SINAIS DO DEMIURGO CEGO
EM TODOS OS QUE CAEM,
DE S
AMUEL BECKETT *

Armando Nascimento Rosa
dramaturgo e ensaísta, autor do livro de ensaio Falar no Deserto - Estética e Psicologia em Samuel Beckett (Lisboa, Cosmos, 2000), e das peças encenadas e editadas: Um Édipo (Évora, Casa do Sul, 2003); Audição - Com Daisy ao Vivo no Odre Marítimo (Évora, Casa do Sul, 2002); e Lianor no País sem Pilhas (Porto, Campo das Letras, 2001); professor na Escola Superior de Teatro e Cinema

«MRS. ROONEY (Aflita): Cuidado com a galinha! (Guinchar de travões. Cacarejo) Oh, céus, esborrachou-a! Continue! Continue, não páre! (O carro acelera. Pausa) Que maneira de morrer! Num momento a escavar satisfeita, em pleno sol, debicando feliz no esterco, na estrada, permitindo-se ocasionalmente o prazer de um bom mergulho na poeira e, no instante seguinte - zás! - eis que todos os seus tormentos chegam bruscamente ao fim. (Pausa) Tanto esforço a pôr ovos, a chocá-los... (Pausa) Um breve cacarejo mais sonoro e em seguida - a paz! (Pausa) De qualquer das maneiras, acabariam por cortar-lhe o pescoço.»
SAMUEL BECKETT, Todos os que Caem
(trad. inédita de Carlos Machado Acabado, p. 10)

A capacidade de protesto ontológico em torno da condição humana tal como ela é, através de um escárnio implacável, que tempera a todo o tempo o pathos (sofrimento) trágico com o bathos (gozo) risível, é uma constante que define a mundividência beckettiana, marcando especialmente a primeira fase, fundadora da sua dramaturgia (embora tal aliança se mantenha presente na progressiva desagregação minimal das vozes teatrais, que se abstractizam em lirismo verbal ameaçado pela afasia, nas suas micropeças posteriores, das quais Not I /Não Eu e Rockaby/Balanço são dois exemplos significativos). É um facto que Beckett aplica o modelo tragicómico segundo a interpretação de Schopenhauer (um dos seus filósofos electivos), no sentido em que o pessimismo do autor alemão concebe a dupla visão que podemos reter da representação da existência individual: numa visão diacrónica, macroscópica, ela será inexoravelmente trágica, porque desenrola um percurso ascensional e desejante, para desaguar na aniquilação da morte; numa perspectiva sincrónica, microscópica, a vida mostra-se cómica, preenchida com os seus equívocos, os seus pequenos nadas, as aspirações patéticas que constituem a nossa cartesiana duplicidade, enquanto organismos vivos e entidades pensantes. O resultado é que apenas a tragicomédia será para Schopenhauer a mimese dramática apropriada para captar a essência vivente do humano. Beckett subscreve e torna operativa esta visão ao subintitular de tragicomédia os dois actos de À Espera de Godot (bem como tragicómicos serão os seus personagens, de Winnie a Krapp, de Hamm a Mrs. Rooney). Aliás, esta mistura explosiva entre austeridade metafísica e paródia burlesca será sempre causa para que a tragicomédia deste palco singular atinja inevitavelmente as tentativas dos hermeneutas, que, como é o caso agora do autor destas linhas, se afadigam em descortinar sentidos implícitos nos dramas de Beckett, não obstante a já lendária revelia do autor face a tais empresas especulativas. Ainda recentemente, o outrora pouco beckettiano George Steiner (e digo isto remetendo o leitor para o primordial cepticismo manifestado por Steiner perante o teatro de Beckett, em A Morte da Tragédia, 1961), em conferência dada em Lisboa, (Fundação Luso-Americana, Junho de 2002), juntava um ingrediente de farsa prosaica aos conhecidos intentos de descodificação hierológica do nome da mais célebre peça de Beckett. Assim, segundo nos advertia Steiner, seria conveniente atentarmos em fontes explicativas a que os exegetas não prestam habitualmente atenção, como seja o domínio do desporto. E dava o exemplo com o título À Espera de Godot. Enquanto os neurónios dos comentadores se consomem com a imagem de um Deus escondido na palavra Godot (estou ironicamente a parafraseá-lo), ninguém repara num ignorado pormenor biográfico. Beckett, dizia o ensaísta multilingue, era aficcionado de umas corridas de bicicleta a que os franceses chamavam velodrôme. Durante seis dias e seis noites, os esforçados ciclistas pedalam sem parar num dado circuito, fazendo apenas pequenas pausas para as necessidades fisiológicas indispensáveis. Consta porém que havia um destes atletas que chegava invariavelmente no fim, bem depois de todos já terem terminado aquela maratona no selim. Era então que a voz de um fiscal de linha anunciava e repetia altissonante: En Attendant Godot... en attendant Godot! Porque o mais lento dos ciclistas se chamava Godot, disse Steiner, Armand Godot (e mais me ri eu ainda, por o nome próprio deste Godot ser um homónimo francês do modesto beckettiano que sou); eis portanto desvendado o segredo, segundo Steiner, que divertiu a sala. Mas esta foi uma face burlesca do enigma, que não enevoou a minha tendência para exegeses de metafísico alcance. Tivesse Steiner dado a oportunidade a que a assembleia pudesse colocar perguntas, e eu já tinha um argumento na manga. De facto, a explicação desportiva era contundente no seu prosaísmo, mas não me parecia esgotar-se em si mesma, porque os obstinados ciclistas pedalavam, sublinhe-se, durante seis dias e seis noites, ou seja, o tempo mítico da criação do mundo, segundo o Génesis; tempo este que servirá depois para a anedota do alfaiate (que cose umas calças perfeitas durante longos três meses, exasperando o cliente, mas o artesão não admite comparações entre o seu labor escrupuloso e a pressa com que Deus terá alinhavado este mundo em seis escassos dias) contada por Nagg em Fin de Partie/Endgame/A Última Jogada (1957). Mas mesmo que a origem do nome proviesse desse contexto de dura competição, Beckett poderia tê-lo escolhido em consciência, motivado pelo tempo simbólico da sua duração; reforçado, além do mais, pelo facto de Godot ser realmente um nome peculiar, que contém o diminutivo ou corruptela de um deus menor no seu interior - esse deus a quem os gnósticos designavam por Samael, que significa «deus dos cegos», nome enfim tão semelhante com o nome próprio do autor (Pagels, p. 79). A explicação paródica unia-se assim à hermenêutica hierológica; a comédia imediata continuou a ser também metafísica - visão, aliás, que o autor de Gramáticas da Criação decerto não recusaria. E esta é uma virtude típica dos textos beckettianos, dotados de um elevado potencial significador; mesmo que a sua estratégia dominante se centre na aparente pobreza e despojamento discursivos, eles são capazes de satisfazer, com plausibilidade, diversos pontos de vista interpretativos e, em analogia ao que o seu amigo e compatriota Joyce desejara para os romances seus, também Beckett continuará por certo a ocupar as novas gerações de académicos, mercê dos segredos cifrados na sua escrita, tão transparente quanto enigmática.

