MESSIANISMO GNÓSTICO:
ENTRE O REINO E A REDENÇÃO
(2)

José Manuel Fernandes


1. A natureza da redenção
 
Esta salvação, produto da graça divina, é provisional; não se alcança plenamente até ao momento da morte. Até esse instante são necessárias a fortaleza e a perseverança para viver de acordo com as exigências do conhecimento superior. Graças a uma preparação adequada, ou dito de outra forma, a exercícios ascéticos apropriados, o gnóstico se purificará de toda a união psíquica ou material e conservará intacto o seu espírito.
 
2. Revelação contínua
 
Também encontramos em Nag Hammadi a concepção de uma revelação gnóstica que se repete em diversos momentos da humanidade (1), ou que está continuamente activa no mundo (2). Esta revelação contínua não coincide em absoluto com a revelação do Antigo Testamento que é expressamente desacreditada e ridicularizada (3).
 
3. A figura do Redentor
 

Em atenção ao princípio de que a redenção é graça, a figura do Redentor (Libertador ou Iluminador) é essencial no sistema gnóstico. Contudo, nos textos de Nag Hammadi não encontramos uma concepção unitária sobre esta figura, a não ser nos escritos cristãos ou cristianizados que assinalam a Cristo como o Revelador/Redentor por excelência. Os conceitos que representam o redentor gnóstico expressam-se através de figuras bíblicas ou entidades retiradas do universo mítico referente aos primeiros Princípios ou ao Pleroma. Assim, aparecem como redentores o Adão Celeste, Eva (Apócrifo de João; A hipóstase dos arcontes ; Sobre a origem do mundo ); Set, filho dos primeiros pais (Apocalipse de Adão; Evangelho dos Egípcios); Melquisedec (Melquisedec); o grande anjo Elelet (Apócrifo de João), ou as três figuras angélicas que, segundo o Apocalipse de Adão, visitaram não apenas Abraão, mas também o primeiro homem. Entre as entidades com uma função soteriológica encontramos também Sabedoria, o Espírito (de vida ou santidade), o Pensamento (Énnoia), a mente ou Inteligência (noûs; epínoia; énnoia); a Palavra (Logos/Voz), o portador da luz ou Iluminador (phostér).

A ideia de que a entidade divina que exerce a função de salvadora necessita de algum modo ser também salva (o Salvador salvo ) apenas aparece com absoluta claridade na religião maniqueia. No entanto, a formulação geral desta concepção, aparentemente estranha, pertence ao comum da gnose, no sentido de que quando o Salvador desce, vem para resgatar umas centelhas divinas, aprisionadas na matéria, que procedem do Pleroma, isto é, do próprio Salvador, em sentido último. Quer isto dizer que o Salvador vem resgatar partes de si mesmo para que retornem ao lugar donde procedem: o Salvador salva-se, de algum modo, a si mesmo. Os textos de Nag Hammadi são suficientemente explícitos a este respeito: o Redentor deve também ser redimido ( salvator salvandus ou salvatus ), já que o salvador e aquele que é salvo são da mesma natureza. O Tratado Tripartido e o Evangelho de Filipe expressam-no com claridade (4).

O Salvador – ou Cristo, nos sistemas gnósticos cristãos – é um ser puramente espiritual e divino. Mas para desempenhar a sua missão na terra introduz-se no corpo de um ser humano especial, que é Set ou Jesus de Nazaré, nascido de uma virgem. Em concreto, este Jesus tem um corpo de aparência normal, mas na realidade é puramente psíquico, incorporal.

Não há, nem pode haver nos sistemas gnósticos uma verdadeira encarnação, visto que o divino de forma alguma se pode misturar com a matéria. O corpo desse Jesus é mera aparência. O momento em que acontece a entrada do éon Salvador/Cristo – na figura de Espírito Santo ou de Voz/Palavra divina – no corpo de Jesus é a teofania do Baptismo. Durante a sua vida terrena esse Jesus pregará a verdadeira gnose, que consiste exclusivamente em fazer tomar consciência aos homens espirituais de onde vêm, quem são e para onde devem ir, incitando-os a que se despojem da sua veste carnal para se revestirem da espiritual.

