ANTÓNIO MORA - UMA PERSPECTIVA NATURALISTA DA RELIGIÃO
José Augusto Mourão
(UNL-DCC)


"Magna multitudo non potest esse sine multa diversitate" (N. de Cusa)

Todo o imanentismo do reino humano é portanto uma ruína, é a ruína" (Bernard Sichère)

"Urge aprontar o caminho para a nova forma de cristianismo que deve bem querer aparecer" (Fernando Pessoa)



Não sou a quarta interpretação orgânica de Caeiro, não sou o S. Francisco de Assis do novo paganismo, nem creio no Hipnotizador supremo do monoteísmo de Álvaro Campos, aliás tão pagão como Ricardo Reis ou António Mora; não sou niilista como Ricardo Reis. Não professo o Credo pagão de Fernando Pessoa que aliás professa um paganismo sincrético, nem um "messianismo "aportugesado" me entusiasma. Obras de António Mora é o título adoptado para o volume que contém a produção ensaística deste heterónimo pessoano (1). Não vou fazer a genealogia do neo-paganismo português. Atravesso apenas a silva locorum desse por-nascer, na tentativa de saber em nome de que devemos mudar de aquário e de baptismo e com que nomes. Tentemos então entrar nesta silva de textos, alguns quebrados, outros indecisos, outros ainda metidos entre parêntesis vazios à espera de um mágico que lhe dê estatuto de letra e os abra à nossa leitura.

A missão

Caeiro, poeta materialista, é de facto o verdadeiro reconstrutor do paganismo (p. 115). António Mora é o continuador filosófico de Alberto Caeiro. A ele compete provar a verdade metafísica e prática do paganismo; a ele cabe reatar a tradição perdida da obra negra (que não é nem romana nem semita); a ele cabe reconstruir o naturalismo grego, como consta da Athena e do programa do periódico; a ele cabe atacar de frente o espírito filosófico, "que data, na sua forma mais recente, de Kant, e que pretende centralizar no homem e na consciência individual a realidade do Universo"; a ele cabe fazer guerra directa a quantas formas literárias pertencem ao misticismo cristão; a ele cabe combater as ideias imperialistas, colectivistas, humanitárias (p. 139-140). Mora, o autor das obras teóricas que são o Regresso dos Deuses e o Paganismo Superior pretende, como Nietzsche, acabar com a metafísica e inventar um começo novo para lá da metafísica, identificada como platónica, inclusive na sua versão cristã definida como hiperplatonismo. Nietzsche diz de facto que o cristianismo é um platonismo para o povo. Para contrariar essa deriva vai beber nas fontes gregas (Heraclito, Homero) afim de aí encontrar os recursos de um pensamento positivo que oponha ao "niilismo europeu". E pretende ainda fundar uma nova definição do sujeito (como não-sujeito) e uma nova definição do homem como "Superhomem". Repare-se entretanto que na descrição que faz do Neo-Paganismo Português, Fernando Pessoa acredita, como os neo-platónicos, no Intermediário Intelectual, Logos na linguagem dos filósofos, Cristo (depois) na mitologia cristã.

Por mais de uma vez se aproximou a Mensagem de Pessoa à luz do paradigma utópico. Sabemos que o conceito de panteísmo serve de base à tematização do sebastianismo pessoano (2). De acordo com L. F. Teixeira, "mesmo a noção messiânica deve ser entendida como génese do Homem Total, aliás à semelhança do que aconteceu, entre outros, com o projecto de Sampaio Bruno" (3). Não vou entrar na diiscussão de um paganisno tipicamente português, com bases numa "cristologia pseudobucólica" e num "paganismo transcendentalista" que estaria patente no VII poema do "Guardador de Rebanhos" e na figura crística de D. Sebastião. Acontece que uma vez só nas Obras de António Mora se fala de messianismo, como o segundo elemento que fundamenta a religião cristista. O segundo elemento de onde deriva a moral do cristismo é o monoteísmo estreito e intolerante, o moralismo farisaico, o messianismo já desnacionalizado dos hebreus, corrupto já pela contínua intromissão de elementos orientais, na sequência, aliás, da tradição orientalizante do espiritismo judaico (p. 230).