É nesta linha de perseguição de pistas sémicas que proponho aqui um breve relance por All That Fall/Todos os que Caem (TOQC), de modo a identificar os traços dessa mítica personagem central do cosmodrama gnóstico, antagonista do espírito humano, presente nas especulações desses heréticos sublimes dos primeiros séculos da era cristã: o demiurgo é o deus menor responsável por uma criação desastrada com que a condição humana está comprometida; Samael, cuja cegueira é imagem de ignorância e incapacidade, e não de iluminação interior (como acontece com a clarividente cegueira do adivinho Tirésias). Mas antes de fornecer um esboço desta presença arquetípica nos insterstícios de sentido do texto, convém apresentar a peça propriamente dita.

Em 1956, na sequência do impacto produzido pelas sucessivas estreias, em diferentes palcos mundo fora, de À Espera de Godot, Beckett recebe um convite da BBC para escrever uma peça para rádio. Daí resultará All That Fall/Todos os que Caem (Setembro de 1956, data de escrita), a sua primeira peça radiofónica, e a mais extensa de todas as que viria ainda a escrever para este meio de comunicação, que assinala uma estreia dramatúrgica em língua inglesa; uma vez que tanto a enjeitada Eleutheria (sua primeira peça não incluída no seu teatro completo, e conhecendo apenas edição póstuma em 1995) como En Attendant Godot e Fin de Partie, os seus três textos dramáticos inaugurais para palco, possuem uma versão originária em francês. Todos os que Caem, a mais irlandesa das suas obras teatrais, que permite ao autor revisitar ficcionalmente lugares e personagens da sua infância, teria ainda a particularidade de ser a segunda peça de Beckett, depois de Godot, a ter uma realização pública, uma vez que é transmitida pela rádio britânica em 13 de Janeiro de 1957.

Não é esta das peças mais conhecidas do autor, muito por culpa de ele teimar na não autorização a que o texto conheça outra forma de encenação que não a radiodifusão para a qual foi concebida. Beckett sempre afirmou que estas figuras só lhe fariam sentido emergindo da escuridão («coming out from the dark») (Knowlson, p. 565), isto é, brotando o seu acontecer de um universo que o receptor mentalmente constrói pela audição das vozes e dos sons, destituídos de imagem concreta. Beckett chegaria ao cúmulo da «demiurgia» autoral, ao recusar a proposta que lhe foi feita pessoalmente (entre outros) pela dupla Laurence Olivier e Joan Plowright, em 1969 (Knowlson, p. 565), desejosos de interpretar em palco ou no cinema os protagonistas deste Todos os que Caem; peça que retrata as misérias da condição humana com um humor patético e cúmplice, a partir de um casal de idosos, o cego Mr. Rooney e a sua mulher, Maddy, que o vai esperar à estação ferroviária. A espera é um motivo que se prolonga da peça de Godot, ainda que ela se preencha agora de um modo diverso e de tal modo objectivo, que, não obstante a sua destinação radiofónica (e também graças a ela), All That Fall prescreve um conjunto de elementos sonoplásticos de carácter naturalista (em texto didascálico), que por vezes, para o leitor/ouvinte mais desarmado, podem parecer não mais que pitorescos (e estou a pensar nos sons ilustrativos de animais, sobretudo domésticos e insectos, que se vão nomeando e ouvindo ao longo da peça; porém, esta insistência na fauna, como se algo houvesse aqui de testemunho de Noé, o salvador mítico das espécies animais, encontrará outras ressonâncias que adiante pretendo destacar). A espera agora é activa e constitui-se na peregrinação de Mrs. Rooney em direcção ao caminho de ferro de Boghill - nome da localidade forjada onde decorre a acção -; ao contrário da espera abstracta e estática de Vladimir e Estragon, sempre tagarelando junto da sua árvore solitária. Contraste aqui também porque a espera diz respeito a uma pessoa identificável, o velho marido cego de Maddy, e não, como no caso de Godot, por um indivíduo do qual nunca se descortina devidamente a identidade.

