O MAGO, METÁFORA DO POETA (2)
CLAUDIO WILLER

2. Tópicas do hermetismo: poesia e ocultismo, uma relação plural.

Não são examinadas, em O Arco e a Lira, relações reais, diretas, entre os dois campos, o hermetismo ou ocultismo e a poesia (mas o seriam em uma obra subseqüente, Os Filhos do Barro). Menos ainda, os casos em que um autor parece acumular as duas funções, operando como elo entre ambos.

Por isso mesmo, oferece argumentos adicionais para justificar o rumo dado ao presente ensaio. Se o mago é uma metáfora do poeta, então aqueles autores que podem ser considerados poetas-magos a encarnaram. Seriam realizações de valores associados à condição de poeta, representantes daquilo que a poesia é, ou de algo essencial na poesia e na condição de poeta.

Isso vale, em grau especial, para os adeptos e os iniciados.

A bem da clareza, pode-se utilizar noções como a de iniciação e iniciado conforme o que expõe Jean Richer em seu ensaio sobre Gérard de Nerval (também na coleção Poètes d’aujour’hui):

É mesmo à iniciação, tal como a definiu René Guénon, que aspirava Nerval: trata-se de uma liberação da condição individual do homem, culminando em um contato direto e constante com o supra-humano. Aquele que é completamente iniciado, o adepto, o libertado vivo, não está mais sujeito nem ao tempo nem ao espaço: ele primeiro reintegrou a condição primordial do homem, e em seguida realiza estados supra-humanos. À diferença do místico, o iniciado visa a ultrapassar os estados puramente individuais. As condições e as modalidades da iniciação são as seguintes:

Ser qualificado, iniciável e entregar-se a um trabalho prévio que supõe uma ascese e a aquisição de certos conhecimentos teóricos. É preciso, em seguida, ligar-se a uma organização tradicional regular, e conhecer os métodos que facilitam o acesso a certos estados interiores, em si mesmos incomunicáveis. A partir de uma iluminação primeira, o iniciado poderá ordenar e desenvolver as possibilidades que ele traz em si. Para chegar à liberação, o iniciado, apoiando-se quando necessário em suportes exteriores, ao menos nos primeiros estágios, irá desenvolver-se progressivamente de grau em grau.

Richer ainda observa que é necessária, no processo de iniciação, uma prática exotérica, e distingue, nisso seguindo a doutrina e procedimentos de ordens como a Rosa + Cruz e a maçonaria, entre pequenos e grandes mistérios, e entre o homem primordial e o homem universal. Para esse crítico (dos mais qualificados, autor também de um importante ensaio sobre simbologia alquímica em Rimbaud), a primeira crise de delírio do autor de Aurélia, aos 33 anos, equivaleria a uma etapa na iniciação.

Contudo, o exemplo também mostra os limites desse paralelo; serve para apontar diferenças, tanto quanto semelhanças e identidade. A crise de Nerval é como se fosse uma etapa da transfiguração iniciática; análoga, mas não igual. O autor de Sílvia não se limitou a colocar na forma de poesia os ensinamentos da Cabala, Alquimia, da doutrina martinista dos “iluminados”. Desenvolveu uma mitologia própria e uma linguagem pessoal. Estudando e pesquisando doutrinas iniciáticas, não chegou a ser propriamente um adepto, menos ainda um simples divulgador. Recriou conceitos das doutrinas esotéricas, e os recontextualizou. Sob uma ótica mais ortodoxa ou purista, os estaria adulterando. Isso é bem observado por Max Milner em seu prefácio a Les Illuminés, colocando em destaque o caráter pessoal, portanto presumivelmente poético, da utilização do hermetismo e ocultismo. Milner lembra ainda a fabulação de Nerval, o quanto inventava, atribuindo-se antecedentes e fatos biográficos inexistentes. Mas reconhece que textos ocultistas fizeram parte da formação do poeta, desde sua infância.

