios de animais e plantas o nome de "fósseis". Como o Prof. Crespo sabe, também há menção de fósseis de Geochelone, tartaruga terrestre, para Cabo Verde. Esses vestígios foram atribuídos ao Quaternário, o período geológico em que suponho estamos a viver ainda. Se datassem de há 150 ou 200 anos, era correcto chamar-lhes fósseis?

E.G. CRESPO : - A designação de "fóssil" nada tem a ver com a idade. Depende apenas do facto de o osso (matéria orgânica) ter sido substituído, por "impregnação", por material inorgânico que lhe manteve mais ou menos a forma que tinha tido em vivo. Pode assim haver fósseis com milhões de anos e outros com apenas alguns milhares, ou mesmo mais recentes.







*CRESPO, E.G. (2001) - Paleo-herpetofauna de Portugal. Museu Bocage, Museu Nacional de História Natural, Lisboa. Publicações Avulsas, 2ª série, 7: 186 pp.

Endereço
Departamento de Zoologia e Antropologia
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Centro de Biologia Ambiental
Campo Grande, C2, 3º Piso, 1700 Lisboa
Tel. # 351 21 757 3141 (ext. 1592); fax: # 351 21 750 0028.