Comparando ainda com a abstracção simbólica do lugar dramático em À Espera de Godot, a concretude das ambiências dramáticas é deveras acentuada em Todos os que Caem, porque, já atrás o anotei, nesta peça Beckett (como o explicita em carta a Aidan Higgins) serve-se da memória de lugares e de gentes com que conviveu na infância, na sua Irlanda natal; e conforme a minúcia de conhecedor do seu biógrafo James Knowlson no-lo dá a saber: desde as coordenadas topográficas da estação ferroviária desta Boghill de ficção serem concordantes com essoutra estação real chamada Foxrock, até à referencialidade de inúmeros nomes próprios, inspirados por pessoas com quem o autor se cruzara na juventude; donde destaco essa informação espantosa, dada por Knowlson, de ser a protagonista Rooney o retrato transfigurado da «formidável educadora do jardim de infância, Ida ‘Jack’ Elsner» (Knowlson, p. 429) que Beckett frequentou, entretanto, supõe-se, feita envelhecer pelo transcorrer dos anos, para habitar esta peça purgatorial sobre o declínio e a queda como imagens obsessivas da existência. Fundidas num acto único a bipartição que Beckett previu inicialmente para este texto (de novo num símile com Godot), Todos os que Caem acompanha o trajecto de Mrs. Rooney pela estrada que a conduz à estação de Boghill (cuja tradução possível é monte do pântano, bem concordante com a colectiva queda inscrita no título). Ela é o centro da peça, visto que esta se constitui por intermédio do encontro dela com diferentes personagens em trânsito, até chegar ao destino desejado, regressando depois na companhia de Dan, o marido invisual, junto do qual exerce uma função de guia. Encontros que são outros tantos motivos para despoletar esse solilóquio intérmino que individualiza as personagens de Beckett, numa expiação punitiva cuja causa desconhecem; e que faz da vida, nelas, um misto de limbo expectante, purgatório moroso, e inferno de penas repetitivas, previsíveis; e o Inferno de Dante, autor central para Beckett - de onde este extraiu o protagonista Belaqua, seu alter ego de outras prosas - será mesmo citado por Mr. Rooney, comparando-se a si e à mulher, na sua trôpega travessia, com o papel dos condenados infernais.

«MR. ROONEY: Sim. Ou melhor: tu para a frente e eu para trás. O par perfeito. Como os condenados de Dante, com os rostos assentes nas nádegas uns dos outros: assim as lágrimas cobrir-nos-ão mutuamente os traseiros.» (TOQC, p. 18)

Mas repare-se, bem antes deste momento textual, nas imagens de uma queda fisiológica como putrefacção do corpo em vida (esse mesmo corpo incómodo da velhice que dificilmente entra e sai do automóvel de Mr. Slocum que a transportará no final do trajecto, e é por isso fonte de comédia), e logo a seguir, uma confissão de falha de afecto (numa passagem que legitima o facto de Beckett afirmar que a sua escrita se tornava subitamente sentimental quando escrevia na materna língua inglesa, pelo que a expressão em francês será fuga a essa voz interior da anima) que Mrs. Rooney enuncia, falando sozinha na sua via sacra, como se fosse uma versão feminina do Job bíblico.

«MRS. ROONEY: (...) Que fiz eu para merecer tudo isto - o quê?! (Os pés arrastando-se) (...) Como posso continuar? Não posso! Oh, vou simplesmente parar e deixar-me cair na estrada como um grande bocado de geleia viscosa escorrendo de um frasco - derramando-me molemente no solo para nunca mais tornar a levantar-me. Uma coisa grande, espessa e mole, viscosa como lodo - coberta de terra, de poeira e de moscas que, para ser removida tivesse de ser despegada do solo com uma pá. (...) Oh, eu sei que não passo de uma velha bruxa histérica, arruinada física e moralmente pelo sofrimento, pela crua erosão da dor e da vontade sempre insatisfeita e permanentemente incumprida, pelo peso da própria gentileza e pela frequência regular do templo - pela obesidade, pelo reumatismo e por toda uma existência sem filhos. (Pausa. Entrecortadamente) Minnie! Minha pequena Minnie! (Pausa) O amor - eu não pedia mais nada: um pouco de amor todos os dias, um pouco de amor a cada dia, duas vezes ao dia: cinquenta anos de amor-duas-vezes-ao-dia - como se se tratasse nem sequer de amar mas de ir ao talho comprar carne de cavalo com a estrénua perseverança de uma dona-de-casa parisiense ocupando-se das suas compras. Que mulher normal ocupa os seus sonhos mais profundos com o afecto?» (TOQC, p. 6)

Por estas auto-revelações a vamos conhecendo, em toda a sua humana singularidade, de lucidez, senescência auto-consciente, e torrente interior monologante (ou não fosse ela uma ascendente de Winnie, até porque o nome da sua filha morta Minnie em muito se lhe assemelha, tendo Maddy por nome de solteira Dunne, ou seja duna, o lugar físico onde Winnie se enterrará viva, conforme nos lembra Carlos Machado Acabado, em preciosas notas à sua tradução portuguesa inédita desta peça, elaborada em 2000), fruto de interacção com rostos conhecidos desse mundo exterior no qual ela se aventura, após um período considerável de recolhimento em casa, por motivo de doença, segundo o texto o deixa entender, na conversa com Mr. Barrell, o chefe da estação.

«MR. BARRELL: (...) Pois é, Mrs. Rooney, é um prazer vê-la aí, a pé, toda afadigada outra vez. A senhora esteve tanto tempo fechada lá em cima!

MRS. ROONEY: E não foi o suficiente, Mr. Barrell! (Pausa) Quem me dera a mim estar ainda agora na cama, Mr. Barrell! (Pausa) Quem me dera poder estar, toda repimpada, no conforto da minha cama, deixando simplesmente que o tempo passasse por mim e me fosse lentamente corroendo e consumindo sem requerer esforço ou dor alguma da minha parte, comendo araruta e geleia-de-mão-de-vaca - ah, poder ir desaparecendo, assim, a pouco e pouco, debaixo da roupa da cama até ser possível, um dia, no limite, confundir-me com o plano horizontal da própria cama! (Pausa) E sem ter sequer tosse, nem expectoração; sem sangrar ou ter vómitos, apenas mergulhando progressivamente na vida superior - mas sempre recordando, sempre recordando (a voz vai-se-lhe tornando entrecortada) como se... como se toda a estúpida infelicidade... como se nunca tivesse existido... mas onde é que eu meti o lenço? (Som do lenço a ser usado) (...)» (TOQC, p. 11)

Uma constante destes encontros de Maddy, não obstante o traço forte de uma paradoxal e insana felicidade arrancada ao infortúnio (de que Winnie será depois o máximo expoente), é a ideia inescapável de fim anunciado, de decadência vivente, fisiológica e anímica, que contagia tudo e todos, de forma insidiosa, sofredora mas também risível, nesse registo de humor negro habilmente cultivado por Beckett.