Por isso, que não se veja rigidez doutrinária, nem mesmo coerência, em Nerval. É correta a qualificação de um dos seus tradutores brasileiros, Contador Borges:

Livre pensador no sentido mais pleno do termo, Nerval não era ortodoxo nem de uma religião, nem de uma heresia.

Assim, o ocultismo em Nerval pode ser visto a partir de diferentes ângulos. Pode-se falar em ocultismos, pensando essa relação como plural. Alguns de seus poemas expressam a crença na filosofia oculta e no gnosticismo; outros podem ser decodificados através da simbologia hermética. Contudo, ele foi dúplice, ambivalente ou ambíguo. Aliás, o próprio Nerval já havia observado isso em sua antecipação de Rimbaud, a anotação de que eu sou um outro (feita em um de seus retratos).

Daí que, do mesmo modo como Baudelaire foi um “pai” de parnasianos e neo-clássicos de um lado, e de simbolistas e surrealistas de outro, em Nerval coexistem um precursor do surrealismo e outro de Anatole France; um poeta agônico e, em momentos importantes, delirante, e um narrador, autor de relatos históricos e crônicas de viagem. Adotando a polaridade proposta por Octavio Paz em Os filhos do barro entre analogia e ironia para caracterizar o romantismo, uma parte da obra nervaliana penderia para o pólo da analogia, e outra, para o pólo da ironia. Ambos, o Nerval-surreal e o Nerval-France, apresentando ligação estreita com Ocultismo; porém manifestando-se de modo diverso em cada uma das faces do poeta de As Quimeras.

Na prosa, é tema tratado à distância, ironicamente. Por exemplo, em Les Illuminés, no capítulo sobre Cagliostro, o fundador da Maçonaria Egípcia é satirizado, sugerindo-se que seria um farsante, e seu ritual é visto como deboche. Um conto como A mão encantada (extremamente precursor de Villiers e Maupassant) é para entreter, impressionar, e não para revelar mistérios íntimos ou iniciáticos.

Já na poesia, não. Esta é confessional, apresentada como afirmação de crenças reais do autor. Para ficar em três de seus principais poemas herméticos, El desdichado é uma antevisão de sua própria destruição, de seu destino trágico, em um texto que se decifra através da simbologia do tarô; O Cristo no Horto das Oliveiras é afirmação do gnosticismo, da idéia do Deus decaído; e Versos Dourados retoma a idéia do universo animado, do macrocosmo do qual o homem é uma parte, seguindo Swedenborg e Fabre d’Olivet.

Esses três poemas justificam chamar a atenção para o modo plural como esoterismo e ocultismo aparecem em literatura. Aceita essa dualidade em Nerval, narrativas em prosa como Silvia e Aurélia na verdade pertenceriam a sua face poética.

O que acaba de ser dito sobre recriação do hermetismo e ocultismo por poetas vale, em maior grau ainda, para Baudelaire. Seus vínculos com hermetismo e disciplinas ocultas foram admitidos e comentados por diversos estudiosos, focalizando a influência de Swedenborg e o interesse por Fourier. Ao fazê-lo, acompanham o próprio Baudelaire, que menciona Swedenborg em diversas passagens. Mas, em acréscimo, há uma relação entre Baudelaire e Éliphas Lévi, tal como examinada em um ensaio revelador, Anotações de uma Bibliógrafa: Baudelaire e o Esoterismo, de Maria Lúcia dal Farra, que vai além da influência. Trata-se de presumível colaboração entre o poeta e o mago, ambos companheiros nas barricadas da insurreição antimonarquista de 1848 e, antes, co-autores na coletânea Les mystères galans de Paris, de 1844. E, ainda, autores de poemas sobre as correspondências, cabendo lembrar que em Baudelaire o soneto Correspondências é central, por expressar uma cosmovisão e uma poética de fundo esotérico, a ponto do poeta citá-lo em outros de seus escritos, como Os Paraísos Artificiais e seu texto sobre Wagner. Citando o ensaio de Maria Lúcia dal Farra:

É na altura em que são publicados os Mystères que o abade Constant dá à luz La Mère de Dieu, onde se lê que toda a natureza é um templo para nós. No ano seguinte, ele publicará Les Trois Harmonies (1845), do qual um dos melhores poemas tem por título Les Correspondances. As coincidências são espantosas!
(...)
Outros poemas de um também podem ser aproximados aos do outro: o Sans amour de Constant ao A celle que nest trop gaie de Baudelaire; o Les promesses de lamour de Constant ao Chanson daprès midi de Baudelaire. Em Éliphas Lévi o universo representa uma escritura vivente onde as formas são uma linguagem, cuja trama de símbolos pede para ser interpretada. Para ele, o Logos preserva a unidade da substância cósmica através da multiplicidade do sensível e funda um sistema de analogias que traçam o elo entre a natureza e o sobrenatural, a tudo harmonizando estreitamente.

Portanto, a relação Baudelaire – Lévi se destaca, mesmo no contexto da cultura hermética da época, embora faça parte de um todo, seja indissociável desse contexto, conforme bem observado por essa estudiosa:

Que a tradição esotérica tenha coabitado com a literatura não é novidade. Sem falar da influência do hermetismo junto à arte em geral e à filosofia, são numerosos os exemplos colhidos em escritores como Virgílio, Ovídio, Dante, Milton, Shakespeare, Cazotte, Rabelais, Cyrano de Bergerac, Goethe, William Blake, Novalis, Arnim, Victor Hugo, Balzac, Gérard de Nerval, Edgar Allan Poe, Villiers de lIsle Adam, Huysmans, Strindberg, Maeterlink e naturalmente em Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e nos surrealistas. Entretanto, em Baudelaire – e a partir dele –, ela não transparece somente nas alusões, citações e mesmo nas claras infiltrações da matéria hermética no assunto dos textos literários. Ao contrário: na sua obra conhece-se a tentativa de aplicar sobre o funcionamento da linguagem poética os ensinamentos e os rituais das práticas esotéricas, quer sejam eles a lei da analogia (fundamento da teoria das correspondências), quer sejam eles a lei do solve et coagula, subsídio essencial para a obtenção da Grande Obra Hermética, no sentido de suscitar a existência de um novo universo através da transmutação daquilo que o inventa e lhe dá vida: a linguagem.

Contudo, Baudelaire não repetiu, na forma de poesia e crítica, as correspondências de Swedenborg, Lévi e tantos outros integrantes de sua bagagem de leituras esotéricas. Antes, ao projetá-las na criação poética e, de modo mais evidente ainda, na crítica de artes plásticas e de música (especificamente de Wagner), ele as recriou e revitalizou.

Tais considerações cabem, ainda, para William Blake. A exemplo de Nerval, que teria aprendido a ler em uma biblioteca de obras herméticas, teve educação, dada pelo pai e não na escola, pautada pelo pensamento de Swedenborg. Mas o que está em Swedenborg é uma coisa, e os mitos de Blake, seus Loos, Urizem, Zoas, Tirzah e Nobodaddy, são outra, uma versão personalíssima do gnosticismo.

Particularmente expressivo e ilustrativo da complexidade das relações entre o hermetismo e a poesia, é o que sabemos sobre Rimbaud. Ao escrever sobre Alquimia do Verbo, referia-se à alquimia histórica, por ele estudada, conforme seus biógrafos. Contemporâneos de sua Carta do Vidente, entre uma fuga e outra a Paris, são suas leituras da matéria, escandalizando o bibliotecário de Charleville. Dessas fontes também veio a adesão ao princípio da analogia e das correspondências.