Os deuses

Fügung é aquilo a que os Gregos chamam os deuses, poder múltiplo da mediação, poder múltiplo de uma Diké que nunca fala com uma só voz. O deus não é simplesmente uma função do real; é a sua inquietude, mais do que o seu engodo. O deus não está ligado a uma fé. Actéon deve desaprender a crença no real como espécie. "A fides trabalha já a morte do politeísmo", escreve Jean Louis Schefer (4). Dos deuses temos imagens, mitos, narrativas. Praticamente toda a mitologia, pelo menos as metamorfoses - é uma espécie de fábula da habitação do mundo natural pelo corpo genealógico dos deuses. Na sua teoria dos deuses, Mora pergunta-se: "Os deuses são o primeiro grau da abstracção?" (p. 236). Segue-se uma longa dissertação acerca do processo que levaria do conceito concreto de tal árvore para a ideia abstracto de "árvore". A explicação de Mora é deveras surpreendente: "a noção concreta da árvore, sem deixar de ser concreta, cinde-se em duas noções concretas, e no fenómeno "tal árvore", concreto em absoluto, a própria observação concreta abre brecha, cindindo-se em dois fenómenos concretos apresentando, à mesma própria observação, os dois visíveis característicos opostos, de árvore-que-fica, de verdura-que-passa" (p. 237). É o ponto de vista que "cria" a árvore - uma observada como estática, a outra vista como dinâmica. Aplicada aos deuses, esta perspetiva dá o seguinte: "os deuses são as ideias humanas em passagem de noções concretas para ideias abstractas" (Ibidem).

A nossa percepção de recorte da realidade é a do processo criativo, correspondendo a ritmos e momentos preenchidos por conteúdos que revelam o tipo de intervenção que estamos a ter neste processo. Os estudos sobre o modo como categorizamos o mundo demonstram desde muito cedo que podemos criar categorias de objectos com vários níveis de abstracção. A nossa tendência para fazermos categorias de categorias terá levado a uma categorização do próprio processo, que no limite nos colocou perante a realidade da consciência face a categorias que recriam as qualidades de elementos causais dessa criatividade, os deuses, e finalmente o aspecto indefinível por todas as criações, enquanto pressuposto e enquanto momento do pensamento, que é a categoria do Deus. A verdade é que não temos qualquer acesso ao real físico. O acesso ao real pode passar também pela imagem mental que se apoia em outros sentidos além da vista, o tocar, por exemplo. Através de uma espécie de intuição pode constituir-se uma representação interna que se poderá chamar um objecto mental. Mas faltando a imagem, faltando o visual, qualquer acesso a uma estrutura do real supõe sempre uma intervenção sensível (5). Nós "vemos" essencialmente através da imagem. A imagem intervém pois como mediação entre aquilo que pertence quer a um dispositivo experimental, quer a um formalismo, e por outro lado, aquilo a que chamamos realidade. Quando falamos de partículas, passamos da imagem ao conceito. E como visamos a realidade, damos ao conceito uma carga ontológica.

A imagem é antes de mais uma realidade mediadora: a) permite criar uma interface entre captores complexos diante de um pedaço de realidade e o observador que supostamente encontra uma significação no fluxo de medidas que lhe chega. b) permite também dar uma significação intuitiva a resultados teóricos e fornecer uma intuição de tipo visual que permite ao espírito guiar-se na utilização e na interpretação das fórmulas. Institui portanto um lugar em que o mundo empírico pode ir ao encontro do mundo teórico, conceptual. c) quer seja imagem virtual, analogia matemática, experiência de pensamento ou diagrama, a imagem é sempre um ponto de vista particular, uma faceta, uma perspectiva singular, mas que, nem certo sentido, "faz ver" num relance uma estrutura, uma forma de resultados estritamente formais.