A poeira do caminho que é simultaneamente o pó da matéria viva decomposta; a lama, o lodo e o omnipresente esterco como metáforas escatológicas de um fossar vivente; a doença e a esterilidade biológica (o caso da filha de Mr. Tyler, a quem foram extirpadas, conforme este informa Mrs. Rooney, as «coisas todas de dentro da barriga», TOQC, p. 7), a morte na infância (os casos da filha Minnie e da criança vitimada na linha); a morte da linguagem, aflorada pelo diálogo entre o casal (e a morte, em particular, da língua gaélica, às mãos da dominação inglesa); a imagem do naufrágio (do Titanic ou do Lusitânia) pela lembrança da canção que os quasi-afogados entoavam... Eis alguns dos tópicos recorrentes que invadem literalmente o texto numa exaustividade semântica que amplia essa Queda originária grafada no título da peça, oriundo de um salmo do Antigo Testamento, que Maddy e Dan citarão para depois dele se rirem «a bandeiras despregadas» («in wild laughter»), em regresso a casa, quase no final da acção: «O Senhor ampara todos os que caem e ajuda a erguer todos aqueles que Ele determinou que se curvassem». (TOQC, p. 22) E quem cai, objectivamente, é uma criança na linha férrea, que assim perde a vida, causando um atraso de quinze minutos no comboio em que Dan viajava; havendo a suspeita de ter sido eventualmente o velho a empurrá-la, segundo o desfecho da peça o deixa supor; quando Jerry, o moço de fretes (um duplo ou irmão cénico do Boy que anuncia Godot, ou do rapazito «potencial procriador», que Clov e Hamm avistam em A Última Jogada) vem de bicicleta na direcção de ambos para devolver um objecto que parece uma bola, e que Mr. Barrell afirma ser de Dan, mas que pode muito bem ter pertencido à criança (o sexo da criança nunca é especificado) colhida pelo comboio - e daí a ansiedade inquiridora de Maddy, exigindo que o marido lhe diga que objecto é aquele. Nunca o saberemos, mas a suspeição fica levantada, acentuando o escárnio dúbio em relação ao conteúdo tutelar do salmo.

De resto, a abundância quase asfixiante de signos bíblicos e cristológicos, paródica ou explicitamente evocados, é decerto um factor fulcral que deve orientar antes de mais uma leitura mitocrítica da peça.

(Abundância esta capaz de relegar, para um segundo plano, leituras de analogia helenizante, igualmente possíveis. Porque não deve esquecer-se o quanto este casal contém de simbologia edipiana. Mr. Rooney é um velho cego, como Édipo a caminho de Colono, e junta em si a sombra de Laio, inimigo da descendência, manifestando impulsos filicidas numa verbalizada pedofobia; e Mrs. Rooney amparando-o, condensa, freudianamente, as imagens de uma Jocasta sobrevivente ao suicídio e de uma Antígona substituta, visto que a filha de ambos, Minnie, morreu na infância, conforme Maddy amargamente o lamenta. Mas estas são leituras analógicas curiosas, porém secundárias para o contexto simbólico que pretendo evidenciar.)

Abrindo com sons rurais de animais entre o arrastar de pés de Mrs. Rooney, a significativa presença musical em fundo é de A Morte e a Donzela, de Schubert; e a primeira frase da peça pode ser lida/ouvida como comiseração auto-referencial da protagonista, que no ocaso do corpo se retrata: «Pobre mulher! Completamente só naquela casa em ruínas!» (TOQC, p. 5) São três as pessoas que Mrs. Rooney encontra antes de chegar à entrada da estação, todas elas homens, e cada um aparece num diferente meio de transporte, cuja sequência não está isenta de significação alegórica: primeiro a carroça de Christy, depois a bicicleta de Mr. Tyler, e finalmente o automóvel de Mr. Slocum - que a levará de boleia - numa espécie de sequência evolutiva dos meios de transporte, e do domínio humano da técnica, para percorrer um único e mesmo caminho, em direcção à última estação de um percurso que é a existência.

Começa-se por Christy, o carroceiro, com um carregamento de esterco de porco, puxado por uma mula. A paródia cristológica é óbvia, no nome próprio Christy (que, ao contrário dos restantes, não é tratado por Mr., facto que, se indicia a sua condição social humilde e/ou a familiaridade com a protagonista, expõe mais ainda a anedótica alusão messiânica); e se bem que mais tarde Dan e Maddy evoquem a entrada de Cristo em Jerusalém a cavalo num burro, aqui é uma mula (fêmea estéril, como o porco castrado, de cujas cerdas se fazem escovas de dentes, mencionado por Willie em Dias Felizes) a transportar este Christy, que pretende sem sucesso vender estrume a Maddy, num gesto de alegórico sarcasmo (Christy chama mula do inferno ao animal, por esta se recusar a andar; e chego mesmo a pensar, quando Maddy lhe pergunta pela «pobre mulher» dele - ao que Christy responde que ela «não está melhor» -, se de facto não haverá aqui intenção de atingir essa mulher simbólica que a retórica eclesial atribui ao próprio Cristo, tão historicamente influente e poderosa na Irlanda de Beckett: ou seja, a Igreja Católica). E atente-se ainda no jogo antroponímico implícito: Um Cristozinho (Christy) que quer impingir algum do seu estrume a uma Louquinha (Maddy). Numa nota em jeito de pista de leitura, o tradutor vê no nome Maddy, em primeiro lugar, o diminutivo de 'Madeline' ou 'Madeleine' (TOQC, p. 25), isto é, uma referência à cristológica Madalena, no que intensificará a simbologia dramatúrgica deste face-a-face inicial entre ambos; o encontro inaugural da peça é entre uma velha Maddy e um Christy carroceiro, do mesmo modo que é a Madalena, a mais afrodítica das santas cristãs, que Cristo se dá a ver em primeiro lugar depois da morte por crucificação.

