.. COLÓQUIO INTERNACIONAL "A CRIAÇÃO". CONVENTO DE S. DOMINGOS. LISBOA. 2001


A EQUAÇÃO BELA
Discursos escolares sobre a Criação – pontes entre a pré e a pós-modernidade
Paulo Mendes Pinto:
Centro Interdisciplinar da Universidade de Lisboa (CICTSUL)


É difícil conotar um  significado preciso à expressão «verdade científica». Assim o significado da palavra «verdade» varia segundo se lida com um facto experimental, uma proposição matemática ou uma teoria científica. A frase «verdade religiosa» não me comunica nenhum significado certo.

[…] É certo que, por trás de todo o trabalho científico de nível superior, subjaz uma convicção – idêntica a um sentimento religioso – da racionalidade ou inteligibilidade do mundo.

Esta crença firme, uma crença ligada a um sentimento profundo da existência de um espírito superior que se revela no mundo da experiência, representa a minha concepção de Deus.

Albert Einstein, Sobre a Verdade Científica.


1. É comum dizer-se que Einstein procurava para a explicação matemática do universo a chamada "equação bela", sinónimo de uma complexidade extrema e, ao mesmo tempo, de uma simplicidade avassaladora.

Uma simplicidade complexa plenamente encontrada na frase atribuída a Charlie Chaplin aquando de uma visita de Einstein a Hollywood para ver o seu "City Lights" em 1931: As pessoas a si aplaudem-no porque ninguém compreende as suas teorias, e a mim porque todos entendem os meus gestos - a complexidade da teoria e a simplicidade da expressão artística lado a lado no mesmo aplauso da multidão.

De facto, os seus conceitos físicos eram verdadeiros momentos de criação do espírito. O maior elogio que podia dar a uma teoria não era dizer que ela estava correcta, mas sim que era «bela».

Neste sentido, a Ciência já não é simplesmente a Ciência Experimental como tradicionalmente se caracterizava. A oposição de Huxley entre literatura e ciência de que emana a sua oposição entre mundo social da vida e universo amundano dos factos não tem qualquer sentido na formulação da ciência que vimos nascer com Einstein.

Toda a estrutura fisico-matemática montada por um largo número de brilhantes cientistas que culmina na Teoria da Relatividade, de Einstein, na Teoria Quântica, também de Einstein e ainda de Planck, Bohr, de Broglie, Schrödinger, Dirac, Heisenberg, Pauli e Born, e no Princípio da Incerteza, de Heisenberg, mostram uma ciência que em nada se adapta a uma visão simples, talvez simplista, do paradigma da Ciência Moderna (jamais A implicará simplesmente B).

Acima de tudo, o Princípio da Incerteza de Heisenberg será como que a prova cabal de que a Ciência, maiusculada, é claro, deixara de funcionar dentro do estrito campo da ciência vitoriosa da tecnologia produtiva e imediata patente nas grandes exposições de finais do século XIX: a ciência reconduzia-se a um campo de proficuidade matemática e de construção de modelos teóricos, deixando num segundo plano a criação tecnológica de ponta – já a investigação baseada nos fenómenos electromagnéticos tinha, desde Maxwell em 1855, conduzido ao uso de modelos como descrição dos fenómenos, numa lógica de relações de analogia entre «physical laws and laws of numbers».

A ciência pode estar próxima do quotidiano, pode alterar os hábitos e as ferramentas do trabalho que tal não é necessariamente factor de desagregação mental; quando a ciência sai do quotidiano, sai do estrito campo da aplicação tecnológica que a torna vitoriosa aos olhos comuns, quando deixa de ser agradável pelo bem-estar tecnológico que proporciona, e passa a ser incómoda pelos sustentáculos que coloca em causa é que se põem em marcha verdadeiras Revoluções Científicas.

