O SEGREDO DEBAIXO DE UMA PEDRA
José Manuel Anes

Interessa agora ver que tipo de discurso realiza Anselmo Caetano, ao tratar Da matéria com que os Herméticos fazem a Pedra Filosofal (ou a matéria com que os Herméticos formam o Lapis, para . fazer a Crisopeia). Será  (na hipótese simplicissima20  de H. Eco) um discurso do tipo operativo, ou será um discurso do tipo simbólico - por enigmas, e metáforas, sonhos, e fábulas, como diz Enodato, questionado por Enódio? No que diz respeito à discussão da verdadeira matéria de que o Lapis se forma - a primeira coisa  que deveis conhecer, e averiguar, diz Enodato -, o autor de ENNOEA utiliza uma argumentação de uma racionalidade transparente, naturalmente no quadro das concepções alquímicas da época.

Na discusão da matéria com que os Herméticos fazem a Pedra Filosofal, Anselmo Caetano - revelando um notável conhecimento das vias e dos materiais alquímicos, citando autores como Geber/Al-Djabir, Filaleto, Raimundo Lúlio, Alberto Magno, Bernardo o Trevisano, Basílio Valentim e Becher - começa por rejeitar os vegetais - como o spiritus vinii lulliani, o vinho vermelho, ou branco de (pseudo) Raimundo Lúlio - e os animais - como o espírito de urina -, pois como diz Enodato, ainda que estes menstruos têm o seu uso na Química, na Alquimia eles não têm nenhum préstimo, pois são incapazes de dissolver radicalmente o Ouro, isto é, de reduzi-lo à primeira matéria de que foi formado, separando os princípios do metal mais fixo e mais perfeito21 . Refira-se que esta distinção entre Química e Alquimia, apenas subalterniza a primeira face à segunda, mas não exclui o trabalho químico da Obra alquímica, já que Anselmo Caetano aconselha mesmo, ao alquimista, o estudo prévio dos livros de Química22 , embora afirme que mais se aprendia nos bosques do que nos livros, sobretudo naqueles livros onde se acha muita ignorância do homem23  - uma vez que será preciso estudo, experiência e paciência (.) para ler tantos autores, a fim de conseguir realizar com êxito esta Filosofia (.) sumamente dificultosa24 .

Do mesmo modo e pelas mesmas razões, são rejeitados o Salitre  e o Vitríolo, ambos, segundo ele, totalmente imprórios  e inúteis. Postos de lado os minerais, falta considerar os metais. Primeiramente, são discutidos o Arsénico - no sentido literal, que é rejeitado, já que no sentido enigmático, os Adeptos chamam Arsénico Filosófico à Matéria da sua Pedra Filosofal25  -, o Antimónio - embora as Crisopeias de alguns Herméticos são fabricadas com o Antimónio, ou Stibio26 , Enodato afirma que de nenhum modo podereis tirar dele a matéria da nossa Obra27  - os quais são também rejeitados, pois Todas essas matérias, ou Minerais, são impróprios por serem sujeitos à corrupção, introduzida nelas pela actividade do fogo28 . Mas, por outro lado, também o Ouro, e a Prata, que no seu centro é Ouro29 , não são próprios para a Obra, pois o Ouro tem  uma natural e fortíssima composição, e não sofre nenhuma calcinação, por não ter Enxofre combustível, como têm os outros metais30 . Ou seja, enquanto que uns são rejeitados por serem demasiado vulneráveis ao fogo, o Ouro é rejeitado, pelo contrário, pela sua invulnerabi-lidade ao fogo. A racionalidade, no quadro da alquimia, é perfeita.