O Homem primitivo gera e sustenta a sua identidade através de qualidades que atribui a outros seres. Faz isto marcando-se com simbologias ligadas por exemplo a animais, marcando os seus objectos e possuindo parte desses animais. O Homem primitivo sabe que a sua identidade é um ciclo imaginário criativo e tenta sustentá-lo auto-estimulando-se com imagens e objectos que recriam as qualidades pretendidas e que mantêm os regimes de activação dos conceitos dentro de uma certa gama qualitativa. São estas imagens e as suas qualidades condutoras de activação de conceitos que mais tarde serão apuradas e se vão tornar deuses, que pouco a pouco ganham forma humana. "Os deuses, além de serem as essências formais das existências superiores, são também, e por isso, categorias mágicas" (p. 240). Há passagens nos textos que Luís Filipe Teixeira criticamente apresenta em que os deuses não existem ou que são apresentados como "atributos da substância 'pagã'. "O que há na literatura pagã não são os deuses, mas a interpretação dos deuses" (p. 231). Ilusórios os deuses, ficções úteis. Como bem diz Bragança de Miranda, "é o simulacro de Deus que inventámos que nos permite pensar a eternidade...A ilusão torna-se 'real' ao ganhar poder alucinatório" (6). Mora era bem mais pragmático na sua teoria dos deuses: os deuses são o trabalho doméstico nosso, na passagem do concreto ao abstracto. Ou mais radicalmente ainda: "O conceito de Deus, que entre nós uma criatura religiosa, seja embora educada, faz pertence a um género de ideação que não é concreta nem abstracta" (p. 238). A palavra chave é esta: Utilidade: "A religião propriamente dita nasceu quando nasceram (e por isso e nisso) as ideias de utilidade e de grupo social" (240). Útil seria convocar aqui o Apêndice à Iª Parte da Ética de Espinoza que se volta contra todos os "preconceitos" finalistas segundo os quais os homens concebem Deus à sua imagem, como uma pessoa que tem necessidades e desejos, que se serve de meios com vista a determinados fins, Mestre todo poderoso e vigilante que intervém no curso das coisa e dos tempos para proteger, punir ou recompensar as suas criaturas. Toda a "doutrina finalista" põe a natureza do avesso e a seguir "destrói a perfeição de Deus" (7).

Desobstruir a metafisica

Não é difícil descobrir coincidências na obra de António Mora e na obra de Heidegger no esforço de desobstrução da metafísica. Aquilo que Heidegger se propõe fazer nos textos elaborados durante os anos 30: Da essência da verdade e A doutrina de Platão sobre a verdade, visa desobstruir a história da metafísica, voltando-se desta feita para a palavra dos pensadores iniciais (Heraclito e Parménides). A obra é a desobstrução (Destruktion) da história da ontologia, a fazer de uma maneira diferente daquela que Husserl empreendeu, que não se enraize na doutrina platónica das ideias (como as Investigações lógicas) ou na doutrina cartesiana do cogito, mas que consista antes em voltar à fonte grega para nela encontrar a potência longo tempo desconhecida. Heidegger ensina-nos a libertar Deus do pensamento do Ser, da "hipoteca ontológica", mas continua a submeter o pensamento de Deus e a própria teologia à dimensão do Ser, a uma "irredutível dependência ontológica". Jean-Luc Marion fala a propósito de "ateísmo conceptual", dizendo de Heidegger que o facto de ele não renunciar a conceber Deus como um ente o precipita na idolatria do "deus mais divino", da mesma forma que Nietzsche, que ao denunciar o "Deus moral" de Kant e ao anunciar a sua morte, não evitou a idolatria dos "novos deuses" gerados pela vontade de poder (8).

O homem é incuravelmente metafísico: a experiência múltipla que faz da sua humanidade no coração de um mundo que as suas obras abrem sempre mais supõe, implica uma ultrapassagem desta experiência. A insídia do mal visto mal dito, espreita qualquer acontecimento pela simples razão que o acontecimento é forçosamente "mal visto": "o "bem visto" remete-nos para a indiferença do lugar, para o negro-cinzento do ser. A brilhância formal do incidente, daquilo "que acontece", através da surpresa que impõe, frustra o ver e o bem ver" (9). Para António Mora a metafísica é tanto um erro, e sempre o será; porquanto, sendo a metafísica a teia de relações entre Sujeito e Objecto, ou melhor, entre Objecto e Realidade, o 'facto' é que entre a Consciência e a Realidade não há relações", como tem as características da obra de arte: "a subjectividade, a incerteza da base em que assenta e a directa inutilidade prática" (p. 327). Mas é exactamente porque a religião é uma metafísica vital, uma "ciência da utilidade" que deve ser suplantada. Há que desobstruir a metafísica do cristismo, antes de mais pelo seu "neo-platonismo alexandrino, naquela sua forma mais corrupta e invadida que representam Philão Judeu e, a dentro do próprio christismo, os sequazes da heresia gnóstica" (p. 230). Em resumo: "a substância metafísica do cristismo é ua amalgama de corrupções da inteligência, a que só a tradição do raciocínio grego deu uma certa estabilidade doutrinária e o ritualismo mitraico uma certa sugestão popular". Está aqui evidenciada a relação entre a religião, a metafísica e a moral, suspeitas de inadaptação, logo de morbidez. E de onde vem essa inadaptação? Disto: a moral, que é a teoria do que deve ser, opõe-se à ciência, que é a teoria do que é.