A peça encontra-se, de resto, saturada, como já o sublinhei, de menções bíblicas, ou de contextualização religiosa, com o sentido de as parodiar sem gratuitidade; veja-se o tratamento dado aos êxtases místicos de Miss Fitt, outra das figuras que encontra Maddy no termo da sua viagem, e que ajudará a idosa, de forma quase relutante, a subir os degraus de acesso à estação. Diz-nos esta alucinada Miss Fitt, que quando se encontra dentro da Igreja, sozinha com o seu Criador («alone with my Maker»), não vê ninguém nem sequer reconhece a sua velha conhecida Maddy. Não obstante o retrato cómico da solteirona devota, no que um freudiano chamaria de neurose cristã, nele coexiste a empatia com essas ausências quasi-xamânicas, que todos em seu torno compreendem, e pressupõem um escape do sujeito face à ditadura do tempo comum. Nesta peça onde comparece a memória de Jung, na longa citação de Maddy, de uma conferência a que Beckett assistira vinte e um anos antes em Londres (1935), o autor traduz em drama a convicção junguiana de que a crença é uma função da psique, mesmo que ela conduza a comportamentos de aparente fuga à normalidade (e isto através de Miss Fitt, cujo nome antecipa, como o assinalou Machado Acabado, os célebres Misfits/Inadaptados de Arthur Miller, mas arrancados à vida dos actores que os interpretaram nesse filme de culto de John Houston, porém com data de 1960, posterior a esta peça); e não esqueçamos o quanto Beckett, ele próprio um paciente de psicoterapias, se mostrou sensível na vida àqueles que designamos por mentalmente alienados. Não é só riso que se produz na apresentação desta Miss Fitt, em ligação directa com uma divindade cujo caminho ela encontra dentro de si mesma (no que é uma marca característica da noção de transcendência interior gnóstica); a experiência mística sempre foi transgressora das ortodoxias, porque invalida a função dos intermediários eclesiásticos. De facto, Miss Fitt prescinde de sacerdotes-funcionários; ela é uma crente em auto-gestão, que descobre os seus momentos de euforia na ascese solitária dos altares. Schopenhauer não está longe de novo, quando afirmava, apesar do seu tenaz ateísmo, que duas são as fugas à tirania da vontade cósmica: a representação estética e a experiência ascética de renúncia subjectiva e consequente evasão de um eu que carrega consigo o selo do mundo instrumentalizado.

«MISS FITT: (...) Mesmo depois de o serviço religioso ter terminado, quando saio para o ar livre, durante os primeiros cento e cinquenta ou duzentos metros, ando aos tropeções, como numa espécie de sonho ou de transe, por assim dizer - e não consigo ver nenhum dos outros paroquianos. E a verdade é que eles são muito gentis, tenho de reconhecê-lo - a maioria, pelo menos: muito gentis e compreensivos. Agora já me conhecem bem e não me guardam ressentimentos. 'Lá vai ela! (dizem); 'Lá vai a Miss Fitt sempre tão severa, tão concentrada, tão sozinha com o seu Criador - não perturbem a sua concentração!' E afastam-se para evitarem chocar comigo. (Pausa) Ah, sim, erro com frequência por outros mundos interiores, completamente ausente - mesmo aos dias de semana. Pergunte à Mãe, se não acredita. (...) 'Hetty, como é que tu consegues ser tão distraída?' (Suspira) Suponho que a verdade é que eu não estou aqui, Mrs. Rooney, que não estou realmente aqui. Vejo, cheiro e essas coisas todas, faço os mesmos movimentos que todos fazem - mas o meu coração está algures, Mrs. Rooney, o meu coração não está de facto em nenhuma dessas coisas. (...)» (TOQC, p. 12)

Miss Fitt é uma estrangeira face à vida; não tendo chegado ao grau limite dessa jovem, tratada sem sucesso por Jung, que Maddy evoca, e que terá morrido pelo facto paradoxal de nunca ter nascido para a vida. Como sempre em Beckett, o sofrimento de existir é demasiado sério, e por isso mesmo, há que saber rir dele e com ele, para poder sobreviver nele, homeopaticamente, com alguma sanidade (o biógrafo Knowlson considera que a escrita de All That Fall reflecte em catarse criativa, dois anos passados, o choque e a sensação de impotência vividos pelo autor junto do seu irmão Frank, um adepto convicto da doutrina cristã, suponho que protestante, por ser a religião de família, e que morrera de doença incurável, numa prolongada agonia: Knowlson, p. 430).

Aliás estou persuadido de que esta peça poderia ter o nome dantiano de A Humana Comédia, na qual a Beatriz salvífica (expressão medieval do arquétipo que Goethe designará por Eterno Feminino) é agora uma incomparável Louquinha ou, se quisermos, uma emanação da redimida e liberadora Maria Madalena, a guiar o seu Dante (Mr. Rooney chama-se Dan, não sabemos se de Daniel, se de um disfarçado Dante em abreviatura). Os papéis invertem-se ou condensam-se, conforme os casos, como na lógica do sonho: em vez de ser Dante que busca Beatriz, é a Beatriz Maddy que vai em demanda dele, fazendo também as vezes de um feminino Virgílio cicerone deste cego (numa genderização beckettiana, de céltica cepa, ao dotar de maior passividade as personagens masculinas, se comparadas com a determinação e desenvoltura das femininas, de que Winnie, Maddy e Nell são exemplos maiores), enquanto Dan mata a visão pueril em si e por isso é literalmente cego e literalmente velho (esqueceu já a idade que tem, como o demiúrgico Senhor do Tempo das aventuras gnósticas da minha cénica Lianor no País Sem Pilhas: «Fiz cem anos, hoje?... Já tenho cem anos, Maddy?», TOQC, p. 18), fisicamente doente e inimigo mortal das crianças que representam em concreto o potencial da vida e, simbolicamente, o tempo das gerações futuras; segundo a confissão psicopática que ele faz à mulher:

«MR: ROONEY: Já alguma vez desejaste matar uma criança? (Pausa) Arrancar um jovem destino directamente pela raiz - como uma flor no botão. (Pausa) Muitas vezes, à noite, no inverno, quando regressava a casa envolto no negrume da noite, estive prestes a lançar-me sobre o rapaz. (Pausa) Pobre Jerry! (Pausa) Que foi que me deteve, então? (Pausa) Não foi o medo físico. (...)» (TOQC, p. 18)

E neste aspecto sinistro do seu perfil, radica um acesso possível ao título que motivou esta minha leitura: ele é um sinal de Samael, o demiurgo cego. Na carta já referida a Aidan Higgins, na qual Beckett traça a gestação prevista de Todos os Que Caem, para além das referências a personagens e lugares reconhecíveis do seu tempo de meninice, ele remata no seu estilo de críptica concisão, sobre uma personagem mais que por lá deambulará: «e o Diabo cambaleando no fosso» («and the Devil tottered in the ditch», Knowlson, p. 428). Que diabo é este? perguntamos nós. E onde está ele na peça? Será uma personificação respeitante às tendências infanticidas de Mr. Rooney? Estará esse diabo implícito na própria (in)humana natureza de Dan Rooney, que assusta o chefe da estação, deixando-o como se este tivesse visto um fantasma, quando encara com ele no comboio à chegada? O mesmo Dan que dirá à mulher ter conversado no comboio com os seus habituais demónios do ocaso. E o nome Dan, não poderá ser uma deturpação de damn (danado), numa espécie de demonologia dantesca?

Foi por certo este tipo interrogações que terão levado Knowlson a estranhar a abundância de signos religiosos (onde até da caixa de velocidades do carro de Mr. Slocum se diz que está a ser crucificada) numa obra que, aparentemente, recusa conferir-lhes veracidade, tal é a abordagem paródica (e semi-abjeccionista) a que os submete.

«A peça radiofónica desenvolveu-se claramente do profundo agnosticismo de Beckett. Contudo, um agnóstico que ataca um Deus, que não existe, pelo facto de ser cruel e injusto está a praticar um tipo de retórica particularmente vazia.» (Knowlson, p. 430)

A não ser que esse agnosticismo tenha bem mais que se lhe diga, como é minha convicção, a partir das informações que os textos nos fornecem. É aqui que entra na cena analítica a personagem do demiurgo. Como já referi nas páginas de Falar no Deserto - Estética e Psicologia em Samuel Beckett (Lisboa, Cosmos, 2000), tendo em conta o prazer de Beckett nos jogos onomásticos, para deles tirar significados múltiplos, isto por um lado, e por outro, a sua declarada postura de irrisão existencial e religiosa, habitualmente conotada como peculiar teologia negativa; é bem possível que o autor tivesse conhecimento da proximidade entre o seu nome próprio e a designação dada pelos antigos gnósticos (que ele lê, juntamente com Platão, Aretino e Aristóteles, na biblioteca do Museu Britânico em Londres, em 1932, segundo o testemunha o biógrafo Knowlson: p. 161) ao deus menor responsável pela criação do cosmos que habitamos: Samael. É provável que a mundividência expressa nas suas obras tirasse partido dessa analogia curiosa. Especulações à parte sobre o nome de Samael atribuído ao demiurgo, o certo é que a inversão e subversão do sentido alegórico dos mitos tradicionais da ortodoxia, característica da rebeldia exegética da imaginação gnóstica, é um dado importante dos textos beckettianos, nomeadamente deste sobre o qual se detém a nossa atenção. Para além das divergências entre as várias sensibilidades do gnosticismo antigo, desde a visão marcionita mais desesperançada até à promessa viva da iluminação hermética e alquímica (que inspirarão e encontram linhas várias de sintonia em autores novecentistas como Pessoa, Artaud, Jung, Pascoaes, Philip K. Dick, António Patrício, Jorge Luis Borges, Camus, Lawrence Durrell, Guimarães Rosa, Hermann Hesse, Natália Correia e, entre os fisicamente vivos, o crítico Harold Bloom), a resposta comum da interrogação gnóstica sobre a origem do mal e do sofrimento é a de conceber uma dualidade cosmogónica altamente dramática. A questão gnóstica é que o mal e o sofrimento não podem ser dependentes directos da responsabilidade humana (como a interpretação eclesial do mito adâmico nos pretende fazer crer, ao culpar os humanos por uma desobediência primordial); mas devem ser atribuídas ao autor que nos criou. No entanto, se ele nos fez assim, é porque ele próprio não soube e/ou não foi capaz de fazer melhor. A cegueira deste deus incompetente é a causa primeira de uma criação falhada. Mas ele não está sozinho no trono universal. O gnosticismo é um monoteísmo em fissão nuclear; a sua mitologia possui duas personagens centrais (para além de outras entre as quais nós, humanos, nos incluimos, por sermos também pequenos deuses, à nossa dimensão), raiz para um autêntico cosmodrama, dividido entre um deus menor, arrogante e prepotente (que corresponde ao Javé brutal do Antigo Testamento), fazedor do mundo físico, e carcereiro das divinas centelhas nas dimensões fenoménicas do tempo, do espaço, e da morte (aprisionamento este de que se lamenta, por exemplo, a personagem de Andrei no último acto de Três Irmãs de Tchekov, impedindo o desenvolvimento genuíno das crianças da sua cidade); e um Deus estrangeiro e ignoto, com o qual a nossa natureza interior tem afinidade (o Pai de Cristo, que comparece apenas no Novo Testamento), mas que se encontra exilado deste mesmo universo de que não é autor. E por isso também nós estamos exilados como ele, sujeitos ao esquecimento perpétuo da nossa verdadeira origem transcendente.