Justificam-se decodificações à luz do hermetismo de passagens de sua obra, como esta, do soneto Vogais, proposta por Alberto Marsicano no Rimbaud por ele mesmo que este autor preparou junto com Daniel Fresnot:

Essas experiências sinestésicas (transmutação do som em cor, poesia, perfume, ou vice-versa) já haviam sido profetizadas por Baudelaire em seu antológico ensaio sobre o haxixe e o ópio, Os Paraísos Artificiais. Imerso o tempo todo nesses sublimes estados de percepção, Rimbaud compõe o poema Vogais, inspirado no cromatismo musical do século XVII e nos antigos tratados de alquimia, como L’Ars Auriferae, de 1610. Vislumbra no som das vogais seu cristalino espectro cromático: A negro, E branco, I rubro, U verde e O azul!

Existe uma relação profunda entre a alquimia e a obra de Rimbaud. As primeiras vogais de seu poema enunciam as cores iniciáticas da Grande Obra: A negro: fase primordial, putrefação, caos inicial, a rosácea esquerda de Notre Dame que jamais é atingida pelo sol. E branco: a calcinação, a purificação do albedo, a rosácea que brilha ao sol do meio-dia. I rubro: o púrpura da pedra filosofal, a grande rosácea do portal que incandesce com os raios do poente.

E uma observação sobre a troca de lugar do O e U acaba por validar a decodificação alquímica:

Rimbaud não inverte por acaso a ordem das duas últimas vogais: a Ars Magna tem como extremos o alfa e o ômega. Podemos vislumbrar o ciclo iniciático das vogais à luz do quaternário alquímico.

A passagem é ilustrada por esse quaternário, um diagrama em forma de cruz, encimado pelo U verde, ar, mercúrio; embaixo, o E branco, água, lua, prata; à esquerda, A negro, terra, saturno, chumbo; à direita, o I rubro, fogo, marte, ferro; ao centro, O azul, quintessência, sol, ouro. Portanto, a pedra filosofal, central e solar, equivale à letra O. Aceito o diagrama alquímico, passa a fazer sentido a inversão das vogais O e U. E torna-se plausível a interpretação do soneto como retratando as etapas da transmutação, do nigredo, a matéria orgânica, seguido pelo albedo, mais o aquecimento e sublimação, até a perfeição.

O próprio Rimbaud comenta o soneto das vogais, na passagem intitulada Delírios II - Alquimia do Verbo de Uma temporada no Inferno, com a transcrição, no texto em prosa, do início daquele poema, escrito presumivelmente dois anos antes (Vogais está compilado, na edição Pléiade, como de 1871; Uma temporada no Inferno seria de 1873):

Inventei a cor das vogais! - A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. - Regulei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de inventar um verbo poético acessível, mais dia menos dia, a todos os sentidos.

Note-se: todos os sentidos. É uma reafirmação clara das correspondências e sinestesias baudelairianas.

Ao citar, na seqüência de Alquimia do Verbo, os versos do poema sobre a Eternidade, mostra aonde vai dar esse processo, e o que é encontrado através da iluminação:

Achada, é verdade?!
Quem? A Eternidade.
É o mar que o sol
...............Invade.

Com esses complementos de Alquimia do Verbo, pode-se colocar o soneto das vogais no mesmo patamar de Versos Dourados de Nerval e Correspondências de Baudelaire, como exemplos elevados de poesia hermética, fundamentada no ocultismo. Contudo, sem esquecer que Rimbaud fala em alquimia do verbo. Deixa claro, portanto, que se refere a uma poética, a seu próprio caminho no plano da criação, análogo, porém ao mesmo tempo distinto da ascese dos místicos e magos, a começar pelo chamado ao desregramento dos sentidos, pelo caráter rigorosamente pessoal de sua busca.

Portanto, falar, com relação a Blake, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, em iniciação equivale, sempre, a usar o termo de modo aproximativo.