Em nome do natural

O "homem moderno" está muito mais perto da História natural da religião de David Hume do que do De natura deorum de Cícero ou das Cartas a Lucílio de Séneca ou ainda do De veritate de Herbert de Cherbury (1581-1684) no que à religião natural diz respeito. A perspectiva que Hume adopta face ao fenómeno religioso é claramente "naturalista" e causalista. Para este empirista céptico, dos quatro pilares da religião natural, só o primeiro, a saber, a existência dum ser supremo, está fora de dúvida. Todas as outras questões, a natureza de Deus ou dos deuses, os seus atributos, a maneira como a divina providência governa o mundo, são matérias controversas, como o atestam os argumentos dos três interlocutores dos seus Diálogos sobre a Religião Natural (1779). Numa atitude naturalista é a genealogia dos afectos que permite compreender a génese das grandes formas históricas da religião: politeísmo primitivo, teísmo popular, teísmo especulativo e religião natural (10). Schelling parte de um outro pressuposto: "A religião mitológica é para nós a religião natural". E o pressuposto é o seguinte: para poder chegar até nós e compreender-se a religião revelada tem necessidade da mediação da religião "natural". Se o paganismo nada fosse de efectivo, o cristianismo também não poderia ser efectivo (SW XL, 247).

Pese embora a severidade com que Mora julga o "cristismo", não se trata para ele "d'écraser l'Infâme": trata-se antes de ultrapassar o "momento" cristão. Nas Obras Atlânticas vem claramente escrito que a metafísica materialista de um Buchner ou de um Haeckel; que a metafísica pseudo-céptica de um Comte são exemplos de falsa adaptação e de incompreensão do espírito da época (p. 183). Mas não deixa de ser interessante saber que Mora faz depender o objectivismo e o subjectivismo de condições climáticas ou de condições históricas (p. 185). Como entender que "a não-excessividade de paixões leva o monoteísmo a abandonar o seu carácter materialista? (p. 186)

Álvaro Campos regressou a um cristianismo primitivamente mais pagão (p. 143), encontrou a Natureza há dois mil anos perdida. Não se trata, como é evidente, de regresso no sentido de olhar para trás; não se trata de voltar a Parménides, mas de ultrapassar aquilo que no cristismo é decadente. Não se trata de voltar a Parménides, é necessário apenas voltar-se para Parménides, escreve Heidegger (11). O essencial é descobrir o sentimento naturalista. O indivíduo é antes de mais uma realidade natural. Tertuliano dizia que não se nasce cristão. Mora dirá que não é pagão quem quer, não nascemos pagãos (p. 231). Somos uma mistura de decadências: romana, cristã, semita. O programa de reconstituição do paganismo que Mora sonha passa pelo fio do paganismo dos helenos. Porquê os helenos? Porque o heleno é cientista e naturalmente esteta. Caeiro diz: "A Natureza é partes sem um todo". E de novo regressam as velhas questões, próprias da história da metafísica: que o Um apenas se dá no múltiplo dual do Dois; que enquanto a história é a história do Ser ela é a história do Um, mas este Um não se dá sem o múltiplo do ente: são portanto dois.

