NATURAL?! O QUE É ISSO?
ABERTO O COLÓQUIO
De 2.11.2003 a 21.05 2004
INICIATIVA DO PROJECTO LUSO-ESPANHOL
"NATURALISMO E CONHECIMENTO
DA HERPETOLOGIA INSULAR"
Subsidiado pelo CSIC (Madrid) e ICCTI (Lisboa)


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Interações E O Princípio da Indeterminação Genética

Gledson Sousa

Palavras-chave

O DNA como memória; a physis aristotélica; a cultura como permanência sublimada da natureza; o RNA de interferência; as interações contínuas entre os seres; o substrato psíquico (William Sterne); desumanizar a natureza, naturalizar o humano.

 

O século XXI será o século da engenharia genética. Mais do que qualquer outro campo da ciência, é para a engenharia genética que os cientistas direcionam seus olhares ansiosos, na expectativa de encontrarem, na ciência da manipulação genética, a esperança de solução para inúmeros problemas que afligem a humanidade. Como se fosse um planeta distante ou uma terra a ser conquistada, os cientistas, através de centros e laboratórios de pesquisa, concentram esforços na busca por novas descobertas nessa que se transformou quase numa promessa de panacéia universal, não só para os males do corpo, mas para os males psicológicos e até para os males econômicos, como a melhora da produção de alimentos através do alimentos geneticamente modificados, como se a engenharia genética fosse uma caixa de Pandora às avessas.

Mas por dar ao homem o poder de interferir na estrutura básica da organização biológica - o DNA -, a engenharia genética traz à tona a discussão de esferas conceituais que há muito tempo foram dadas como definidas por anos de prática de cosmovisão cristã, as esferas da natureza e da cultura. A engenharia genética tem sido prodigalizada com discursos míticos, fabulosos, onde cientistas revelam suas esperanças demiúrgicas de redesenharem o mapa do humano.

E perguntamos: mas o que é humano? O que é natureza? O que, de fato, nos separa, nos segrega da natureza? O que define a nossa humanidade?

Não é nossa intenção discutir a conceituação filosófica da natureza e da cultura ao longo da história, não. Partindo do princípio de que natureza e cultura interagem continuamente, assim como interior e exterior (o homem e o mundo), sairemos da physis aristotélica, retomada por Holderlin, para tentar dimensionar os riscos da manipulação genética e os limites devidos da ação humana sobre a natureza.

Holderlin, retomando uma discussão que fora iniciada por Aristóteles, diz, no Fundamento a Empédocles: Na vida pura, natureza e arte opõem-se apenas harmonicamente. A arte é a florescência, a perfeição da natureza. Aqui, a cultura é continuidade, não ruptura. A humanidade é, então, a capacidade de perfeição da natureza. O homem faz, com seus instrumentos, que a natureza revele a si mesma onde ela não é capaz de fazê-lo sozinha. Poderemos dizer que a cultura é a permanência sublimada da natureza.

Enquanto a visão aristotélica caminhava no sentido da diferenciação, porque ele precisava contrapor a racionalidade, o conceito à natureza para poder se firmar, nossa visão, partindo de Holderlin, se afasta da visão positivista (e freudiana) de que natureza e cultura se contrapõem, o que não quer dizer que corrobore a visão darwiniana que uma evolução natural levará ao melhor dos mundos possíveis.

Numa primeira visão, é difícil sustentar a idéia de que a cultura é perfeição sublimada da natureza, quando ao olharmos nossas realizações culturais percebemos que cada passo dado pelo homem na criação da civilização e no sentido de sua progressiva melhora representou um passo atrás na relação do homem com o meio, ou um passo a frente na degradação dos ecossistemas e na destruição dos biomas. Mas essa visão desaparece quando vemos o próprio universo humano como Natureza, como continuidade e não como ruptura. Perceber a humanidade como continuidade da natureza é procurar situar-se dentro do todo e não à parte.

Vejo a civilização como o discurso de auto-afirmação do homem. Assim como um filho, na sua insegurança e imaturidade, se contrapõe aos pais para firmar sua própria história, para dar sentido aos seus elos, mas ainda assim continua sendo filho, continua carregando não só material genético, como também predisposições culturais e psicológicas herdadas dos pais, a civilização foi o discurso de auto afirmação, a esfera de diferenciação que permitiu ao homem compreender seu papel no meio, após percalços e percalços. Merleau-Ponty dizia que a natureza (...) é a auto-produção de um sentido. O nosso sentido, o sentido da humanidade, criaturas racionais que somos, só poderia nos ser dado pela diferenciação do discurso e da razão quanto a natureza.