A corrente literária existencialista no séc. XX, de cariz ateu, graças principalmente a Albert Camus (que começou, curiosamente, por escrever uma tese de licenciatura sobre Gnose e Neoplatonismo), constituiu-se como uma manifestação de gnosticismo dito secular, isto é, conservando a sua inquietação profunda e exasperação consciente, mas destituído da intuição da tal transcendência exilada que nos fala ao espírito, por este possuir uma natureza que lhe é análoga. Mesmo assim, no vocabulário simbólico de Camus abundam títulos de gnóstica ressonância: O Estrangeiro, A Queda, O Exílio e o Reino, etc. Isto para dizer que a temática gnóstica, ainda que numa apropriação exclusivamente secular moderna (apropriação esta que tem em Voltaire o seu primeiro e importante expoente na Idade Moderna) está presente na geração intelectual que é contemporânea da aparição de Godot nos palcos franceses. Cioran, o filósofo niilista romeno, próximo de Beckett, também como este radicado em Paris, e com quem por vezes almoça (e imaginar as conversas de ambos à mesa seria um belo exercício de escrita dramática), é um interessado nesta matéria, e publicará mesmo um ensaio mais tarde, em 1969, intitulado O Mau Demiurgo, onde desabafa que a história da cultura ocidental teria sido bem diferente se se tivesse dado ouvidos ao heresiarca Marcião, o mais pessimista de todos os antigos gnósticos (que alguns recusam mesmo em classificar como gnóstico, dada a sua concepção demasiado deceptiva de salvação). É ainda da responsabilidade do filósofo Hans Jonas a revitalização reflexiva, na 1ª metade do séc. XX, em torno da antiga religião gnóstica, que inclui uma influente reinterpretação desta à luz da mundividência existencialista; Gnosticismo e Niilismo Moderno é um ensaio seu que surge em inglês em 1952 (anexado mais tarde como epílogo da sua obra incontornável: The Gnostic Religion, 1958). E é claro que não podemos esquecer aqui a importância do gnosticismo na psicologia analítica de Jung, autor que impressionaria Beckett de forma perdurável, desde que com ele se cruzou ao vivo em Londres, em 1935, (confronto este, entre Beckett e Jung, que foi central para a minha abordagem em Falar no Deserto). E enfim, o próprio Beckett manifestará a sua proximidade em relação à metafísica maniqueia, ao comentar que só o combate perpétuo entre a Luz e as Trevas, que identifica esta corrente gnóstica dos primeiros séculos da era cristã, poderia tornar compreensível a simbologia subjacente às alternâncias luminoplásticas previstas para A Última Fita de Krapp, peça (muito autobiográfica) escrita em 1958, a seguir a Todos os Que Caem. (E nos textos maniqueus, os olhos, do género feminino no aramaico, são alegoria de receptividade feminina face à luz fecundante do conhecimento; sendo luz do género masculino). Porque ao contrário do que afirma Anthony Cronin, em Samuel Beckett: The Last Modernist, com inaceitável ligeireza, não é minimamente crível que Beckett só conhecesse do gnosticismo aquilo que consta no verbete da enciclopédia britânica (Cronin, p. 486). Basta invocar um exemplo. Apaixonado como era pela obra de Dante, razão pela qual aprendeu a língua italiana para a ler no original (tal como Joyce fizera em relação à língua de Ibsen), e além do mais francófilo, é praticamente certo que Beckett conhecia ou tinha notícia do polémico livro de Eugène Aroux: Dante hérétique, revolutionnaire et socialiste; publicada em França em 1853 e reeditada em 1939, que desenvolve uma tese de leitura iconoclasta d' A Divina Comédia, ao ver nela um fruto imenso da heresia albigense (neomaniqueia), disfarçada com as vestes próprias para ser aceite pela Igreja Católica, e para que o seu hábil autor pudesse escapar ileso à fogueira. Quanto mais não fosse pelo prazer do sarcasmo, e com o intuito de atingir as ortodoxias cristãs dominantes (católica e protestante), esta visão subversiva, de um Dante cátaro escondido na odisseia medieva que escreveu, devia ser do maior interesse para a imaginação dramática de Beckett. Ora o radicalismo das heresias neomaniqueias medievais traduz o dualismo, que esquematizei atrás, dos gnósticos antigos, por uma leitura que identifica o demiurgo com Satanás, fonte do mal e da matéria mortal, e príncipe deste mundo, enquanto o verdadeiro Deus continua a ser exterior a este cosmos, de que ele não é autor, mas onde a nossa alma expia penosamente o seu fascínio pela criação diabólica.

Agora voltemos a Todos os Que Caem, e com estes dados olhemos para vários pormenores sintomáticos. As inúmeras referências do texto ao demoníaco agrupadas, em especial, em torno de Dan Rooney não são casuais; esta personagem parodia a criação falhada de um Javé demiúrgico, porque criado à imagem e semelhança dele, assim a sua condição é a de um velho cego, doente e decrépito, com impulsos psicopatas. Mas ponhamos a hipótese de que em Dan Rooney nós temos a condensação (de novo um topos de interpretação onírica, que bem se quadra a uma peça plena de ambiguidades como esta) entre uma figura humana e a representação simultânea do demiurgo cego Samael, dos gnósticos, numa troça de heresia hierológica ao Deus uno dos monoteísmos dominantes (troça esta que Beckett acabara inclusive de personificar no cego paralítico Hamm de A Última Jogada, no qual inscreveu múltiplas irrisões teológicas). E em benefício desta minha perspectiva, elucidou-me o tradutor Carlos Machado Acabado que Dan em inglês é um termo que designa, nada mais nada menos, do que um indivíduo católico romano; mas também, pasme-se, um guarda de latrina pública (e com efeito Dan dirá à mulher que se encontrava na casa de banho dos homens desde que o comboio parou). Um sarcasmo radical no seu mecanismo excremencial de inversão e implosão sémicas (esse teatro da derrisão, na expressão cunhada por Emmanuel Jacquart, que tem em Beckett o seu mais acerado gume).