"O paganismo é a religião que nasce da terra, da natureza directamente - que nasce da atribuição a cada objecto da sua realidade verdadeira", escreve Mora nas Obras Atlânticas (p. 210). Não agrada muito a Mora a designação de "neo-paganismo": "o paganismo que renasceu em nós é o paganismo que sempre houve - a subordinação aos deuses como a justiça da Terra para consigo mesma" (p. 211). Importa então reconstruir o naturalismo grego, fazendo-o avançar, defendendo a civilização contra a civilização hodierna, Apolo contra Cristo. Defender uma religião natural (o paganismo) contra uma religião cultural (o cristianismo). Reintegrar o homem na Natureza sem o tirar da humanidade (p. 139). Que religião estará mais perto da Natureza? Mas Obras Atlânticas lê-se, "A religião chamada pagã é a mais natural de todas" (p. 179). Os argumentos aduzidos são três: a religião pagã é politeísta, como a natureza é plural: "a natureza, naturalmente, não nos surge como conjunto, mas como 'muitas coisas', como pluralidade de coisas...A realidade , para nós, surge-nos directamente plural. A pluralidade de deuses é, portanto, o primeiro característico distintivo de uma religião que seja natural. Segundo argumento: a religião pagã é humana...A natureza divina, para o pagão, não é anti-humana ao mesmo tempo que super-humana: é simplesmente superhumana. Terceiro argumento: a religião pagã é política, isto é, parte da vida da cidade, ou do estado, não visa a um universalismo. Contra o monoteísmo, subjectivista, sentimental, interiorista, decadente, o politeísmo natural, exterior, "científico", estético, patriótico. Se o cristianismo é naturalmente falso, então há que combatê-lo para reaver a harmonia. E a disciplina pagã, a posse de si-próprio, a clareza do pensamento e da emoção.

O regresso aos Gregos

É conhecida a obsessão de Pessoa pela Grécia como fons e origo do que de essencial Portugal tem de cumprir. Ficam dois exemplos:

(...) Vibra, sem lei ou com a lei,/ Como aclamaste outrora em vão/ O morto que hoje é vivo - El Rei/ D. Sebastião!

//(...) Titâs de Cristo! Cavaleiros/ De uma Cruzada além dos astros,/ De que esses astros, aos milheiros/ São só rastros.

// (...) Transcende a Grécia e a sua história/ Que em nosso sangue continua! /Deixa atrás Roma e a sua glória / E a Igreja sua!

// (...) Não foi pra servos que nascemos / De Grécia ou Roma ou de ninguém. / Tudo negamos e esquecemos: / Fomos
para além.

// (...) O Portugal que se levanta / Do fundo surdo do Destino, / E, como a Grécia, obscuro canta / Baco divino. //

Aquele inteiro Portugal, / Que, universal perante a Luz, /

Reza, ante a Cruz Universal, / Ao Deus Jesus (12).

Um outro exemplo:

(...) Arte portuguesa será aquela em que a Europa - entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro - se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações - a Grécia passada e o Portugal futuro - receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude (13)

Faz, pois, parte do Programa geral do Neo-Paganismo Português a procura do originário, propósito que obriga a um movimento de regresso à fonte, à experiência esquecida, não a uma origem mítica. Movimento difícil: não é fácil, no momento presente, voltar-se para a palavra dos Gregos. E porquê os Gregos? Certamente porque "eram os que mais se aproximavam da perfeição, aqueles que mais ligaram a felicidade à cultura e à grandeza" (p. 103). Por razões de superioridade. "A Grécia é um recomeçar. A Grécia é um regresso ao ponto de começo de todos os ciclos civilizacionais: o paganismo grego identifica-se em género à religião primitiva. Mas é uma oitava acima" (p. 239).

É difícil fazer uma síntese acabada do ideal neo-pagão de António Mora, pela simples razão do estado inacabado dos seus textos. Bastaria passar os olhos pela descrição da metafísica do cristismo (p. 230). No próprio Programa geral do Neo-Paganismo Português se distinguem posições, correntes que não coincidem nem nos seus propósitos nem nos seus credos. Para o ramo representado por Fernando Pessoa o neo-paganismo deve seguir a esteira do cristismo, mas no verdadeiro sentido, diferentemente do que pensam os neo-pagãos ortodoxos para quem interiorizar o paganismo é aboli-lo (p. 148). O Neo-Paganismo Português é um paganismo que realiza totalmente o cristianismo, que o realiza superiormente, "libertando-o da grosseria católica e da fixidez protestante" (p. 149). O caminho está assinalado na tradição romântica e no seu visceral anti-racionalismo que visa, não atacar mas transcender a razão. E o melhor guia aqui evocado é Hegel, em quem Pessoa vê a melhor ante-amostra desse racionalismo superior e da total realização do cristianismo.