Ora, o conjunto daquelas teorias atrás referidas são um dos essenciais momentos, embora restrito a um campo muito específico do saber, em que a Ciência equacionou e colocou em causa os ditos sustentáculos do cosmos e da visão que o Homem tem de si. De facto, ainda em 1944, no lançamento da corrida tecnológica que caracterizará o American Dream, o Presidente Roosevelt referia-se às «novas fronteiras do pensamento» enquadrando a Ciência numa eterna visão de progresso, ao encomendar a Vannevar Bush as bases de uma política de desenvolvimento científico que só nos anos noventa seria posta em causa. Só na última década é que as ideias de «fim do progresso», «fim da objectividade» e «fim da era moderna» se tornaram quase avassaladoras para toda a comunidade científia.

A existência de um «método científico», qualquer que ele seja, permite a constatação de que um fenómeno não existe fora de um quadro de referência que possibilita a sua leitura. Os fenómenos físicos, humanos e sociais, e também os teológicos, pressupõem, para a sua cognição, uma instrumentação que é sempre fornecida por quem indaga e nunca por quem é indagado; a linguagem usada nessa cognição é sempre resultado de uma fenomenologia do indagante; e o direccionamento da questão indagatória parte sempre do indagador.

Ora, isto implica que os poderes cognitivos do Homem jamais poderão ser fixados em categorias estáveis e imutáveis. As regras em que a Ciência se move são subjectivas e podem - e devem - variar de acordo com as funcionalidades teóricas que os cientistas encontram, de forma a fornecerem constantemente instrumentos de expressão adequados a novas realidades.

A viragem crítica que Einstein efectua a nível da Física só quase um século depois chega à visão do próprio conhecimento, tomado num sentido global. As noções de espaço absoluto e de tempo absoluto da física newtoniana dão lugar às de espaço e tempo relativos, num processo de re-equacionamento do mundo que acaba por re-lançar, com uma necessidade - essa sim absoluta - a questão da relatividade do divino.

Trazendo a relatividade para o equacionar do próprio mundo, é também, inevitavelmente, a noção e o lugar da divindade que é relativizada, que é despida de dogmatismos irrefutáveis e de causalidades directas. Neste caso, assinale-se, a ideia cosmogónica e de regência universais são indissociáveis. 

2.

Anteriormente à transformação protagonizada por Einstein, outro momento em que a Ciência equacionou e colocou em causa os ditos sustentáculos do cosmos e da visão que o Homem tem de si encontramo-lo em meados do século XIX através da eclosão de uma nova concepção de tempo vinda da Geologia, primeiro, e da Teoria da Evolução das Espécies, depois. Este é o momento em que a Ciência Moderna chega, de facto, ao campo da cosmogonia, abalando os saberes instituídos.

Esta alteração da noção de tempo, criou a capacidade mental para trabalhar, ou melhor, para inventar, a Pré-História e o Mundo Pré-Clássico na sua verdadeira dimensão temporal, e não mais no quadro tradicional que apontava a simultânea criação do mundo e do homem para o ano de 4004 a. C, por vontade e execução directa do Deus criador.

Durante algumas dezenas de anos decorreu uma cerrada luta entre uma visão simples, apoiada na tradição e na autoridade bíblica, e uma visão inovadora, complexificante da leitura do Homem e do seu posicionamento no mundo, de dificil gestão no campo da fé. Ao nível da divulgação escolar, só em meados do século as posições entram em confronto.

Vejamos a veiculação cientificizante e a sua reacção, através de alguns indicadores que nos pareceram fundamentais para a aferição da recepção desses novos conteúdos, no chamado "saber oficial".

Em 1825, Francisco de Arantes escreve uma obra essencial para esta nossa abordagem, mostrando o peso crescente na argumentação historiográfica da capacitação cronológica:

Ninguem hoje duvída, que o estudo da Chronologia he um preliminar indispensavelmente necessario para o perfeito conhecimento da História.

[…]

A fonte mais pura e mais fecunda para a História antiga he sem contradição alguma a Santa Biblia. A sua Chronologia he inteiramente conforme á da Historia profana, e por meio della podemos inteiramente ligar toda a carreira dos tempos, desde a creação do mundo até J.C., que comprehende certamente um periodo de tempo de 4000 annos.

