O Sonho Alquímico de Enodato
e o Perfil do Filósofo Natural
A.M.AMORIM DA COSTA

1. Introdução

2. No deserto, mergulhado num mundo de miragens

3. A Imperatriz da quinta-essência de todas as quintas

4. Na Ilha dos sonhos

5. Notas

Jardins de Enodato (Imagens)

5. Na Ilha dos sonhos

Porque o sonho cuja narração acabava de ouvir da boca de seu mestre Enodato era um sonho misterioso cuja interpretação merecia grande ponderação, Enódio propôs-se ir estudar a Ilha dos Sonhos de Luciano para que melhor pudesse entender o que Enodato, em sonho, viu, ouviu e fez na Ilha do Filósofo e da Imperatriz, caminhando da praia deserta a que aportara como naufrago até à Árvore de Ouro onde colheu o fruto cujo sumo era o Elixir da longa vida. Se fosse hoje, em vez de ir estudar e consultar a Ilha dos Sonhos de Luciano, Enódio iria provavelmente consultar a Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud.

Fazendo-o, Enódio deixar-se-ia enredar por uma série de questões de que é difícil sair: porque razão os sonhos hão de ser assim tão tênues que se esgarçam ao menor abrir de olhos ou voltar de corpo, e não continuam mais? [29]. Ou então, é ou não possível sonhar coisas impossíveis e depois caminhar livremente em direcção ao conteúdo desses sonhos, numa doce ilusão de que não há nada como o sonho para criar o futuro? Utopia hoje, o sonho é carne e osso amanhã, como disse um dia Victor Hugo, na certeza de que há sonhos que devem ser ressonhados, pois são projectos que não podem ser esquecidos, na palavra convicta de Hilda Hilst.

O homem precisa perseguir um sonho. Se é verdade que não é possível descobrir a pedra filosofal, é bom que a procuremos, pois no decorrer dessa procura, descobriremos muitos segredos úteis que enriquecerão e farão o progresso da ciência. Assim aconteceu no passado com a busca dos alquimistas, e temos a certeza que a maioria das grandes descobertas e invenções foram sonhos no inicio. O sonho é utopia, uma utopia que se pressente hoje e se realiza amanhã, princípio e mola real de todo progresso. Sem as utopias de outrora, os homens viveriam ainda miseráveis e nus nas cavernas. Foram os utopistas que traçaram as linhas da primeira cidade. Dos sonhos generosos, nascem as realidades benéficas. O mundo do cientista é uma grande ilha de sonhos.

A Ilha dos Sonhos a que Enódio se refere e que se propôs ir estudar para melhor compreender o sonho de Enodato é a Ilha dos Sonhos descrita por Luciano de Samósata, cidade da Síria, (autor grego do séc.II , c. 125-185) na sua obra Uma História Verdadeira. Verdadeiro mestre do pensamento, nela Luciano refuta impiedosamente, sem pedanteria, mas com um olhar crítico, com suma ironia e cerrada lógica, todo o tipo de ideias que se baseiem na emoção e na superstição religiosa e supinamente se apoiem no argumento da autoridade.

Com o título de Uma História Verdadeira, a obra de Luciano de Samósata em questão é uma história do género fantástico, uma história de fantasia, muito imitada nos séculos XVI, XVII e XVIII, por Francis Bacon, Campanella, More, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift, Sterne, Dostoievski e Machado de Assis etc., Nos seus Diálogos Fantásticos dos deuses, dos mortos e dos marinheiros e das cortesãs perpassam considerações infindáveis sobre o conhecimento científico que podemos considerar, citando João Adolfo Hansen, verdadeira "protoficção científica".

Ao longo dela deparamo-nos com o dilema do conhecimento em si mesmo e no seu controle e suas aplicações; e também com o dilema da manipulação e transformação da natureza e da superação da fronteira entre o inanimado e o animado .