A sombra do Kantismo

Há apenas uma maneira de reconstruir o sentimento pagão: é reaver, da noite onde jaz, o sentimento do sentimento pagão. Não se nasce pagão, isso aprende-se. E o momento em que a obra de Mora se faz parece ser favorável a um tal empreendimento. Temos todas as condições para retomar a vanguarda do movimento neo-pagão, é isso que consta do Programa do periódico de C, R. Reis, etc. (p. 141). Tal programa passa pelo combate ao cristismo, evidentemente, e ao espírito filosófico que data, na sua forma mais doente, de Kant que pretende centralizar no homem e na consciência individual a realidade do Universo (p. 139).

A religião ocupa um lugar eminente entre os sinais do humano e também no pensamento de Kant, a quem se deve um primeiro esboço de uma hermenêutica filosófica da religião. Há limites na grelha kantiana da religião: Kant é suspeito de uma leitura moralizante, redutora da religião em que Deus é o "Governador moral" do mundo (VI, 99) (p. 324). Nietzsche lobrigava no sentimento da dívida a raíz do sentimento moral e religioso em que se enlaçam dever, culpabilidade e má consciência: "O sentimento da dívida para com a divindade não deixou de crescer durante milhares de anos, sempre na mesma proporção em que a ideia de Deus e o sentimento da divindade cresceram e se desenvolveram sobre a terra" (14). O cristianismo teria levado até ao paroxismo este sentimento religioso da dívida, a ponto de se confundir com ele. É por isso que, acrescenta Nietzsche, o ateísmo consiste antes de mais em libertar-se dele, "poderíamos mesmo prever que o triunfo completo e definitivo do ateísmo libertaria a humanidade de toda a obrigação para com a sua origem, a sua causa prima. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência estão ligados um a outra" (15). A associação que Nietzsche faz entre dívida e culpa é-lhe facilitada pela própria língua: Shuld significa simultaneamente dívida e falta, do mesmo modo que shuldig quer dizer ao mesmo tempo culpável e devedor. Mas tal associação não parece comum a todas as línguas indo-europeias. Benveniste mostra-nos que as coisas não são assim tão simples, nem do ponto de vista linguistico nem do ponto de vista cultural. Não encontramos em latim algo de análogo á sequência germânica (16). Nietzsche confunde obrigação simbólica e obrigação jurídica. A genealogia "dívida-dever" não é pois, pertinente (17). O tratamento do dogma da Trindade é particularmente revelador. Se de Deus não pode haver intuição intelectual, isto é conhecimento propriamente dito, qualquer tentativa para deduzir a ideia de um deus trinitário da análise do funcionamento da razão prática não terá algo de artificial e de forçado? Alexis Philonenko resume a fraqueza desta grelha deste modo: "se a religião se edifica no interior dos limites da simples razão, confunde-se com a moral; pelo contrário, se ela é mais e outra coisa, os limites da simples razão são ultrapassados" (18). Diga-se de passagem que a ideia que transparece da Trindade Na Casa de Saúde de Cascais não é menos abstrusa. Aí se pensa a Trindade como a sequência de três períodos de ideação: "Deus-Pai o da consubstanciação da ideia de homem com o homem, Deus-Filho o da coexistência da ideia de homem com o homem, o Santo-Espírito, a dissociação da ideia de homem de homem. De modo que a Trindade cristã é evolutiva, indica o estereotipo 3 estados de ideação diferentes e sucedentes" (p. 101). António Mora admira o espírito alemão por ser fundamentalmente realista, bem como a realização bismarckiana dessa cultura, a Realpolitik. E é essa uma das razões porque admira esse "infeliz chamado Nietzsche", pelo seu misticismo materialista, mas também porque "é um bismarckiano pela sua adoração das coisas reais, como a força, a crueldade...mas também pela sua tendência a não iludir" (p. 356). No ideal pagão e clássico a Força é que manda, e nela impera a divinização da Matéria e da guerra.

Admira que Mora tenha Kant na conta dos decadentes, se tivermos em conta aquilo que diz a seu respeito "um livro seu mudou a face às coisas" (p. 324). Antes de Mora, Mendelssohn não hesita em qualificar o trabalho de Kant de destruidor ("Kant, o parte-tudo"). Kant é ao mesmo tempo o desconstrutor da antiga teologia natural e do seu enraizamento metafísico sob as espécies da "ontoteologia", e o pioneiro de uma problemática da "religião" no interior dos limites da simples razão". Os limites da abordagem kantiana são outros (p. 347):