De facto, em todos os manuais editados durante as primeiras quatro décadas de oitocentos existem as categorizações de História Sagrada e de História Profana, sendo que a primeira define e enquadra a segunda; isto é, a cronologia bíblica como referência para a História da Humanidade e para a História Natural é plenamente aceite, é um dado totalmente consensual.

O fim desta consensualidade surge na década de quarenta, nomeadamente nos textos de João António de Sousa Dória (1844) e de José da Motta Pessoa de Amorim (1847). Nestes autores encontramos dados que são claramente a expresão da necessidade de definirem a sua posição teórica face a algumas inovações que circulariam, e com as quais eles não concordariam.

Assim, Pessoa de Amorim define o seu trabalho como uma História Sagrada; afirma haver uma História Profana, mas a que apresenta tem a grande vantagem face à outra de ser inspirada:

A historia sagrada porém apresenta grandes vantagens sobre a historia dos povos escripta por autores não inspirados. É o proprio Deus que faz aqui de algum modo as vezes do historiador, e que dá á narração o mais alto gráo de certeza a que se possa chegar, porque é apoioado por um testemunho inffalivel.

É grande a preocupação que apresenta pela cronologia, cada vez mais um dado de desconforto na escrita sobre as civilizações antigas.

O dado essencial desta obra para a nossa questão é a clara aparição da noção de «infalibilidade» aplicada à História Sagrada. Esta noção está perfeitamente interligada à de «Verdade Absoluta» que encontraremos nas encíclicas que décadas mais tarde procurarão regular as relações entre o conhecimento científico e as visões teológicas do catolicismo. Esta noção de «Verdade Absoluta» - vocabularmente tão próxima das de "Espaço e Tempo Absolutos» da física newtoniana – não poderia nunca ser aplicada a uma resultante da pena humana.

Pela expressão o mais alto gráo de certeza a que se possa chegar vemos a primeira grande crítica que sistematicamente será feita ao discurso científico: a perenidade das suas conclusões.

Verdadeiramente interessante, porque mostra duas vertentes do conservadorismo português face às novas visões da criação do mundo e do homem, é a obra já citada de João António de Sousa Dória, (Compendio de História. Para uso das escholas) quase transversal a todas as restantes produções bibliográficas na área dos manualistas.

E este manual é efectivamente importante porque, por um lado, tem uma longevidade bastante grande: a sua primeira edição é de 1844, e em 1880 ainda se publica, indo na duodécima edição - obra lida e relida pelo mundo escolar nacional; por outro lado, e corroborando a adaptação da obra ao público, ela é aprovada e reaprovada para uso das escolas.

Nesta obra, de larga tiragem, de grande leitura, e de acordo com os programas oficiais, o autor não tem qualquer dúvida no que diz respeito à cronologia da criação do mundo e do homem. Em primeiro, divide a História em história sagrada e história profana, como vários outros autores, em segundo lugar ainda estabelece a primeira como matriz cronológica da segunda. Vejamos:

Outros povos antigos tem assignado ao mundo uma antiguidade tal, que nem a lei christan o admite, nem a boa razão a justifica.

Não é nosso proposito discutir essas espinhosas questões [...].

Os annaes sagrados, apoiados sobre a revelação, são hoje quasi geralmente reconhecidos. Seguil-os-hemos.

[...]

Diremos pois com a Biblia, cuja autoridade respeitamos, que a antiguidade do mundo, a contar desde o momento da sua creação sobe já a 5878 annos, sendo 4004 antes de 1874 depois de Christo.

Sendo o corpo da obra de 1844, este trecho é escrito em 1874, sendo a edição de 1880. Isto é, há uma clara continuação da ideia de criação do mundo em 4004 a.C., mesmo bastante depois da edição das obras de Darwin. Mais, esta visão é sancionada pelo Estado, integrada no corpus do "saber oficial" e transmitida no sistema de ensino, ao mesmo tempo que outras obras, também elas com pendor educativo, já veiculavam o contrário.