Talvez estejamos não no fim, mas nos primórdios de uma futura humanidade, se conseguirmos compreender nossa função no meio e a necessidade permanente de interagir positivamente com ele, alcançando uma visão multi dimensional da vida. Atribuímos à natureza o que era nosso e assim não a compreendemos. O eu, as cidades e os hospitais psiquiátricos são uns dos tantos acidentes da nossa razão, que nos levaram a uma visão bidimensional e maniqueísta da vida.

De fato, o eu é nossa reserva de proteção contra natura, porque não há, na realidade, um dentro e um fora quanto ao mundo psíquico do homem. Só existimos de fato quando nos confrontamos com o mundo, quando interagimos com o mundo, só aí o indivíduo aparece como o conjunto de qualidades psíquicas que o torna singular, que o torna único. Negamos o eu, mas não a existência do psíquico. Como disse William Sterne o substrato do psíquico tem de ser algo que está para além, ou é anterior à divisão entre psíquico e físico, por isso assegura a unidade originária do indivíduo humano.

Essa fronteira da unidade originária, longe de ser reduzida pela pesquisa genética, podemos dizer que ela se alarga cada vez mais. Hoje nós percebemos o homem como uma contínua interação entre meio ambiente e cultura, entre corpo e psique. Pode-se dizer não só que o substrato psíquico aumentou suas fronteiras, mas que fica difícil definir exatamente se há fronteiras que separem o corpo e a psique.

Prefiro acreditar numa continuidade espaço-temporal entre corpo e psique, assim como acredito no DNA como uma sutil membrana (permissiva e seletora) a separar nossa natureza da Natureza, ou, invertendo a proposição, conforme a visão holderliniana, a Humanidade, da nossa humanidade.

Pesquisas recentes sobre censura genética, ou mais precisamente, sobre a ação do RNA de interferência, sugerem uma ação genética que é não só seletiva e protetora, mas que também é memória .

Sim, memória. O DNA é memória da natureza inscrita em cada celular viva, pronto para perpetuar a vida da melhor maneira possível, o que não quer dizer que essa maneira tenha de corresponder as expectativas humanas ou a algo que imaginamos conveniente para nós. A continuidade das diferentes formas de vida é determinada pelas suas relações com o meio, ou, melhor dizendo, pelas interações criadoras com o meio. Sabemos que há não só evolução, mas também a chamada evolução regressiva ou Sacullinização , onde uma espécie pode sofrer atrofia ou perda de características físicas, ainda que possa ter ampliado seu campo de ação ou sua funcionalidade.

O fato de que o DNA seja memória acumulada, aliada a descoberta da pequena diferenciação entre o DNA humano e o do nosso parente mais próximo - o gorila - ser tão pequeno, trazem a tona a marca especificamente natural da nossa humanidade, ou humana, da nossa natureza: o homem é o único animal capaz de ter memória como história, de ter a noção de continuidade no tempo, talvez por isso o mais apto a pensar na natureza como continuidade, a ter projetos de perpetuação de uma idéia, uma linhagem, um meio, além de ser capaz de mudar o meio a história. Mas ele precisa compreender isso numa dimensão muito mais profunda do que a que a tábula rasa da ética capitalista nos propõe. Quantos milhares de anos transcorreram para que os genes do milho assumissem a feição atual e quanto eles representam de memória de sucessivas interações entre a planta e o meio ? Há quanto tempo os genes humanos vêm se conformando e quanto eles representam de acúmulo de experiências dos nossos antepassados em interações com o meio ? Que mudanças poderão ocorrer a longo prazo num meio onde foi implantada soja geneticamente transformada, que recebeu genes de lagosta ?

É totalmente inócuo comparar o campo de visão humano com a totalidade que a natureza representa. Enquanto o homem dimensiona suas necessidades e as postula sobre as possíveis mudanças genéticas que ele planeja, as contínuas transformações genéticas a que a natureza submeteu às espécies aconteceram em interações sucessivas e auto-regulatórias onde a parte sempre estava subordinada ao todo, o que não acontece na visão humana, daí seu risco totalitário, absurdo.

A fronteira genética, a fronteira do DNA é o campo das interações natureza X cultura. Parte dessas interações é temporal, parte é espacial, ou melhor dizendo, elas se dão num contínuo espaço-temporal que a engenharia genética, a prosseguir na sua mundivisão pragmática e utilitarista, promete abortar.

Da mesma forma que Heisenberg formulou o princípio da indeterminação - física -, queremos formular, analogicamente, o princípio da indeterminação genética.. não sabemos o que acontece com aquilo que manipulamos, porque nossas escalas de tempo são limitadas e as mudanças naturais acontecem numa escala de milênios ou mais.