Vico suspirava pela Grécia; a Grécia é luz dessa chaga que não repassa em Roma: a separação da filosofia e da filologia, escreve Jean Louis Shefer (19). Mora quer sentir a sobriedade do ideal grego, mas de uma forma diferente da escola neo-clássica francesa que é monárquica, imperialista e católica e que se sente a Grécia é ainda através de uma Roma decadente (p. 141). O regresso aos Gregos, ao maravilhoso passado inalterado da Grécia matinal, que fascina tanto Hegel, como Hölderlin, como Mora é sobretudo um combate contra o imanentismo raivoso da época, contra o materialismo vulgar que é já uma posição interna à história da metafísica e que dá pelo nome de niilismo. Não se trata, em nenhum caso, de voltar à Grécia, mas "num tempo historial que não é o da sucessão linear dos agora, fazer chegar uma Grécia que nunca existiu" (20).

Coda

"Mas isso a que v. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega" riposta Caeiro a Álvaro Campos, quando este lhe aponta várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última. (p. 115). Tudo é determinismo, dizem. O ideal grego é essencialmente de calma e de domínio de si próprio; o ideal grego é de castidade, de equilíbrio, triste, qual o dos estóicos, feito da consciência da impermanência, da fatalidade e da futilidade das coisas. Retomaremos a Natureza como ela era? (p. 102). O triunfo da Gestell , da essência da técnica nas suas intermináveis degradações à escala planetária torna difícil, senão impossível esse encontro. Da memória não se apagou ainda o desastre em que consistiu para o Dasein alemão a sua relação com o modelo grego. Não deixa de ser significativo que o dr. Mora não admire, em si, a cultura alemã, senão muito secundariamente: "Mas admiro nela o passo preciso dada para a repaganização do mundo moderno; na derrota dela eu vejo, lastimando-me, falhada outra vez a recondução da cultura europeia para o ideal clássico, na sua realidade fundamental, que o cristismo fez que abandonássemos" (p. 358). Deve contudo sublinhar-se aqui que o Programa geral do Neo-Paganismo Português, se rejeita o princípio pacifista, rejeita também os imperialismos modernos - "todo o sacroimpério romano que cada Inglaterra ou cada Alemanha ocultamente quer ser", rejeitando no mesmo lance "o espartanismo idiota dos eugenistas e do aperfeiçoamento à máquina das raças" (p. 148).

Para Mora a Renascença lembrou-se do paganismo e prosseguiu cristã na sua profundeza, como convinha (p. 149). Ninguém suspeita Camões de decadentista. Na estância 80 do canto X, ao descrevcer a fábrica do Universo, diz Tétis ao Gama:

Vês aqui grande máquina do mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do saber alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

É fácil reconhecer no final da estância um conceito religioso que vem da noite dos tempos. Uma das fontes literárias é certamente um passo do Timeu de Platão, muito a gosto dos humanistas do século XVI. Ora o Timeu é citado e comentado no De Natura Deorum de Cícero (I, XII, 29-30): "Quanto a pretender Platão que Deus seja sem corpo, como dizem os gregos, o que isto possa ser, não pode entender-se" - escreve Cícero (21). De Deus, o Poeta dizia simplesmente "Mas o que é Deus, ninguém o entende".

Não saímos de todo do "circulus vitiosus deus", qualquer que seja a modalidade com que o façamos. Reencontrar a Grécia dentro de nós? (p. 140). O ateísmo espalha-se debaixo do véu do deísmo, da religião natural, da aspiração geral à liberdade de pensar; ao apagamento de Deus que se segue a Newton e Laplace, à morte anunciada pelo insensato da Gaia Ciência, outras formas de deus ("À espera de Godot") reaparecem, outros terríveis deuses sobem ao palco do mundo arvorando a bandeira da transcendência, tenha ela a forma da tecnognose ou do satanismo.

"Depois que os 'três deuses fraternos', Héracles, Dionísio e o Cristo deixaram o mundo, a tarde desta idade declina para a sua noite", escreve Heidegger (22). Haverá epifania? Sim, para quem souber de novo abrir-se às experiência do aberto: "É nesse aberto apenas que os deuses e os homens se convêm, se esse destino lhes for dado" (23). Ora o aberto daquilo que se epifaniza é aquilo a na esteira de Hölderlin, Heidegger chama o "sagrado", Heilig.