A figura de Cristo como redentor aparece em certos textos de Nag Hammadi como uma entidade introduzida secundariamente num texto judaico que apresentava outra figura de Salvador, assim o vemos no Apócrifo de João e Sabedoria de Jesus Cristo (adaptação cristã de Eugnosto, o Bem-aventurado). Nos tratados genuinamente cristãos a figura de Jesus Cristo sofre uma remodelação para adaptar-se aos esquemas gnósticos. Realiza-se uma nítida separação entre o Jesus terreno, formado pelo elemento psíquico, e o Cristo celeste, éon do Pleroma, que desce sobre esse Jesus. O ressuscitado (Cristo) é o revelador gnóstico que actua entre os dias que vão desde a sua ressurreição até à sua ascensão (Evangelho de Tomé, Apócrifo de João ). No Evangelho dos Egípcios e no Pensamento trimorfo as figuras de Cristo e de Set sobrepõem-se, ou melhor dito, identificam-se (5).

Nos sistemas gnósticos cristãos o Salvador é atormentado. Como o Redentor arranca o homem, em última análise, do poder do Demiurgo e dos seus anjos, irritado, o Demiurgo tenta provocar a morte do Redentor através dos judeus. Mas, na realidade, na hora da crucificação, o éon Salvador abandona Jesus e regressa ao Pleroma. O único que permanece na cruz é o Jesus psíquico, que em verdade também não padece, já que o seu corpo é especial, como indicamos. Assim ficam enganados os poderes deste mundo e terminado o processo de redenção.

Enquanto dure a vida do gnóstico na terra, a sua tarefa consistirá em aprofundar a sabedoria (gnose) que o Salvador veio trazer. Todo o seu anseio radica em abandonar, quanto antes, a veste carnal e lograr que a sua parte superior, o espírito, o seu verdadeiro eu, retorne ao Pleroma para aí gozar felicidade e descanso eternos. Para o gnóstico, o pecado é o abandono aqui na terra do âmbito celeste; é ignorar que o homem é Deus e Deus é o homem. Praticamente a gnose afirma que se deve perseverar no amor para que, com a morte, se dê o passo quase automático (a gnose foi um dom) do acesso a Deus, uma vez que o homem se conheceu a si mesmo e soube o que devia saber.

A divisão da humanidade em três categorias tem a sua importância no momento da chegada do Salvador. Os da espécie puramente material, os hílicos, não são capazes de alguma salvação. Os da segunda categoria, os psíquicos (normalmente reconhecidos como os vulgares cristãos afectos à Grande Igreja), se derem atenção aos preceitos do Salvador e levarem uma vida recta, obterão uma salvação intermédia: na sua morte se despojarão da matéria e as suas almas subirão para o chamado céu das estrelas fixas, a Ogdóada inferior, isto é, a região superior do universo – separada do Pleroma pelo Limite (Horus) no sistema valentiniano – e aí gozarão com o Demiurgo e os seus anjos bons uma vida bem-aventurada.

Os da terceira categoria, os homens que possuem a chispa (centelha) divina, os espirituais ou pneumáticos, os verdadeiros gnósticos, obtêm a salvação completa desde que, graças ao Salvador, ganhem consciência que possuem essa partícula divina e tenham recebido a gnose. Após a morte, o seu corpo carnal perecerá com a matéria; a sua alma ascenderá juntamente com o resto das almas dos homens psíquicos à Ogdóada inferior e aí será feliz. A sua parte superior, o espírito, trespassará o Limite e unindo-se ao seu par celeste, isto é, ao seu espírito gémeo superior que o aguarda no Pleroma, aí descansará, fazendo-se um com a divindade, à qual entoará hinos de louvor e glória para todo o sempre.

