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A FILOSOFIA POÉTICA DE ANTÓNIO TELMO
António Cândido Franco
3.

Fazer da linguagem verbal o intermediário privilegiado do pensamento, não descurando a verdade que nela existe de superior à vida dos sentidos, é o intento dum livro como Filosofia e Kabbalah (1989), que reúne os dispersos sobre poetas e pensadores portugueses anteriormente publicados pelo autor. Mas uma tal preocupação não pode ser desligada do intento de trazer a filosofia até às formas sensíveis de expressão dramática ou poética, de resto o pretexto que o levou a escrever e a publicar em 1963 um livro de filosofia ferozmente anti-intelectualista.

O trabalho de António Telmo foi, assim, uma vez mais, adequar a verdade transcendental às formas presentes e locais da vida, procurando, porém, que estas não sufoquem a harmonia excelsa do pensamento. Para além da tentativa de disciplinar a desordem da imaginação, vê-se, em António Telmo, o esforço de adaptar a ordem da vida à aventura da liberdade.

Telmo procura, como qualquer poeta, um equilíbrio de simetria complementar entre a razão das formas e o excesso da imaginação, entre a tirania dos imperativos formais e a liberdade da criação. Nenhuma toma verdadeiramente a dianteira; Orfeu zela por uma harmonia entre os mistérios que se revelam a tremer na escuridão da noite e o senso apolíneo da beleza estática e da forma diurna. A realização deste equilíbrio leva a que a prosa deste autor se nos afigure uma supra-realidade, onde as noções de caos e ordem, de estabilidade e ruptura, de sensível e inteligível, de poesia e filosofia se confundam ou, pelo menos, deixem cair o seu sentido dicotómico mais vulgar. O movimento transfigurador do mundo não resulta do transformismo da matéria, mas da visão interior do poeta. É ela que assegura a tendência unificadora da metáfora e a contemplação luminosa da essência universalizante.

A imaginação volta a ser o agente formativo dum mundo desconhecido, retraído na esfera do invisível, pela ilusão da repetição das formas estáticas, que constituem a vida aparente dos sentidos mais imediatos. A metáfora é a expressão da acção criadora e libertadora desta realidade invisível, que funde antinomias e aproxima distâncias. A catarse ou a libertação das formas rígidas da realidade, arrancando a natureza ao cárcere onde o hábito a aprisionou, é o resultado da metáfora, instrumento da imaginação e do pensamento poético em geral. A metáfora desloca e traslada, mostrando, em sucessivas emergências, que as imagens são as manifestações duma mesma essência universal.

Trata-se duma operação do espírito, um processo interior, que implica uma alteração da percepção do mundo ou uma animação imaginativa dessa percepção, em que o espírito se faz expressão verbal. A metáfora revela sempre dum imaterial, que é o ponto invisível onde a pluralidade da dispersão material se reúne num universal ou, se quisermos, o ponto em que a dispersão dos sentidos, sem colocar directamente em causa os seus elementos sensíveis, encontra a sua unidade psíquica.

Deste modo, o trabalho do poeta parece ser iluminar tudo o que se tornou opaco, mercê da cousificação da vida, libertando a matéria física da prisão das suas amarras e contemplando o que doutro modo ficaria para sempre retraído no invisível. É por isso que Telmo, na introdução ao livro de 1981, nos diz que a cor como manifestação física imediata ou revestimento material dos corpos não é o produto da decomposição da luz, mas antes o resultado da progressiva qualificação da sombra. A treva, ascendendo da terra, multiplica-se, por uma influência involuntária da luz do céu, em cores físicas; as cores, por sua vez, pela acção humana da visão poética ou metafórica, aperfeiçoam-se na sua essência central que é a luz.

De qualquer modo, na visão de Telmo, um pensamento universal sem o húmus do concreto e um conhecimento sem formas sensíveis de expressão são nocivos. Sem a terra fecunda onde germinam as sementes, o ânimo apaga-se e a transcendência murcha, debilitada e frouxa; sem um mínimo de dor, o superior é incapaz de se sustentar e desenvolver. O filósofo aspira à luz e à ordem superior da razão, mas não recusa, ainda que passageiramente, a experiência aterradora das trevas. É no coração da noite e do caos, rodeado dos últimos monstros, do cimento sólido e da cinza nocturna, que ele vislumbra a pura e meridiana luz dum meio-dia celeste.

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Discursos e Práticas Alquímicas. Volume II (2002) - Org. de José Manuel Anes, Maria Estela Guedes & Nuno Marques Peiriço. Hugin Editores, Lisboa, 330 pp. Online no TriploV.