As mudanças genéticas acontecidas naturalmente não acontecem isoladas, mas como resultado de interações das espécies com o meio. O todo reflete a parte e a parte reflete o todo em uma rede de interações contínuas, e não de modo isolado. Realizar mudanças genéticas através da engenharia (genética) é quebrar a rede de correspondências que há entre as diferentes formas e os diferentes ciclos de vida, de maneira que não sabemos o que pode vir a ser.

Melhor formulando o princípio da indeterminação genética, podemos dizer: não sabemos o que acontecerá com aquilo que manipulamos (geneticamente) porque não temos controle de todo o processo, mas só de parte dele, e nossas escalas de tempo são limitadas, enquanto as mudanças e reações naturais se dão numa escala de milhares de anos. A manipulação genética causa uma alteração brusca, com um resultado minimamente previsível, porque não sabemos como será a continuidade do processo, resultado das interações do organismo geneticamente modificado em suas relações com o meio.

É preciso se aproximar do pensamento mitopoético para intuir parte das interações entre os seres. A natureza é um todo contínuo, onde as diversas partes se unem qual as águas de vasos comunicantes. Muito se fala sobre as mudanças genéticas da planta do milho como resultado de um constante labor do homem na cultura do milho; mas além da cultura do milho e da seleção feita pelo homem no sentido de aprimorá-lo, houve a luta incessante da planta contra o sol, chuva, vento; houve a expansão criadora de alguns indivíduos em direção a algo melhor como parte dessa luta, num demorado processo de aprendizado e memória. Mal imaginamos como essa memória foi afixada e em que momento o indivíduo a incorpora e a transmite.

Os seres vivos são dinâmicos, e não estáticos e previsíveis. Sei o que acontece a uma pedra que eu manipular, sei antecipadamente o resultado de uma eletrólise ou posso calcular antecipadamente a massa que um corpo terá após determinada reação, mas seres vivos não são coisas manipuláveis, mas criaturas onde a chama indefinível da vida se movimenta além da nossa vontade. É preciso respeitá-la. Não sabemos como a rede contínua de interações se mantém, mas é ela que mantém o edifício da criação. Talvez aqui se faça presente a anima mundi como espinha dorsal e elo de todas as coisas vivas. Ou pelo menos o nosso pensamento mitopoético assim compreendeu a rede de interações.

O principio da Indeterminação genética deveria reger a ética das nossas relações com o meio, na engenharia genética.

A engenharia genética nos abre muitas portas do conhecimento. Só resta esperar que o homem saia de sua infância psicológica e assuma seu papel de elo continuador e não o de pária, para que, no futuro, ainda tenhamos portas abertas, que a vida humana não se torne um beco sem saída para o todo.

A mais alentar, uma esperança nietzschiana: Quando teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida?

Referências Bibliográficas

HOLDERLIN, Reflexões ( seguidas de Tragédia e Modernidade, de Françoise Dastur). Tradução de Márcia de Cavalcante e Antonio Abranches, Ed. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 1994.

NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência - Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza; São Paulo: Comp. das Letras, 2001.

STERNE, William, Psicologia Geral - Tradução de Fritz Berkemeier, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkiam, 2a. Edição, 1981.

SOLOMON, Andrew, O Demônio do Meio-dia - Uma anatomia da depressão - Tradução de Myriam Campello; São Paulo: Ed. Objetiva, 2002.

FREUD, Sigmund, O Futuro de uma Ilusão; O mal estar da Civilização - Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu; São Paulo: Col. Os Pensadores, Ed. Abril, 1978.

Rev. Scientific American Brasil - No. 16 - set/2OO3 - Artigo Censura de Genes Rebeldes Acena com Terapias Alternativas. 

Rev. O Nó Górdio - O Conceito de Natureza - Merleau Ponty - Ano 1- No. 1 Rio de Janeiro - Dez. 2OO1

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Gledson Sousa nasceu em Juazeiro do Norte, Ce, Brasil, em 1972. Desde 1991 vive em São Paulo. Escritor e poeta, publicou O ANTIMIDAS - Poemas - São Paulo, Ed. Jano, 1998 , Martina - Monólogo de Um homem para sua Alma - SP, Ed. Íbis Vermelho,2001 e O Roubo da Alma - Conferência - SP, 2OO3, Ed Autor e Sind. Dos Bancários de São Paulo. Pesquisador da alquimia e das correntes esotéricas, procura a confluências de ambas nas novas formas da psicologia e na filosofia nietzschiana. Tem no prelo OS DEMÔNIOS DA MANHÃ - Poemas e O OVO - MEDITAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA DO MUNDO.

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