 Então, Anselmo Caetano continua uma discussão racional tendente a demonstrar não só o que afirmou anteriormente, mas também para justificar outras posteriroes escolhas para a matéria do Lapis. Diz ele pela boca de Enódio - que primeiro tinha perguntado se esta matéria se tira de um só, ou de todos os metais31 -: a matéria, que buscamos, é o cálido inato, e o húmido radical dos Metais32 , ou pela boca de Enodato:  a matéria do Lapis não se tira de toda a substância metálica, senão da primeira matéria radical, que em todos os metais é igualmente a mesma33 . Porquê? Porque, quer o cálido inato, quer o húmido radical dos metais, são incorruptíveis e resistem à maior actividade do fogo3. Trata-se de procurar obter a matéria radical dos metais - tema central na teoria da Alquimia -, de os reduzir à sua primeira matéria3 - núcleo imponderável aos olhos da moderna físico-química - para conseguir que todos  os metais  imperfeitos se possam converter em outros36 . Conseguir-se-à isto, a partir de qualquer metal?

Enódio refere que Todos os Adeptos confessam que esta matéria se acha, ou se tira de coisas vis, ou de pouca estimação, e Enodato confirma que temos muitos sujeitos de que tirar a Pedra Filosofal37 . Então, para além dos já rejeitados, a matéria vil - comparando-a com o valor, que depois adquire por benefício da Arte Magna38  - também não se pode tirar do Chumbo e do Estanho, por serem Metais impurissimos, e imundos na sua raiz, ou no princípio da sua criação; porque é tão impura a sua essencial substância, sendo ambos destituídos de substância fixa, que permaneça constantemente no fogo, sendo apenas dotados de substância volátil 39 . Ora, é esta substânia fixa, a  verdadeira Matéria  da Obra.

Apesar de conterem imundices, Enodato/Castelo Branco aceita o Cobre, o Ferro e o Mercúrio, pois deles se pode tirar mais facilmente a Matéria da Pedra Filosofal, sobretudo no Mercúrio - como diz Geber sobre este assunto, o autor que Anselmo Caetano mais cita, aqui e em outras partes do ENNOEA. A razão reside no facto de, embora diversos na sua forma acidental, ou aparente, eles serem, na substância radical (.)  essencialmente o mesmo sujeito metálico40 . Por esse motivo, aconselhado por Enodato, Enódio afirma estar resolvido a trabalhar no Azougue, pedindo-lhe, agora, que ele lhe ensine a preparar a Crisopeia4.

Enodato avisa logo que Nenhum Filósofo explica claramente ess preparação, porque não é lícito falar nesta matéria com muita clareza42 . Contudo ele menciona, logo no começo da sua discussão, que é necessário efectuar sobre o Mercúrio, uma separação no corpo do Mercúrio para dele tirar a matéria da Pedra Filosofal, uma vez que o Azougue, ficou tão infeccionado pelo pecado original mineral, que se ocultam nele duas imundices, uma de natureza terrestre e outra de natureza líquida. No entanto, como essa lepra,que mancha o corpo do Mercúrio, não procede da sua raíz, nem se identifica com a sua substância, (.) só acidentalmente se une com ele, e facilmente se pode separar pela Arte43 . Assim, separa-se a terra, por banho húmido, e pela ensaboadura da Natureza, enquanto que a água se separa por meio de um banho seco e calor benigno, de tal modo que, com três lavações e purgas se renova o Dragão, despindo as escamas, e antigas conchas44 .  Parece estar aqui uma referência às laveures de Nicolas Flamel45 , o que, eventualmente, apontaria para uma via com Mercúrio e Antimónio46  (que seria animado pelo Mercúrio, através das Pombas de Diana, ou Águias de Filaleto), "via de amálgamas" que é mencionada por Betty Dobbs47 , a propósito dos trabalhos alquímicos de Newton, e que um praticante português revelou "caritativamente"48 . Outra hipótese seria  a Obra do Mercúrio e do Sol, em que se utiliza Mercúrio e Ouro (ou Prata); há quem refira, também, uma "obra só com Mercúrio"49. 

 

I Colóquio Internacional Discursos e Práticas Alquímicas (1999)

"Discursos e Práticas Alquímicas". Volume I (2001) - Org. de José Augusto Mourão, Maria Estela Guedes, Nuno Marques Peiriço & Raquel Gonçalves. Hugin Editores, Lisboa, 270 pp. hugin@esoterica.pt

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