"Triste é a alegria destas épocas, e falsa a sua segurança", lê-se na Introdução ao estudo da metafísica (p. 323). O alquimista acredita que nada descansa, que tudo se transmuda. Acreditemos no que o pensador António Mora nos diz: "é privilégio de certas épocas, em geral cansadas e adoecidas, ver aproar à sua experiência naus carregadas de especiarias ignotas ainda" (p. 324). A modernidade define-se como um projecto de imanentização radical das mediações, como desmagificação do mundo: perda da analogia, perda da comunicação do homem com o todo. O sagrado metamorfoseou-se neste processo. O Deus que morreu é o Deus da metafísica, ou, como diz Nietzsche, "o deus moral". Mais angustiante do que a falta de Deus é o destino do ser, destino enquanto que a verdade do ser se recusa ao meio a pressão de tudo o que não pertence ao ente" (Nietzsche II, p. 316-317). A querela do panteísmo, datada (1780-1789) (24) não acabou de todo (25). E se não acabou é porque no seu cerne, a hostilidade contra as Luzes ou contra o "ateísmo de sistema" de Espinoza, traz em si um conjunto de esquecimentos que não podem ser simplesmente esquecidos: o afecto, o sentimento, o invisível.


1 Edição Crítica de Fernando Pessoa, Volume VI, Obras de António Mora, edição e estudo de Luís Filipe Teixeira, I.N-C.M. 2002, p. 146. Doravante apenas notarei a página relativa a esta edição.

2 Luís Filipe Teixeira, "Ciência e Esoterismo em Fernando Pessoa", in Pensar Pessoa, Lello Editores, 1997, pp. 169-192.

3 Op. cit., p. 80.

4 Choses écrites - Essais de littérature et à peu près, P.O.L, 1986, p. 111.

5 Dieudonné vai mais longe na abstracção tentando representações de objectos de dimensões superiores a quatro.

6 José Bragança de Miranda, Prefácio a Pensar Pessoa de Luís Filipe Teixeira, Lello Editores, 1997, p. 12.

7 Éthique, p. 346-354.

8 Dieu sans l'être, Paris, Communio/Fayard, 1982, p. 60-70 e 103-109.

9 Alain Badiou, Beckett, Hachette, 1995, p. 43.

10 Dizer que "todas as coisas então em Deus", como o faz Espinoza (Éthique, Ire Partie, p. 322) não implica nenhum imanentismo nem panteísmo, mas significa simplesmente que "a realidade de Deus", isto é o real pensado na sua globalidade é aquilo que faz existir absolutamente todas as coisas. A célebre fórmula Deus sive natura não impõe de modo algum a identificação de Deus coma natureza das coisas.

11 Questions, IV, p. 333.

12 Fernando Pessoa, "Quinto Império" (1923-1935), in Mensagem e outros poemas afins, introd., org. e bibliografia actualizada de António Quadros. Lisboa, Europa-América, 1990, pp. 194-8.

13 Fernando Pessoa, Ultimatum e páginas de sociologia política, introd. E org. de Joel Serrão, Lisboa, Ática, 1980, p. 134.

14 Généalogie de la morale, 20, Gallimard, 1964, p. 130.

15 Ibid.

16 E. Benveniste, Le Vocabulaire des institutions indo-européeennes, t. I, cap. 16. Paris, Minuit, 1969.

17 Marcel Hénaf, Le prix de la vérité, Paris, Seuil, 2002, p. 274.

18 Alexis Philonemko, L'Oeuvre de Kant, t. III, p. 1359.

19 Op. cit., p. 111.

20 Bernard Sichère, Seul un Dieu peut encore nous sauver. Le nihilisme et son envers, Desclée de Brower, 189.

21 Cf. Américo da Costa Ramalho, Camões no seu tempo e no nosso, Almedina, 1992, p. 131.

22 M. Heidegger, Chemins qui mènent nulle part, Gallimard, 1962, p. 220.

23 M. Heidegger, Approche de Hölderlin, Gallimard, 1973, p.189.

24 Pierre-Henri Tavoillot, Le Crépuscule des Lumières, Cerf, 1995.

25 P. Macherey (Introduction à l'Éthique de Spinoza. La première partie: la nature des choses, Paris, PUF, 1999, p. 13) assinala que o neologismo "opanteísmo" só foi associado ao nome de Espinoza no fim do século XVIII no quadro do Pantheismusstreit.