Assim, no campo da produção bibliográfica directamente eclesiástica, encontramos o sub tema História Sagrada conservado até finais desse século.

Ponto marcante na reflexão que apresentamos é a obra de Joaquim Lopes Carreira de Melo, de 1856: Resumo de História Universal Profana. Esta obra mostra um dos pontos de maior inovação criada em meados do século a nível da visão cronológica do mundo ao ser a primeira a fazer a passagem de manual de História Sagrada a manual de História Profana. Este facto é ainda mais relevante ao termos em conta que, como a obra anterior, a visão sacra da História ainda domina até finais do século XIX.

Apesar de francamente inovador e marcante, esta obra ainda está marcada pelos dados vindos da tradição; naturalmente, esta obra tem ainda toda a sua cronologia assente no Dilúvio e nos descendentes de Noé.

Com esta separação de disciplinas, estamos perante o inicio da separação de métodos, de objecto, de funcionalidades e de finalidades dos respectivos discursos. Em vez de afrontamento, separam-se os fins e os conteúdos: Ciência e Teologia começam a ser aqui dois campos distintos.

No entanto, e apesar das inovações trazidas pela obra anterior, de Carreira de Melo (1856), em 1867 (onze anos depois) José de Sousa Amado dá ao prelo a sua Selecta Portugueza.

Ora, para este padre, a História Sagrada recommenda-se por si mesma para ser adoptada como linha conducente e ilustrativa do seu manual. No que diz respeito à sua visão da cronologia da criação, é de referir que o autor mostra ter feito algumas leituras, que critica:

Qual fosse a duração dos dias da creação é ponto sobre que os mesmos Philosophos bem intencionados não estão de accôrdo.

Cuvier, Champollion, e Augusto Nicolás determinam-se pelo sentido de épocas indefinidas; Sorginet, Jean, e o cardeal Wisemen defendem o sentido litteral da palavra dia. Este diz: com quanto seja louvavel (a theoria das épocas indeterminadas) em seu objecto, não é decerto satisfatoria nos resultados.

Cumpria fazer esta observação, para que se não tenha como averiguado um ponto de tanta transcendencia, e que affecta a simplicidade da linguagem biblica, segundo Aras citando o cavalheiro Drach; o qual crê ser perigosa a tendencia de sacrificar a simplicidade santa do texto da Biblia ás exigencias variaveis de uma sciencia, que caminha ás apalpadellas, e que destruirá, talvez, ámanhã, o que hoje edificou.

Este autor é-nos essencial. Tendo de caracterizar o novo conhecimento científico para o mostrar não operativo para as questões em causa (com quanto seja louvavel em seu objecto, não é decerto satisfatoria nos resultados), o autor mostra um conhecimento efectivo do campo em causa. Em certos aspectos nem o já muitas-vezes-citado Einstein diria melhor acerca da noção de Verdade Científica.

Efectivamente, neste texto não existe uma refutação simplista da ciência. Ficamos com a clara ideia de que o Pe. José Amado sabe o que é Ciência – apenas a não toma para o objecto em causa. Não hesita em dizer que os cientistas são bem intencionados, mas a sua questão não é essa. O fulcro reside na caracterização da leitura teológica e do método científico.

Por um lado, a teologia assenta na simplicidade da linguagem bíblica, isto é, na simplicidade santa do texto da Biblia. Quer isto dizer que a natureza da própria escritura, santa, inclui, por natureza, uma simplicidade inevitável das coisas sagradas.

Por outro lado, a Ciência apresenta um método que em nada se adapta ao campo teológico. Começamos logo pela definição de Ciência como um todo: se, por um lado, os cientístas são, de facto, bem intencionados, a verdade é que não estão de accôrdo. Mais, a Ciência, por definição, apresenta soluções variaveis, e caminha ás apalpadellas. Por último e totalmente destruidor de qualquer resquício de confiança, a Ciência destruirá, talvez, ámanhã, o que hoje edificou.

Efectivamente, Einstein não teria dito melhor …