Numa pluralidade de níveis hermenêuticos (entre o real objectivo representado e as imaginações simbólicas que dele emanam e nele se projectam), especialmente aplicável a textos de intenção alegórica como A Divina Comédia, Dan Rooney não seria somente esse velho escriturário cego com passe para a viagem de comboio, que comenta a rotina remediada do seu dia-a-dia repetitivo, de funcionário; ele pode personificar, em leitura arquetípica, o demiurgo cego dos gnósticos, identificado por eles com o Javé veterotestamentário e que, para os cátaros, seria sinónimo do demoníaco tirano do mundo físico. Isto poderia explicar certas passagens enigmáticas (para não buscarmos refúgio em exclusivo no termo absurdo, cujo uso aplicado ao seu teatro desagradava Beckett, não obstante a fortuna crítica que o conceito conheceu, na moldagem sólida com que Martin Esslin o dotou, depois de o haver colhido no ensaio de Camus O Mito de Sísifo - Ensaio sobre o Absurdo, de 1943), como seja aquela em que Mr. Rooney pergunta pela idade que tem; e Maddy em vez de responder-lhe, começa a enunciar todos os seres que observa em redor deles, para concluir que não há quem lhe saiba responder - isto é, todos os seres inanimados, bem como os muitos animais que pululam em ruído na peça, integram a criação e participam portanto da alienação mesma de que sofre o seu fazedor. Jamais lhe poderão responder a esta pergunta sobre as suas origens. E por isso ela conclui: «Estamos sós. Não há ninguém a quem perguntar.» (TOQC, p. 18) Um elemento perturbador é o facto de Mr. Rooney anunciar à sua mulher que se deseja reformar, para espanto do leitor/ouvinte, nesse mesmo dia em que a mulher diz ser o dia do aniversário dele. Ora que função profissional poderá ainda exercer cabalmente esta personagem cega e corroída de achaques? De que escritório será ele assalariado? E na busca pela «psicanálise dos nomes» (de que fala o tradutor Machado Acabado), exigida por esta como por outras peças de Beckett, temos de recordar o nome da estação Boghill, o monte do pântano, que pressupõe a queda e o afundamento. Caminhar no seu sentido pode significar um gesto sacrificial; como parece que sucedia com os ritos dos antigos celtas, que davam oferendas aos deuses, colocando-as nos pântanos (bogs) para submergirem. Bog pode soar foneticamente como jogo de aliteração com god, para além de ser simultanemente partícula que remete para demónios (bogeys) ou para charlatanice, farsa, fraude (bogus). Dan chega mesmo a dizer de si mesmo: I'm agog, numa dessas charlas sonoras que parecem soar a uma confissão satírica auto-referencial (I'm a god): de ser ele de facto a representação humanizada de um deus menor.

Daí que Dan Rooney, personagem da peça que sucede a Godot na sua pública realização, possa ser visto como um retrato possível desse mesmo Godot, que continha os sinais alegorizantes para ser identificado como demiurgo cego. Da leitura desta peça multívoca, destinada apenas pelo seu autor a ser ouvida, materializou-se esta minha arriscada hipótese hermenêutica. Talvez ficção da imaginação mitocrítica. Mas Godot pode muito bem ser esse diabo cambaleando no fosso, camuflado no rosto de Dan Rooney. E assim sendo, a criança que ele empurrou para cair na linha poderá ter sido o Boy que era seu crístico mensageiro em À Espera de Godot. Beckett é sério e paródico em simultâneo, como é sabido: auto-cita-se e baralha dados anteriores. O Godot como demiurgo cego em Mr. Rooney é um Javé filicida que mata o seu simbólico filho cristológico. E como Javé que é, apenas se pode dar a conhecer através do som, da fala, e nunca da visão. Por isso, Beckett proibirá a montagem em palco ou ecrã de Todos os que Caem. Godot, qualquer que seja o seu figurino, jamais se dará a ver, porque ele próprio não vê nada além de si, no seu autismo déspota. E como toda a palavra é polissémica, demiurgo significa artífice e obreiro; ou seja, é também a imagem do artista. Beckett encontra-se então espelhado no Samael de Dan Rooney: a cegueira do velho dependente nesta sexta-feira de um Junho em que as folhas apodrecem, amontoadas de todos os anos anteriores, de todos os Verões da vida acumulados. Sinais nele de um demiurgo mítico e psicoactivante? Vestígios de auto-retrato alegórico do autor? Talvez tudo isso reunido num Dante cego guiado, na purgatorial poeira dos caminhos, por uma Beatriz idosa e enfermiça. Um poeta das trevas (essas trevas que o auto-biográfico Krapp confessa serem a sua melhor e mais forte fonte criativa, em Krapp's Last Tape/A Última Fita de Krapp) projectado no velho pueril que odeia crianças, de braço dado em casamento com a sombra da sua inesquecível educadora de infância.

Évora/Lisboa, Novembro/2002 - Agosto/2003
Armando Nascimento Rosa

Referências bibliográficas

BECKETT, Samuel, The Complete Dramatic Works, Londres, Faber & Faber, 1990.

BECKETT, Samuel, Todos os que Caem, trad. de Carlos Machado Acabado, 2000, dactiloscrito inédito com notas de leitura.

CRONIN, Anthony, Samuel Beckett: The Last Modernist, Londres, Harper Collins, 1996.

KNOWLSON, James, Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett, Londres, Bloomsbury, 1996.

PAGELS, Elaine, Os Evangelhos Gnósticos, trad. de Luís Torres Fontes, Porto, Via Optima, 1999.

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* Uma versão inicial deste estudo foi apresentada como conferência em 15 de Novembro de 2002 no Teatro Garcia de Resende, em Évora, numa sessão promovida pelo Cendrev (Centro Dramático de Évora).