Contudo, nesse sentido, Yeats, por mais que sua poesia fosse, como não poderia deixar de ser, pessoal, pode ser qualificado como iniciado, na acepção plena conferida ao termo. E, em acréscimo, como autor de obras especificamente ocultistas, como o foram algumas de suas peças teatrais e, principalmente, o enigmático livro A Vision, redigido por sua mulher em transe mas com a autoria atribuída a ele, no qual é elaborada uma tipologia com base hermética, que coincide com a busca de conhecimento empreendida pela ordem da Aurora Dourada.

Assim, dentro do tema geral aqui abordado, há uma diversidade de modos de relação, e mais, uma pluralidade de modos de expressá-la através da criação literária. O vínculo com a tradição hermética é constantemente reafirmado através da poesia, e ao mesmo tempo recriado.

Pode-se, a partir desses comentários, avançar no exame da relação entre poesia e ocultismo e na condição de poeta-mago.

Esta se manifesta através de alguns núcleos temáticos ou topoi. Supõe, conforme já visto, a crença na autonomia da linguagem, e, por decorrência, em seu valor ou poder mágico. Associada a essa crença, há uma tópica da linguagem primordial, equivalente a uma simbologia universal, fundamento da Cabala, da Ars Magna, a combinatória de Ramon Llul e doutrinas afins, conforme bem exposto por Umberto Eco em A Procura da Língua Perfeita.

Sobre essa tópica, é de especial interesse um ensaio de Octavio Paz, Leitura e Contemplação (publicado no Brasil na coletânea Convergências – Ensaios sobre arte e literatura), no qual o poeta-ensaísta vai das glossolalias e do “falar línguas” de seitas e doutrinas religiosas até o relativismo lingüístico, a tese de Whorf-Sapir. Nesse percurso, observa como o “falar línguas”, a presumível língua primordial, fala do Espírito Santo, reaparece nas glossolalias da poesia moderna, no Huidobro de Altazor e em Klébnikov, bem como em Artaud e Michaux. E, ainda, mostra a influência direta de um texto de Fabre D’Olivet sobre a língua primeira - intitulado Les vers dorés de Pythagore, expliqués et traduits por la première fois en vers eumalpiques français, precedés dun discours sur lessence et la forme de la poésie chez les principaux peuples de la terre – como fonte de inspiração do soneto Versos Dourados de Nerval. Vale a pena, pelo que acrescenta ao tema aqui examinado, transcrever a passagem do ensaio de Paz:

Em seus estudos bíblicos, Whorf descobriu Antoine Fabre dOlivet, um dramaturgo, lingüista e filósofo ocultista que escreveu, no limiar do século XIX, um curioso livro, La Langue hébraïque restituée. É surpreendente como as leituras e os destinos se cruzam: Fabre dOlivet produziu também grande impressão em André Breton, especialmente por suas teorias sobre lingüística e poesia. Fabre dOlivet, com base na Cabala, acreditava na existência de uma língua hebraica de bases universais. O velho sonho de uma linguagem primeira e universal, dotada de propriedades extraordinárias como a correspondência entre o som e o sentido, foi transmitido pelo hermetismo neoplatônico e pela Cabala, e recolhido no início do século XIX por escritores como Court de Gebelin e Fabre dOlivet. Ambos influíram em Nerval. O soneto Vers Dorés, em que o poeta lê a natureza como se fosse uma escrita a um tempo indelével e cambiante, se inspiram diretamente numa obra de Fabre dOlivet sobre os versos de Pitágoras (...).

A recuperação da unidade, a superação da ruptura entre signo e seu significado, converte a palavra em duplo simbólico. Portanto, em cifra de um universo tal como descrito pela crença gnóstica, de fundo neo-platônico, na regência do estágio ou escalão do universo em que nos encontramos pelo Demiurgo, uma divindade decaída ou intermediária, e na possibilidade do conhecimento revelado, alcançado através da ascese.