Em síntese: a soteriologia gnóstica recolhe os pontos mais importantes da sua cosmologia e antropologia que no âmbito do nosso artigo não pudemos abordar.

•  A melhor parte e a mais autêntica do ser humano é o espírito. É como uma partícula divina, consubstancial com a divindade, da qual procede.

•  Por um complicado, necessário e desgraçado processo, essa centelha divina está encarcerada na matéria, ou seja, no corpo do homem e neste mundo material.

•  A partícula divina deve retornar ao lugar de onde procede. Este regresso constitui a salvação.

•  Um ser divino desce do âmbito superior; com a sua revelação recorda ao homem que possui essa partícula; ilumina-o e instrui-o sobre a forma de a fazer regressar ao lugar de onde procede.

A prática da salvação gnóstica concretiza-se na maioria dos sistemas gnósticos num modo de vida que permita ao ser humano fazer que o seu espírito se liberte da matéria. Em termos gerais, pode-se dizer que a atitude do gnóstico que recebeu a revelação da sua origem e do seu fim último reduz-se a duas posturas antagónicas: ou bem introduz no seu modo de vida uma renúncia, desde o momento da sua iluminação, a tudo o que seja corpóreo ou material, isto é, decide-se por um modo de vida estritamente ascético , ou bem considera que o espírito não é afectado de forma alguma pela matéria e leva uma vida perfeitamente mundana, libertina.

O que é normal nos sistemas gnósticos é a primeira atitude. Reina geralmente na gnose uma forte ascese de tipo encratita (heresia que condenava o matrimónio), onde se condena a sexualidade, o matrimónio, a procriação, onde se prescinde de dar ao corpo o que precisa. Numa palavra, procura-se a vida mais rigorosa e afastada do mundo. Consequentemente, o gnóstico esquecer-se-á dos negócios, da participação na vida social e política e concentrará todas as suas energias em preparar-se para o momento destinado pela divindade para que, liberto da prisão do corpo, o espírito retorne ao Pleroma. Exteriormente a gnose manifesta-se como uma recusa de todos os valores deste mundo, um afastamento voluntário de todo o valor terreno, um profundo sentimento de não pertencer a este mundo, uma aspiração pelo mais transcendente.

A postura libertina deu-se muito esporadicamente entre os gnósticos. Os Padres da Igreja, no entanto, assinalam a sua existência em alguns grupos, dos quais criticam os seus excessos, sobretudo sexuais. Dos chamados Ofitas conta Epifânio de Salamina (6) que se dedicavam ao livre intercâmbio sexual nos seus actos litúrgicos e que com o esperma masculino nas mãos, os homens e as mulheres erguiam as suas orações a Deus, de quem procede a verdadeira vida. St. Ireneu (7) afirma que o gnóstico Marcos seduzia muitas mulheres às quais prometia que as converteria em profetizas, e que estas lhe pagavam os favores espirituais com o corpo.

Crê-se, no entanto, que estas práticas libertinas seriam muito reduzidas, pois se assim não fosse os Padres da Igreja teriam dedicado mais tempo a refutá-las.

 
 
Notas
 

(1) Cf. Apócrifo de João, Pensamento Trimorfo .

(2) Cf. A hipóstase dos arcontes.

(3) No Segundo Tratado do Grande Set, o Salvador ao falar com os seus discípulos classifica as personagens do Antigo Testamento como «burlas».

(4) «Até o Filho que está estabelecido como modelo de redenção do Todo necessitou de redenção», Tratado Tripartido , 124,32s. «Jesus revelou nas margens do Jordão a plenitude do reino dos céus. Ele que foi engendrado antes do Todo, foi novamente engendrado. Ele que antes foi ungido, foi ungido de novo. Ele que foi redimido, redimiu», Evangelho de Filipe , 70,33-71,2.

(5) Cf. Evangelho dos Egípcios, 51,20; 54,20.

(6) Cf. Panarion 26,4,3-8.

(7) Cf. Adv haer I 13,3ss.