Ela remete-nos para o apelo da Utopia das famosas alegorias dos séculos XVI e XVII de que se serviram, em particular, Hartlib, Comenius e Peter Ramus e quantos aderiram ao seu círculo, o chamado círculo de Hartlib, para lançarem o seu entusiástico movimento em prol duma prática científica renovada, no estudo eficaz e producente da Natureza, nomeadamente, a Utopia de Thomas More (1516), Cidade do Sol de Tomás Campanella (1602), a Fama Fraternitatis (1614), a Idade de Ouro Restaurada de Bem Jonson (1616), a Alegoria do Globo (in Aperta Arca Arcani Artificiosissimi) (1617), a Atlanta Fugiens de Michael Maier (1618), a Cidade Cristã de J. Valentim Andreae (1619), A Nova Atlântida de Francis Bacon (1626), O Corpus Hermeticum (contendo o Divine Pymander) de John Everard (1650), a Alegoria da Fonte de Bernardo de Treviso (in Collectanea Chemica) (1684) e A Parábola de Henrique Madathanus (in Museum Hermeticum Reformatum et Amplificatum) (1749).

Em todas elas se faz apelo ao desenvolvimento e expansão da nova ciência, em benefício de uma sociedade mais próspera e de maior bem-estar, baseada em novas ideias e métodos científicos. A base desse apelo é invariavelmente uma só: não a uma ciência de especulação e vazio; estudo diligente e profundo dos ensinamentos que o contacto e a exploração directa da natureza é capaz de fornecer.

A título de exemplo e como conclusão das nossas considerações sobre o sonho de Enodato e o perfil do Adepto, esse cientista que na procura da Pedra Filosofal e Elixir da longa vida procura o bem-estar material e espiritual do Homem, deixaremos aqui a mensagem da Christianopolis de Johann Valentin Andreae (1587-1654). Os cidadãos da Christianopolis dispõem de uma grande Biblioteca, mas usam-na muito pouco, consultando apenas os livros mais fundamentais, em especial os livros das Sagradas Escrituras. Aos demais livros eles preferem obter os seus conhecimentos por contacto directo com a o livro da Natureza, pois será pela análise cuidada da terras e dos céus que eles chegarão melhor ao conhecimento dos seus mistérios. Por isso o centro dos seus estudos é o Laboratório, um laboratório equipado com os mais completos instrumentos para bem examinar as propriedades dos metais, minerais e vegetais, e onde a vida dos animais possa ser examinada, purificada, aumentada e utilizada em benefício da raça humana e os interesses da saúde. No átrio do laboratório de Física, muito mais que observar o movimento natural, o visitante poderá observar em cenas pintadas nas paredes, o aspecto geral dos céus, os planetas, os animais e as plantas; e poderá examinar por si próprio as pedras preciosas, os minerais, os venenos e seus antídotos, e toda a espécie de drogas benéficas e malignas para o corpo humano. Ao cidadão se impõe um estudo aturado da Matemática, muito mais aprofundado que o estudo da vulgar aritmética e geometria, estendendo-se ao estudo místico e numérico dos céus, na senda do grande mestre Pitágoras [30].

Com a revolução científica dos séculos XVI-XVII, também a química procurou novos métodos de aprendizagem que se estenderam facilmente às ciências ocultas. As práticas alquímicas não lhes ficaram alheias. Com Paracelso e Van-Helmont centrou-se, em particular, na procura da quinta-essência das coisas. A iniciação dos Adeptos teve-as sempre em grande consideração. Esse sonho de Enodato em que este, depois de ter discursado longamente sobre a Pedra Filosofal com seu amigo Enódio, se viu peregrino guiado pelo Filósofo até ao Palácio da Imperatriz da grande quinta que é a Natureza e que aqui apresentámos com a sua remissão para a Ilha dos Sonhos de Luciano de Samósata, pode e deve – a nosso ver – ser lido e interpretado nesse contexto. É o que tentámos fazer.

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A.M.AMORIM DA COSTA. Dept. Química, Faculdade de Ciências e Tecnologia . Universidade de Coimbra . 3004 – 535 Coimbra – Portugal

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Última Actualização:
06-Apr-2006