Mas esta ascese poderia ser o reverso do ascetismo cristão, como o foram as práticas dos assim-chamados gnósticos dissolutos, sendo lícito associá-las ao desregramento dos sentidos de Rimbaud, seu caminho, conforme já observado, para a alquimia do verbo.

A analogia ou identidade de poesia e gnose foi declarada de modo especialmente feliz por William Blake, em versos famosos, cujo pleno sentido se revela se forem lidos como uma poética:

Num grão de areia ver um mundo
Na flor silvestre a celeste amplidão
Segura o infinito em sua mão
E a eternidade num segundo.

Em Fernando Pessoa a cosmovisão gnóstica, com a tópica do Deus degradado, e, por conseqüência, de uma decadência ontológica, é reapresentada de modo magistral, pela extrema concisão. Por exemplo, no primeiro verso do aqui já citado Natal:

Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

E em No túmulo de Christian Rosencreutz:

Deus é o homem de outro Deus maior:
Adam supremo, também teve queda;
Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda:
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.

Satanismo, com a atribuição de traços prometeicos, de uma atuação como libertador ao anjo caído, também é um componente dessa relação. É a tópica mais diretamente ligada à dimensão propriamente política da adesão ao Oculto, por ser uma signo da rebelião, um símbolo da negação do “bem”, da positividade tal como encarnada na realidade imediata, na sociedade com a qual o poeta convive, em seus valores e estilo de vida.

A atenção para as relações com ocultismo e hermetismo enriquece a leitura da poesia. Permite entender melhor ou atribuir mais significado a poemas como estes aqui citados ou mencionados, Natal e aquele escrito diante do túmulo de Christian Rosenkreutz por Fernando Pessoa, ao soneto das Correspondências de Baudelaire, a Versos Dourados ou El desdichado de Nerval. Em cada um deles – na reafirmação da cosmovisão gnóstica em de Pessoa, na celebração da analogia em Correspondências, na apresentação dos arcanos do tarô em El desdichado – o vínculo com o ocultismo se manifesta de modo diverso.

As possibilidades abertas pela decifração são enormes. Poemas em um tom lírico, dirigidos à amada, uma bela mulher, também falam da uma encarnação feminina da sabedoria gnóstica, uma Sophia ou entidade mítica aparentada, ou uma Eurídice conduzindo-o através do processo iniciático. Ou então, entre tantas variações do “eterno feminino”, da idealização romântica da mulher, dirigidos a uma noiva, mas sem referir-se apenas a uma relação conjugal, porém a núpcias alquímicas. Outros poemas falam de pedras preciosas, não só por sua beleza, mas pela correspondência com planetas e outras de suas propriedades mágicas. E, ainda, revelam relações mais complexas, permitindo por exemplo interpretar a degradação tematizada por Baudelaire como etapa de uma sublimação ou transformação alquímica, uma passagem pelo nigredo para chegar à luz. Isso, além de poderem conter cifras, chaves numéricas e outros símbolos que vão adquirindo sentido à luz da Alquimia, Cabala, Astrologia, da leitura do tarô, etc.

Nada disso equivale a propor o reducionismo, a interpretação unívoca. A poesia é polissêmica. O bom poema não diz “isto” ou “aquilo”. Diz (adotando o estilo de Paz) isto e aquilo. Pode ser, nos exemplos citados, lírico, gnóstico, teosófico, cabalístico, e muito mais. A poesia já é, por sua própria natureza, hermética, cifrada, admitindo múltiplas decifrações, diferentes leituras. Nisso reside sua diferença fundamental com relação a um ocultismo doutrinário, no qual, ao fim, o símbolo quer-se unívoco, equivalente à cifra ou chave remetendo a um determinado significado, por mais complexo ou intangível que possa ser.

Há um jogo ou tensão dialética entre duas relações de significação, uma delas propriamente simbólica, com um sentido oculto, porém definido, e outra multivalente, aberta a diversos sentidos e interpretações.

Um ensaio de Julia Kristeva sobre Nerval, Sol negro, que focaliza o poema El desdichado, apresenta interesse, no presente contexto, por invocar fontes herméticas e ocultistas de modo não-redutor. Nele é mostrado como tais fontes e símbolos interagem, contribuindo para a multivalência de conotações, como diz essa autora, da esfera do propriamente poético:

A polivalência do simbolismo no interior dessa nova ordem simbólica que é o poema, ligada à rigidez dos símbolos no seio das doutrinas esotéricas, confere à linguagem de Nerval um duplo privilégio: por um lado, assegurar um sentido estável tanto quanto uma comunidade secreta, onde o inconsolado é ouvido, aceito e, em suma, consolado; por outro, abandonar esse sentido monovalente e essa própria comunidade, para chegar o mais próximo possível do objeto do pesar especificamente nervaliano, através da incerteza da nomeação.

Essa complexa relação de símbolos polivalentes e monovalentes, da incerteza da nomeação vs. rigidez dos símbolos, pode ser associada a uma dialética do particular (o objeto do pesar especificamente nervaliano) e do universal (o sentido estável).

Contribuem para entendê-la reflexões de Octavio Paz, desta vez em um ensaio mais recente, A outra voz, no qual distingue, baseando-se em The allegory of love de C. S. Lewis, entre símbolo e alegoria:

... C. S. Lewis nos adverte sobre uma confusão freqüente: ler uma alegoria medieval como um símbolo. A alegoria e o símbolo são irmãos, mas os dois são também manifestações do pensamento analógico; tanto a alegoria quanto o símbolo postulam uma relação secreta entre isto e aquilo, o mundo das idéias e das coisas. Mas Lewis introduz uma distinção fundamental: “a equivalência entre o material e o imaterial pode ser usada pela mente de duas formas (...) Diante de um fato imaterial, como a paixão que sentimos, se inventa visibilia para expressá-la. (...) Sentimos cólera e imaginamos a Ira, com o rosto desfigurado e uma tocha na mão. Isso é o que se chama alegoria.” Por outro lado, também podemos ver nossas paixões como uma cópia ou um reflexo de um mundo imaterial. Esta foi a idéia de Platão; é uma idéia implícita – embora poucas vezes consciente – em todo simbolismo. Ver através da cópia o arquétipo, vislumbrar no mundo daqui o de lá, diz Lewis, é o que chamo simbolismo ou sacramentalismo. Para o simbolista, a realidade que vemos não é inteiramente real; é um símbolo da outra realidade, a verdadeira: a idéia, a essência.

Portanto, é estabelecida a distinção entre o símbolo, unívoco, sacramentalista, que remete a um arquétipo, e a alegoria, multívoca, por ser fluida, dinâmica, pois, como ainda diz Paz em A outra voz,

Na alegoria desaparece a distância entre o ser e o sentido: o signo devora o ser.

Para entender o que seria essa devoração do “ser”, ou, ao menos, do sentido, da relação de significação pelo signo, basta pensar em algumas das obras de Mallarmé, como Um lance de dados, Igitur e sua série de poemas em prosa. Ou, melhor ainda, nas imagens e perífrases de Os Cantos de Maldoror de Lautréamont, notadamente em seus belos como e outras invenções do mesmo calibre.

A obra dos poetas esotéricos, herméticos, ocultistas, seria um lugar de encontro entre essas duas dimensões, simbólica e alegórica, e de uma tensão entre ambas.

Houve coexistência, no final do século XIX, de dois simbolismos, em um período no qual a relação entre o oculto e o poético se tornou frenética, cujo ideólogo e grande cronista foi, sem dúvida, J.-K. Huysmans, respectivamente em Às Avessas (À rebours) e em Là-bas. O relato desse encontro de simbolismos está, em detalhe, na biografia de Alfred Jarry por Noël Arnaud.

Um deles é o simbolismo literário, aquele dos poetas, dos autores da poesia propriamente simbolista, sustentando a abolição ou superação da relação de significação, ou da função significativa, em favor da sugestão, ou do império da “palavra pura”, desligada e liberada de referências externas. Outro, o simbolismo hermético, aquele dos textos propriamente ocultistas, revelador de uma significação oculta e transcendental, arquetípica.

Pode-se introduzir noções bipolares que se tornaram moeda corrente em estudos literários, as de sintagma e paradigma, para avançar na questão. Um simbolismo esotérico teria sua decodificação ou decifração voltada para o paradigma, para um sentido exterior, por ser arquetípico, conforme a doutrinas esotéricas. O simbolismo literário opera, notoriamente, no eixo do sintagma, das relações entre os signos que compõem o poema, voltando as costas para o referente externo.

O encontro desses dois simbolismos, literário e hermético, dá-se de modo mais rico, além de paroxístico, em Alfred Jarry, ponte entre poesia simbolista e vanguardas. Isso, pelo modo como recorreu a ocultismo, heráldica, além de conhecimentos filosóficos e científicos. Sua obra inclui o Doutor Faustroll, na qual propõe a Patafísica, "arte das soluções imaginárias"; O amor absoluto, sugerindo amor incestuoso entre o Cristo e a Virgem; César Anticristo, afirmação de Nero como santo; Messalina, onde vê a grande prostituta como santa. Nessas e em outras obras, promove inversões ao tomar cada episódio ou personagem por seu contrário. Aplica, a seu modo, a coincidentia oppositorum, conforme aponta Henri Béhar em Les Cultures de Jarry, remetendo, com propriedade, ao decálogo hermético de Éliphas Lévi. Portanto, o que poderia ser tomado como excentricidade ou manifestação de loucura, as inversões de valores e símbolos, substituições de signo e significado, tem intenções precisas, fundamentadas em estudos sistemáticos. Pleno conhecedor do gnosticismo, em uma de suas obras, a peça teatral L’Autre Alceste, reescreve e parafraseia a história da união entre Simão o Mago e sua profetisa Helena. Conforme o demonstra Noël Arnaud, a peça, impregnada da doutrina gnóstica, é adaptada de fontes como Hipólito de Roma. Na criação e encarnação de Ubu, e em tantas outras ocasiões e episódios, Jarry pôs em ação o pensamento mágico, ao identificar linguagem e realidade, querendo que o símbolo fosse ativo no plano do real. De modo assistemático e anárquico, um empreendimento assemelhado àquele do mago.

Uma figura como Jarry representa a Belle Époque. Portanto, foi um homem de seu tempo, do “grande banquete”, entre 1885 e 1918, marcado pela intensa exteriorização da vida cultural, quando, argumenta Roger Shattuck, a obra de arte passa a ser vista, não mais como reprodução de uma norma, mas como desvio das normas, iniciando-se o primado vanguardista da experimentação. Correlatamente, o artista não é mais quem eterniza, a seu modo, o cânone, o ideal estético à maneira do classicismo, mas aquele que rompe com esse ideal, afirmando-se como diferença, como individualidade radical.

Essa concepção do artista e esse encontro de simbolismos acaba por realizar-se, de modo pleno, na poesia surrealista, em obras das quais a mais representativa, sem dúvida, é Arcano 17 de Breton. Nesse poema em prosa é praticada a liberdade de criação de imagens tipicamente surrealista, e, ao mesmo tempo, há uma presença definida de simbologia hermética (a começar pelo título, remetendo ao arcano 17 do tarô). Contudo, no surrealismo há um acréscimo, algo novo enriquecendo a relação entre ocultismo e poesia, que vem a ser uma magia da própria poesia. É a emergência do acaso objetivo, do poema profético, dos acontecimentos que parecem sobrederminados, interpretados por Breton como encontros entre o acaso e necessidade em O Amor Louco, e bem catalogados em André Breton et les donnés fondamentales du surréalisme, de Michel Carrouges.